Navegando Posts publicados em junho, 2023

Encerra-se a breve e derradeira turnê

O que impede de saber não são
nem o tempo nem a inteligência,
mas somente a falta de curiosidade.
Agostinho da Silva
(”Pensamento em Farmácia da Província”)

Após os recitais em Gand e Lisboa, que marcaram o encerramento da minha atividade pianística na Europa, dei duas palestras, em Évora e Coimbra.

Desde o início do século apresento-me no Eborae Musica, prestigiada Escola de Música de Évora, sempre tão bem conduzida pela Professora Helena Zuber. Convidou-me para uma palestra com exemplos musicais para um público preferencialmente constituído por jovens estudantes de música do estabelecimento. Sempre que estive em Évora, os recitais se deram no Convento dos Remédios, na bela Igreja Nª Senhora dos Remédios, joia da arte barroca, hoje não mais destinada ao culto religioso.

Estou a me lembrar de um enigmático conceito do jornalista e historiador Joaquim Palminha Silva (1945-2015), que tive o prazer de conhecer na bela cidade, exposto em seu instigante livro “Évora cidade esotérica e misteriosa” (Europress, 2005): “…a cidade de Évora hipnotiza ainda hoje de forma intensa todos e cada um, graças à existência duma velada força magnética, espiritual, praticamente indecifrável”.

O propósito da palestra era claro, transmitir à juventude princípios que norteiam uma existência voltada à Música. Fi-lo, a compreender as intenções da Profª Helena Zuber. Enumerei alguns pontos que acredito basilares: disciplina; concentração; compromisso efetivo; dedicação; respeito às intenções dos ilustres compositores; desviar-se das concessões que deturpam desideratos precisos; distanciar-se dos holofotes, tantas vezes o canto das sereias; ater-se a dois fundamentos fulcrais, amor à Música e ser curioso. Creio que uma frase do grande músico francês Pierre Boulez (1922-2016) traduz o alcance conceitual do músico: “É necessário ter, diante da obra que escutamos, interpretamos e compomos, um respeito profundo como diante da existência, como uma questão de vida ou de morte”. Ao longo das décadas, mais e mais me convenço de que a Música requer determinados sacrifícios, diferentes certamente de tantas outras atividades. O intérprete, no caso, não pode prescindir do estudo do instrumento escolhido, num labor diário que o faz crescer. Esse “sacrifício” não se concretiza como tal não fosse o amor pela Música. A cada conquista do instrumentista há um prazer indizível, próprio dessa mágica dedicação.

Após a palestra interpretei algumas peças de compositores portugueses e também uma transcrição extraordinária, o “Prelúdio e Fuga em lá menor” de Bach-Liszt que, gravado pelo técnico Gavela, da equipe do Eborae Musica, brevemente estará no Youtube. Vários alunos vieram ter comigo após o evento, a fim de questionar-me sobre temas voltados à nossa área de atuação.

Esteve presente no Eborae Musica o compositor e professor João Francisco Nascimento. Uma alegria. Dele interpretei, já no longínquo 2012, um instigante e precioso Estudo que muito me agrada: “Fúria, Volutas e Saraivadas”. Seu colega, o ilustre Eurico Carrapatoso, recomendou-me essa peça, que tive imenso prazer em interpretar.

Clique para ouvir, de João Francisco Nascimento, Estudo “Fúria, Volutas e Saraivadas”, gravado na Igreja Nª Senhora dos Remédios, em Évora, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=AWyITgFlKZI

Como nas tantas outras oportunidades, fomos conduzidos até Évora pela dileta amiga, gregorianista impecável e regente coral, Professora Idalete Giga.

Coimbra. Estou a me recordar das viagens que fiz de comboio nas décadas de 1980-1990, a sair de Lisboa para o Norte de Portugal a fim de recitais programados. Habitualmente há rápida parada em Coimbra, antecedida pelo lento deslizar do comboio ao atravessar o rio Mondego, momentos para o vislumbre da torre da Universidade fundada em 1290. Foi em 2004 o convite do Professor Catedrático João Gouveia Monteiro, notável medievalista, e do saudoso Professor Doutor José Maria Pedrosa Cardoso, musicólogo ilustre, para recital de piano e palestra no Colóquio “Carlos Seixas de Coimbra”, a festejar o tricentenário de nascimento do grande músico conimbricense. Apresentei-me num recital inteiramente dedicado ao compositor na magnífica Biblioteca Joanina. Ao longo dos anos, cerca de uma dezena de vezes lá me exibi com repertórios vários, mas sempre a inserir no programa criações de Seixas e de outros autores portugueses. Certamente o mais belo cenário que vivenciei durante a minha atuação como pianista.

Clique para ouvir, de Carlos Seixas, Sonata nº 50, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=uIUhQc_giNs

O convite do Professor Gouveia Monteiro para a apresentação do meu segundo livro publicado pela Imprensa da Universidade de Coimbra resultou na palestra de apresentação que proferi na belíssima sala nobre da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, não sem antes as intervenções da atual Diretora da BGUC, Professora Carlota Simões, e do Prof. Gouveia Monteiro, que fez a leitura de substancioso texto de sua lavra, a historiar a importância da Música dos tempos de Confúcio (m. 479 a. C) à Grécia Antiga, Roma, Idade Média, levando-nos até a contemporaneidade. Guardarei no coração as palavras do Profº Gouveia Monteiro ao se referir a este músico. Na minha fala, salientei o meu apreço incondicional à Cultura Portuguesa. O segundo livro, ora publicado pela Imprensa da Universidade de Coimbra, IUC, “Impressões sobre a Música Portuguesa” e outros temas (II), apresenta 63 textos extraídos do meu blog, a grande maioria direcionada à Música Portuguesa, mas a abarcar olhares lançados a outras áreas da Cultura  de Portugal: literatura, poesia, aventura e personalidades.

Docentes relevantes da Universidade estiveram presentes. Entre eles: “Prof. Alexandre Dias Pereira, ex-Diretor da Imprensa da Universidade de Coimbra, a sua Diretora-Adjunta, Dra. Maria João Paez, e integrantes da IUC, entre os quais a Dra. Maria de Lurdes Leston. Presente também à sessão, o Prof. Manuel Portela, atual Diretor das Bibliotecas da Universidade e que fez a primeira saudação no evento. Após a palestra, a convite do Prof. Gouveia Monteiro e da esposa Leonor, minha filha Maria Beatriz e eu vivemos momentos inefáveis na morada do casal.


De regresso a Lisboa, convidado pelo competente escritor e jornalista Joaquim Vieira, assisti em sua morada ao documentário que brevemente será lançado sobre o grande compositor Fernando Lopes-Graça. Joaquim Vieira colheu material precioso através de entrevistas com músicos relevantes que cultuam a obra do mestre nascido em Tomar. Honra-me ter participado do documentário com breves comentários.

Ao alçar voo em direção ao Brasil, Maria Beatriz tirou bela foto. Encerra-se o ciclo que me levou mais de cinquenta vezes a Portugal. Há décadas me manifesto a dizer que jamais diferenciei meu afeto entre os dois países. Se a influência paterna foi decisiva desde a infância, a consolidação se deu através do convívio privilegiado que mantive em terras lusíadas com figuras que permanecerão no meu de profundis. Tenho certa idiossincrasia pela inteligência artificial, mercê de avanços que se processam com velocidade a não dar tempo para a assimilação, mormente nos meus 85 anos. Contudo, o WhatsApp permite a perenização dos afetos através dos contatos imediatos.

Haverá mais um recital, que se dará em Santos, na Pinacoteca Benedito Calixto no dia 24 de Agosto. Escolhi a cidade praiana para a derradeira apresentação pública. A fidelidade de uma amizade em torno da música é a responsável. O insigne compositor da segunda metade do século XX, saudoso amigo Gilberto Mendes (1922-2016), nasceu em Santos e foram várias as apresentações no Museu, sempre com a presença de Gilberto Mendes e a esposa Eliane.

My musical activity in Europe comes to an end. Lectures were given in Évora and Coimbra, the city that launched my second book, “Impressões sobre a Música Portuguesa e outros temas” (Impressions on Portuguese Music and other subjects). I will continue to play, but privately for a small circle of friends. Research will continue and two books are in mind. The 70 years of public performances, usually in small rooms (my preference), with a repertoire that preferably includes rediscovered or contemporary works of value, have been a gift in my already long existence.

1959-2023: os limites da atuação pianística no Exterior

Pouco a pouco recuperei a memória.
Talvez a ela tenha retornado,
encontrando a lembrança que estava à minha espera.

Albert Camus (1913-1960)

Aos 14 de Julho de 1959 realizava o primeiro recital na Europa, a convite do insigne compositor Fernando Lopes-Graça (1906-1994). A récita se deu na Academia dos Amadores de Música em Lisboa. Por lá passaram músicos notáveis e alguns dos ilustres escritores e poetas portugueses. Entre os presentes ao recital, Dr. João Couto (1892-1968), Diretor do Museu de Arte Antiga (Janelas Verdes), o grande pianista Sequeira Costa (1929-2019) e sua futura esposa, a também ótima pianista Tânia Achot (1937-2022), o escritor e crítico musical João de Freitas Branco (1922-1989), que escreveria em “O Século” impressões a respeito da apresentação. Ficaria indelével no meu de profundis aquela noite significativa para o jovem intérprete.

Meu último recital na Europa só poderia ser em Lisboa, desta vez no Museu Nacional da Música, dirigido por Edward Ayres de Abreu, músico respeitado e incentivador das qualitativas publicações de partituras e textos sobre músicos portugueses.

No dia anterior ao recital, que se daria em 30 de Maio, dei entrevista para o consagrado programa Antena 2 da RDP, tão bem conduzido por Paulo Guerra. No longo diálogo, perguntas argutas do competente jornalista me fizeram recordar as mais de 50 visitas a Portugal para recitais, palestras e alguns júris acadêmicos. Antena 2 tem um grande alcance e, sempre após outras tantas entrevistas com Guerra ao longo dos anos, ao me apresentar em diversas cidades havia melómanos que tinham ouvido os diálogos a versar sobre música e outros temas.
No dia do recital no Museu da Música Portuguesa caminhava com minha filha Maria Beatriz, que tão bem me acompanhou, e a memória esteve a apontar as tantas amizades que já partiram. Incentivo a mais para a derradeira apresentação. Como não lembrar da imensa gregorianista Júlia d’Almendra (1904-1992), especialista igualmente em Claude Debussy? Mais de uma década de convívio em torno do compositor francês, sem contar com o fato de que, nas minhas visitas a Portugal, acolhia-me em sua morada, 25, Rua d’Alegria, 1º andar. Paulatinamente apresentei a integral de Debussy, tanto no Instituto Gregoriano de Lisboa dirigido pela mestra, como na Biblioteca Nacional. Estou a me recordar de Humberto de Ávila (1922-2006), renomado crítico e musicólogo do Diário de Notícias naqueles anos e que me privilegiou com vários comentários sobre as apresentações em Lisboa no conceituado jornal; Jorge Peixinho (1940-1994), compositor notável, amigo-irmão do nosso ilustre Gilberto Mendes (1922-2016) e meu dileto amigo também. Foi uma alegria interpretar em primeira audição duas de suas criações, sendo que o magnífico Etude V – Dei Reihe Courante me foi dedicado. O regente e musicólogo Manuel Ivo Cruz (1935-2010), com o qual mantive contatos expressivos sempre que em Lisboa. Sob sua batuta, toquei o Concerto nº 3 de Beethoven, sendo que em outra ocasião foi a vez de minha mulher, Regina Normanha Martins, com o Concerto de Carlos Seixas. José Maria Pedrosa Cardoso (1942-2021), musicólogo notável, amigo-irmão. Tivemos vários projetos que resultaram. E na morada do casal José Maria-Manuela hospedei-me inúmeras vezes, só ou com Regina. Tantos mais músicos ou amantes da cultura povoaram minhas visitas constantes a Portugal. Se menciono alguns que já partiram, tenho a alegria do convívio com tantos outros que enriquecem o meu pensar. Desfilam na memória figuras a fazer lembrar o dizer de Albert Camus, pois “estavam à minha espera”.

Clique para ouvir, de Jorge Peixinho, Etude V – Dei Reihe-Courante na interpretação e J.E.M.:

https://www.google.com/search?q=Youtube+Jorge+Peixinho+Etude+Dei-Reihe+Courante+Martins+piano&oq=Youtube+Jorge+Peixinho+Etude+Dei-Reihe+Courante+Martins+piano&aqs=chrome..69i57.28671j0j7&sourceid=chrome&ie=UTF-8

Público atento esteve presente no Museu Nacional da Música, espaço cercado por inúmeros instrumentos antigos, inclusive um piano doado por Franz Liszt (1811-1886) quando de sua passagem para apresentações em Lisboa (1845). O MNM carrega uma aura que propicia ao intérprete uma interação outra.

O repertório escolhido para o derradeiro recital em Lisboa teve, em parte, um expresso saudosismo, como se o intérprete estivesse a homenagear não apenas o insigne Fernando Lopes-Graça, mas a agradecer a guarida que sempre teve ao longo dos anos e as amizades profundas advindas de um convívio permanente com músicos ou amantes das sonoridades.

Como acontecera em Gand, na Bélgica, ao finalizar o último recital na Europa em Lisboa senti emoção forte, lembranças afloraram da apresentação no auditório da Academia de Amadores em Julho de 1959 e pareceu-me que o ciclo se completava definitivamente, nele a conter toda uma verdadeira devoção pela música produzida em Portugal desde, no caso, Carlos Seixas (1704-1742) ao notável Eurico Carrapatoso (1962-), diletíssimo amigo. Foi o repertório desses três séculos que busquei, quando imergi em composições excelsas portuguesas, transmitir em recitais e gravações. Essas criações fizeram parte considerável do meu repertório.

As duas Sonatas de Carlos Seixas, em lá menor (71) e em Dó Maior (8), integraram o programa, juntamente com duas breves composições de Lopes-Graça, Dança Antiga das Bagatelas e Alcobaça dançando um velho fandango, da coletânea “Viagens na Minha Terra”. Sobre estas duas, retive durante muitas décadas os manuscritos autógrafos de Lopes-Graça. Ao chegar em Lisboa em Julho de 1959, disse ao notável compositor que gostaria de incluir no programa duas de suas peças. No dia seguinte presenteou-me com os manuscritos originais acima mencionados. Não faz oito anos doei-os à Casa Verdades de Faria em Cascais, onde se encontra o espólio de Lopes-Graça.

No programa inseri outras criações que me ligavam mais precisamente à Lisboa. Em 1983, tricentenário de nascimento de Jean-Philippe Rameau (1683-1764), apresentei a integral para cravo interpretada ao piano em dois recitais no Teatro São Luís. No presente, inseri a magnífica Suíte em Lá Maior. Criações de Francisco de Lacerda (1869-1934), Eurico Carrapatoso, Gilberto Mendes (1922-2016) e Francisco Mignone (1897-1986) completaram o programa.

Emoção maior espera-me após o recital. Convidados para o jantar, ao adentrarmos no restaurante Rústico-Luz, na sala maior para eventos do estabelecimento, um jantar promovido por amigos músicos portugueses, capitaneado pela ilustre regente coral e gregorianista sucessora de Júlia d’Almendra, Idalete Giga, reuniu cerca de trinta amantes da música. Resistir, quem há-de? Em dado momento, a intérprete de guitarra portuguesa Marta Pereira da Costa encantou os participantes com belas composições solo. Para finalizar, um bolo comemorativo de meus 70 anos de atividade pianística, 64 a tocar em Portugal, ratificou meu apreço incondicional à cultura portuguesa, às amizades fiéis e às terras lusitanas.

Ao longo dos blogs tenho salientado que meu afeto incondicional à música portuguesa instalado desde a juventude, a Carlos Seixas, a Lopes-Graça… apenas foi ratificado com os anos a passar. O leque se abriu. Findar os recitais europeus em Lisboa tem para este intérprete simbologia. Convenço-me de que Bélgica e Portugal, entre outros países que me são caros, como a França, são aqueles em que as raízes chegaram mais ao fundo. No caso de Portugal há os laços sanguíneos, mas a compor o amálgama existe o efeito humano, propiciado pelos elos de amizade que as décadas fortaleceram, e o musical, graças à qualidade de alguns notáveis compositores.

No próximo blog escreverei sobre as impressões da palestra com exemplos musicais na cidade de Évora, inúmeras vezes visitada para recitais, e a palestra durante o lançamento de meu segundo livro pela renomada Universidade de Coimbra, que teve, no evento, a comovente introdução do professor catedrático de História Medieval da Instituição, João Gouveia Monteiro.

The last recital in Europe was in Lisbon, the city where I first performed in Europe in 1959. The cycle comes to an end,  after 64 years of crossing the Atlantic for performances.

A Música como respiração

O objetivo de teu esforço deve ser a ação e não o que ela trará.
Não sejas como aqueles que,
para agir, têm necessidade desse estimulante:
a esperança da recompensa.
Ludwig van Beethoven (1770-1927)

Há que se pensar na coda, termo italiano tão utilizado para indicar o caminho final de uma música. A coda também está presente na vida do intérprete. Fase final, acordes em fortíssimo ou, à maneira da flama de uma vela que serenamente se extingue, sons em pianíssimo.

Desde a eclosão da pandemia pressentia que o término das apresentações públicas estava próximo. Se o técnico-pianístico não sofria alterações, há que se pensar que a mente sabe indicar, a todo o mecanismo físico a finalizar na ponta dos dedos, os rumos do silêncio quanto ao contato frente ao público após 71 anos. Anualmente pontuava poucos recitais, quase sempre a privilegiar repertórios ignotos representativos ou composições contemporâneas. Essa seleção teve o cunho pessoal sem concessões quanto à qualidade.

Já salientara em blog anterior que Gand, na Bélgica, e Lisboa seriam as cidades escolhidas para o encerramento das apresentações na Europa, sendo que as atividades ligadas à música prosseguiriam em termos literário-musicais. Continuarei o contato sensível com o piano e terei o prazer de tocar para aqueles que me cercam, intimamente, respirando os sons que me acompanham pela existência.

Ter escolhido as duas cidades para as despedidas europeias, pianística e presencialmente, tem outras explicações adicionais. Aos 85 anos, as viagens transatlânticas se tornaram um complicador. Espaços nas aeronaves progressivamente diminuídos na classe econômica, transporte da bagagem outro problema, aeroportos superlotados, lhaneza em extinção.


Gand, na Bélgica Flamenga, representa muito para este intérprete. Em blogs bem anteriores comento a relação primeira que se deu em torno de uma apresentação totalmente dedicada a Henrique Oswald com a participação de inúmeros excelentes músicos da Bélgica, sendo que atuei em toda a longa primeira parte na execução de música de câmara e piano solo e, na segunda, o coral Nove Canto dirigido magnificamente por Katrijn Friant interpretou a magnífica Missa de Réquiem do nosso mais importante compositor romântico. O concerto foi realizado no Muziekconservatorium de Gand no dia 18 de Novembro de 1995. No dia seguinte ao evento conheci, num instante ocasional já narrado em blogs bem anteriores, André Posman, diretor da programação dos concertos do De Rode Pomp e do selo que leva o mesmo nome. Em 1998, depois de várias apresentações que realizei no auditório, disse-me que chegara a hora de deixar a minha herança musical. As gravações se sucederam durante vinte anos, sempre a ter Johan Kennivé como engenheiro de som, um dos mais relevantes mestres do planeta. Em acréscimo, Johan é versado em música e psiquiatra. Como foram importantes para mim esses atributos somados! André acredita na perenidade do legado das suas gravações. Oxalá isso ocorra, apesar do selo De Rode Pomp, hélas, não mais existir. Quanto às gravações, sempre acreditei que elas devem ser realizadas nas melhores condições possíveis, algo impensável ao gravar cinco LPs no Brasil nos anos 1980.

Dos 25 CDs que gravei no Exterior, 21 foram realizados numa cidade próxima, Mullem, bem pequena, mas plena de charme. Na mágica e misteriosa capela Saint-Hilarius (século XI), anualmente gravava um ou dois CDs. Eram três sessões que tinham início nas fronteiras da meia-noite, prolongando-se até ao amanhecer. Jamais Kennivé pressionou-me quanto ao término das sessões. A anteceder as gravações realizava recitais na sala da De Rode Pomp a interpretar repertório que gravaria. De Rode Pomp mantinha uma revista a apresentar não apenas a programação do mês, como ensaios escritos por musicólogos relevantes da Bélgica e de outros países europeus.

As relações de amizade com André, sua esposa Jamila e segmento do meio musical gantois assinalaram a fidelidade absoluta. Jamila daria à luz gêmeos, que hoje são músicos do mais raro talento: Taha, pianista, Yassine, clarinetista. Nesses dias em Gand ouvi-os num ensaio interpretando, com um também jovem violoncelista, Jacob, trios de Beethoven e Brahms numa ótima execução, a lhes antever brilhante futuro.

Na foto de 2012, os gêmeos Taha e Yassine, Tycho e Trixie, estes filhos do dileto casal Tony e Tania Herbert, lar onde permaneço durante minhas viagens à Bélgica. A segunda foto foi tirada no dia 25 de Maio último.


No recital em uma das salas da antiga De Rode Pomp, que abrigava exposições de pinturas, hoje a servir para recitais solo ou de câmara, deu-se o longo recital, o derradeiro, após cerca de vinte em que me apresentei no antigo auditório da organização. Impossível não sentir emoção sabendo ser o último nessa tão querida cidade. A generosa acolhida e o rever velhos amigos, que estiveram presentes desde o recital de 1995, comoveram-me. Jean-Philippe-Rameau, Bach-Liszt, Schumann-Liszt, Lucien Posman, Gilberto Mendes, Francisco Mignone e Scriabine (12 Poemas) foram os compositores escolhidos.

De Rode Pomp mantinha uma programação de cerca de 120 apresentações anuais de artistas provenientes da Europa Ocidental e dos países eslavos, mormente os russos. O nível desses recitais estimulava as audiências, que acorriam quase diariamente aos eventos. Há um pulsar musical em Gand desde a Idade Média, que continua vivo. Ao ouvir o jovem trio Malatya, acima mencionado, renasceram neste veterano músico as esperanças de que a música clássica, erudita ou de concerto, apesar da massificação de gêneros sonoros voltados às multidões e que propiciam lucros extraordinários às patrocinadoras e àqueles que se apresentam, tem ainda cultores da nova geração com amadurecimento exemplar e qualidade ímpar, friso, em apreciável número, como me relataram vários músicos profissionais belgas.

Ao encerrar o recital interpretei de Francisco de Lacerda (1869-1934), como extraprograma, “Oraison dominicale des Castors”, pequena peça a representar a síntese da síntese do autor e que finaliza nas baixíssimas intensidades. Dediquei-a ao meu amigo Joep Huiskamp, que, ao longo dos mais de vinte anos, desloca-se com sua esposa Jonneke de Eindhoven, na Holanda, às cidades belgas em que me apresento. Em 2012 e 2019 o casal viajou para Coimbra e Lisboa, respectivamente, para outros recitais. Joep adora a obra de Francisco de Lacerda e os Açores, terra natal do compositor. A presença do também amigo, professor e pianista Alfonso Medinila que frequentou várias gravações realizadas em Mullem igualmente me comoveu.

Gand ficará gravada no meu de profundis pelas razões elencadas e por ter me proporcionado gravar, sempre à minha escolha, obras extraordinárias, a maioria tão pouco frequentada. Ter gravado um CD unicamente com obras de compositores belgas foi um raro privilégio.

Clique para ouvir, de Daniel Gistelinck, Resonances, na interpretação de J.E.M. O CD “New Belgian Etudes” contemplou 10 compositores belgas relevantes:

https://www.youtube.com/watch?v=4XflfeoeAl8

Clique para ouvir, de Lucien Posman, Le conte de l’Étude Modeste, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=nkuj97dvXYA

 

Os dois próximos blogs abordarão as atividades finais em Portugal.

In Ghent, Belgium, I gave my next-to-last recital in Europe this year, putting an end to my public pianistic activities. I now recall aspects that have been dear to me during the 27 years I visited this lovely city and where I’ve made everlasting friendships.