Encerra-se a breve e derradeira turnê

O que impede de saber não são
nem o tempo nem a inteligência,
mas somente a falta de curiosidade.
Agostinho da Silva
(”Pensamento em Farmácia da Província”)

Após os recitais em Gand e Lisboa, que marcaram o encerramento da minha atividade pianística na Europa, dei duas palestras, em Évora e Coimbra.

Desde o início do século apresento-me no Eborae Musica, prestigiada Escola de Música de Évora, sempre tão bem conduzida pela Professora Helena Zuber. Convidou-me para uma palestra com exemplos musicais para um público preferencialmente constituído por jovens estudantes de música do estabelecimento. Sempre que estive em Évora, os recitais se deram no Convento dos Remédios, na bela Igreja Nª Senhora dos Remédios, joia da arte barroca, hoje não mais destinada ao culto religioso.

Estou a me lembrar de um enigmático conceito do jornalista e historiador Joaquim Palminha Silva (1945-2015), que tive o prazer de conhecer na bela cidade, exposto em seu instigante livro “Évora cidade esotérica e misteriosa” (Europress, 2005): “…a cidade de Évora hipnotiza ainda hoje de forma intensa todos e cada um, graças à existência duma velada força magnética, espiritual, praticamente indecifrável”.

O propósito da palestra era claro, transmitir à juventude princípios que norteiam uma existência voltada à Música. Fi-lo, a compreender as intenções da Profª Helena Zuber. Enumerei alguns pontos que acredito basilares: disciplina; concentração; compromisso efetivo; dedicação; respeito às intenções dos ilustres compositores; desviar-se das concessões que deturpam desideratos precisos; distanciar-se dos holofotes, tantas vezes o canto das sereias; ater-se a dois fundamentos fulcrais, amor à Música e ser curioso. Creio que uma frase do grande músico francês Pierre Boulez (1922-2016) traduz o alcance conceitual do músico: “É necessário ter, diante da obra que escutamos, interpretamos e compomos, um respeito profundo como diante da existência, como uma questão de vida ou de morte”. Ao longo das décadas, mais e mais me convenço de que a Música requer determinados sacrifícios, diferentes certamente de tantas outras atividades. O intérprete, no caso, não pode prescindir do estudo do instrumento escolhido, num labor diário que o faz crescer. Esse “sacrifício” não se concretiza como tal não fosse o amor pela Música. A cada conquista do instrumentista há um prazer indizível, próprio dessa mágica dedicação.

Após a palestra interpretei algumas peças de compositores portugueses e também uma transcrição extraordinária, o “Prelúdio e Fuga em lá menor” de Bach-Liszt que, gravado pelo técnico Gavela, da equipe do Eborae Musica, brevemente estará no Youtube. Vários alunos vieram ter comigo após o evento, a fim de questionar-me sobre temas voltados à nossa área de atuação.

Esteve presente no Eborae Musica o compositor e professor João Francisco Nascimento. Uma alegria. Dele interpretei, já no longínquo 2012, um instigante e precioso Estudo que muito me agrada: “Fúria, Volutas e Saraivadas”. Seu colega, o ilustre Eurico Carrapatoso, recomendou-me essa peça, que tive imenso prazer em interpretar.

Clique para ouvir, de João Francisco Nascimento, Estudo “Fúria, Volutas e Saraivadas”, gravado na Igreja Nª Senhora dos Remédios, em Évora, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=AWyITgFlKZI

Como nas tantas outras oportunidades, fomos conduzidos até Évora pela dileta amiga, gregorianista impecável e regente coral, Professora Idalete Giga.

Coimbra. Estou a me recordar das viagens que fiz de comboio nas décadas de 1980-1990, a sair de Lisboa para o Norte de Portugal a fim de recitais programados. Habitualmente há rápida parada em Coimbra, antecedida pelo lento deslizar do comboio ao atravessar o rio Mondego, momentos para o vislumbre da torre da Universidade fundada em 1290. Foi em 2004 o convite do Professor Catedrático João Gouveia Monteiro, notável medievalista, e do saudoso Professor Doutor José Maria Pedrosa Cardoso, musicólogo ilustre, para recital de piano e palestra no Colóquio “Carlos Seixas de Coimbra”, a festejar o tricentenário de nascimento do grande músico conimbricense. Apresentei-me num recital inteiramente dedicado ao compositor na magnífica Biblioteca Joanina. Ao longo dos anos, cerca de uma dezena de vezes lá me exibi com repertórios vários, mas sempre a inserir no programa criações de Seixas e de outros autores portugueses. Certamente o mais belo cenário que vivenciei durante a minha atuação como pianista.

Clique para ouvir, de Carlos Seixas, Sonata nº 50, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=uIUhQc_giNs

O convite do Professor Gouveia Monteiro para a apresentação do meu segundo livro publicado pela Imprensa da Universidade de Coimbra resultou na palestra de apresentação que proferi na belíssima sala nobre da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, não sem antes as intervenções da atual Diretora da BGUC, Professora Carlota Simões, e do Prof. Gouveia Monteiro, que fez a leitura de substancioso texto de sua lavra, a historiar a importância da Música dos tempos de Confúcio (m. 479 a. C) à Grécia Antiga, Roma, Idade Média, levando-nos até a contemporaneidade. Guardarei no coração as palavras do Profº Gouveia Monteiro ao se referir a este músico. Na minha fala, salientei o meu apreço incondicional à Cultura Portuguesa. O segundo livro, ora publicado pela Imprensa da Universidade de Coimbra, IUC, “Impressões sobre a Música Portuguesa” e outros temas (II), apresenta 63 textos extraídos do meu blog, a grande maioria direcionada à Música Portuguesa, mas a abarcar olhares lançados a outras áreas da Cultura  de Portugal: literatura, poesia, aventura e personalidades.

Docentes relevantes da Universidade estiveram presentes. Entre eles: “Prof. Alexandre Dias Pereira, ex-Diretor da Imprensa da Universidade de Coimbra, a sua Diretora-Adjunta, Dra. Maria João Paez, e integrantes da IUC, entre os quais a Dra. Maria de Lurdes Leston. Presente também à sessão, o Prof. Manuel Portela, atual Diretor das Bibliotecas da Universidade e que fez a primeira saudação no evento. Após a palestra, a convite do Prof. Gouveia Monteiro e da esposa Leonor, minha filha Maria Beatriz e eu vivemos momentos inefáveis na morada do casal.


De regresso a Lisboa, convidado pelo competente escritor e jornalista Joaquim Vieira, assisti em sua morada ao documentário que brevemente será lançado sobre o grande compositor Fernando Lopes-Graça. Joaquim Vieira colheu material precioso através de entrevistas com músicos relevantes que cultuam a obra do mestre nascido em Tomar. Honra-me ter participado do documentário com breves comentários.

Ao alçar voo em direção ao Brasil, Maria Beatriz tirou bela foto. Encerra-se o ciclo que me levou mais de cinquenta vezes a Portugal. Há décadas me manifesto a dizer que jamais diferenciei meu afeto entre os dois países. Se a influência paterna foi decisiva desde a infância, a consolidação se deu através do convívio privilegiado que mantive em terras lusíadas com figuras que permanecerão no meu de profundis. Tenho certa idiossincrasia pela inteligência artificial, mercê de avanços que se processam com velocidade a não dar tempo para a assimilação, mormente nos meus 85 anos. Contudo, o WhatsApp permite a perenização dos afetos através dos contatos imediatos.

Haverá mais um recital, que se dará em Santos, na Pinacoteca Benedito Calixto no dia 24 de Agosto. Escolhi a cidade praiana para a derradeira apresentação pública. A fidelidade de uma amizade em torno da música é a responsável. O insigne compositor da segunda metade do século XX, saudoso amigo Gilberto Mendes (1922-2016), nasceu em Santos e foram várias as apresentações no Museu, sempre com a presença de Gilberto Mendes e a esposa Eliane.

My musical activity in Europe comes to an end. Lectures were given in Évora and Coimbra, the city that launched my second book, “Impressões sobre a Música Portuguesa e outros temas” (Impressions on Portuguese Music and other subjects). I will continue to play, but privately for a small circle of friends. Research will continue and two books are in mind. The 70 years of public performances, usually in small rooms (my preference), with a repertoire that preferably includes rediscovered or contemporary works of value, have been a gift in my already long existence.