A Música como respiração
O objetivo de teu esforço deve ser a ação e não o que ela trará.
Não sejas como aqueles que,
para agir, têm necessidade desse estimulante:
a esperança da recompensa.
Ludwig van Beethoven (1770-1927)
Há que se pensar na coda, termo italiano tão utilizado para indicar o caminho final de uma música. A coda também está presente na vida do intérprete. Fase final, acordes em fortíssimo ou, à maneira da flama de uma vela que serenamente se extingue, sons em pianíssimo.
Desde a eclosão da pandemia pressentia que o término das apresentações públicas estava próximo. Se o técnico-pianístico não sofria alterações, há que se pensar que a mente sabe indicar, a todo o mecanismo físico a finalizar na ponta dos dedos, os rumos do silêncio quanto ao contato frente ao público após 71 anos. Anualmente pontuava poucos recitais, quase sempre a privilegiar repertórios ignotos representativos ou composições contemporâneas. Essa seleção teve o cunho pessoal sem concessões quanto à qualidade.
Já salientara em blog anterior que Gand, na Bélgica, e Lisboa seriam as cidades escolhidas para o encerramento das apresentações na Europa, sendo que as atividades ligadas à música prosseguiriam em termos literário-musicais. Continuarei o contato sensível com o piano e terei o prazer de tocar para aqueles que me cercam, intimamente, respirando os sons que me acompanham pela existência.
Ter escolhido as duas cidades para as despedidas europeias, pianística e presencialmente, tem outras explicações adicionais. Aos 85 anos, as viagens transatlânticas se tornaram um complicador. Espaços nas aeronaves progressivamente diminuídos na classe econômica, transporte da bagagem outro problema, aeroportos superlotados, lhaneza em extinção.
Gand, na Bélgica Flamenga, representa muito para este intérprete. Em blogs bem anteriores comento a relação primeira que se deu em torno de uma apresentação totalmente dedicada a Henrique Oswald com a participação de inúmeros excelentes músicos da Bélgica, sendo que atuei em toda a longa primeira parte na execução de música de câmara e piano solo e, na segunda, o coral Nove Canto dirigido magnificamente por Katrijn Friant interpretou a magnífica Missa de Réquiem do nosso mais importante compositor romântico. O concerto foi realizado no Muziekconservatorium de Gand no dia 18 de Novembro de 1995. No dia seguinte ao evento conheci, num instante ocasional já narrado em blogs bem anteriores, André Posman, diretor da programação dos concertos do De Rode Pomp e do selo que leva o mesmo nome. Em 1998, depois de várias apresentações que realizei no auditório, disse-me que chegara a hora de deixar a minha herança musical. As gravações se sucederam durante vinte anos, sempre a ter Johan Kennivé como engenheiro de som, um dos mais relevantes mestres do planeta. Em acréscimo, Johan é versado em música e psiquiatra. Como foram importantes para mim esses atributos somados! André acredita na perenidade do legado das suas gravações. Oxalá isso ocorra, apesar do selo De Rode Pomp, hélas, não mais existir. Quanto às gravações, sempre acreditei que elas devem ser realizadas nas melhores condições possíveis, algo impensável ao gravar cinco LPs no Brasil nos anos 1980.
Dos 25 CDs que gravei no Exterior, 21 foram realizados numa cidade próxima, Mullem, bem pequena, mas plena de charme. Na mágica e misteriosa capela Saint-Hilarius (século XI), anualmente gravava um ou dois CDs. Eram três sessões que tinham início nas fronteiras da meia-noite, prolongando-se até ao amanhecer. Jamais Kennivé pressionou-me quanto ao término das sessões. A anteceder as gravações realizava recitais na sala da De Rode Pomp a interpretar repertório que gravaria. De Rode Pomp mantinha uma revista a apresentar não apenas a programação do mês, como ensaios escritos por musicólogos relevantes da Bélgica e de outros países europeus.
As relações de amizade com André, sua esposa Jamila e segmento do meio musical gantois assinalaram a fidelidade absoluta. Jamila daria à luz gêmeos, que hoje são músicos do mais raro talento: Taha, pianista, Yassine, clarinetista. Nesses dias em Gand ouvi-os num ensaio interpretando, com um também jovem violoncelista, Jacob, trios de Beethoven e Brahms numa ótima execução, a lhes antever brilhante futuro.
Na foto de 2012, os gêmeos Taha e Yassine, Tycho e Trixie, estes filhos do dileto casal Tony e Tania Herbert, lar onde permaneço durante minhas viagens à Bélgica. A segunda foto foi tirada no dia 25 de Maio último.
No recital em uma das salas da antiga De Rode Pomp, que abrigava exposições de pinturas, hoje a servir para recitais solo ou de câmara, deu-se o longo recital, o derradeiro, após cerca de vinte em que me apresentei no antigo auditório da organização. Impossível não sentir emoção sabendo ser o último nessa tão querida cidade. A generosa acolhida e o rever velhos amigos, que estiveram presentes desde o recital de 1995, comoveram-me. Jean-Philippe-Rameau, Bach-Liszt, Schumann-Liszt, Lucien Posman, Gilberto Mendes, Francisco Mignone e Scriabine (12 Poemas) foram os compositores escolhidos.
De Rode Pomp mantinha uma programação de cerca de 120 apresentações anuais de artistas provenientes da Europa Ocidental e dos países eslavos, mormente os russos. O nível desses recitais estimulava as audiências, que acorriam quase diariamente aos eventos. Há um pulsar musical em Gand desde a Idade Média, que continua vivo. Ao ouvir o jovem trio Malatya, acima mencionado, renasceram neste veterano músico as esperanças de que a música clássica, erudita ou de concerto, apesar da massificação de gêneros sonoros voltados às multidões e que propiciam lucros extraordinários às patrocinadoras e àqueles que se apresentam, tem ainda cultores da nova geração com amadurecimento exemplar e qualidade ímpar, friso, em apreciável número, como me relataram vários músicos profissionais belgas.
Ao encerrar o recital interpretei de Francisco de Lacerda (1869-1934), como extraprograma, “Oraison dominicale des Castors”, pequena peça a representar a síntese da síntese do autor e que finaliza nas baixíssimas intensidades. Dediquei-a ao meu amigo Joep Huiskamp, que, ao longo dos mais de vinte anos, desloca-se com sua esposa Jonneke de Eindhoven, na Holanda, às cidades belgas em que me apresento. Em 2012 e 2019 o casal viajou para Coimbra e Lisboa, respectivamente, para outros recitais. Joep adora a obra de Francisco de Lacerda e os Açores, terra natal do compositor. A presença do também amigo, professor e pianista Alfonso Medinila que frequentou várias gravações realizadas em Mullem igualmente me comoveu.
Gand ficará gravada no meu de profundis pelas razões elencadas e por ter me proporcionado gravar, sempre à minha escolha, obras extraordinárias, a maioria tão pouco frequentada. Ter gravado um CD unicamente com obras de compositores belgas foi um raro privilégio.
Clique para ouvir, de Daniel Gistelinck, Resonances, na interpretação de J.E.M. O CD “New Belgian Etudes” contemplou 10 compositores belgas relevantes:
https://www.youtube.com/watch?v=4XflfeoeAl8
Clique para ouvir, de Lucien Posman, Le conte de l’Étude Modeste, na interpretação de J.E.M.
https://www.youtube.com/watch?v=nkuj97dvXYA
Os dois próximos blogs abordarão as atividades finais em Portugal.
In Ghent, Belgium, I gave my next-to-last recital in Europe this year, putting an end to my public pianistic activities. I now recall aspects that have been dear to me during the 27 years I visited this lovely city and where I’ve made everlasting friendships.
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