E chegou…

O presente é o futuro tentando ser;
Assim o meio e o fim.

Agostinho da Silva
(“Espólio”)

Encerrar em definitivo a atividade pianística pública ocorreu voluntariamente. Haveria de acontecer e aconteceu. Em 2019, pouco antes da pandemia, encerrei as gravações na mágica Capela Saint-Hilarius, em Mullem (século XI), na região flamenga da Bélgica. Findei as apresentações europeias em Gand, nessa região, e em Portugal. No Brasil, o último recital se deu na aconchegante sala da Pinacoteca Benedicto Calixto, em Santos.

O término pode advir voluntariamente ou não. Moléstias neurológicas, acidentes que inviabilizem em definitivo o ato de tocar um instrumento, sem a possibilidade de reversão por parte do músico, podem levá-lo à depressão ou à busca de alternativa. A relevante pianista francesa Monique de La Bruchollerie (1915-1972) sofreu grave acidente de carro em 1966 na Romênia, ficando incapacitada para prosseguir a carreira de concertista, dedicando-se a seguir ao magistério no Conservatório Nacional em Paris. Quanto à depressão, o prolongamento da atividade em faixa etária avançada, período em que se acentuam problemas técnico-pianísticos e da mente, recebe por parte do público a benevolência e o respeito ao passado do intérprete. No caso dos mais notáveis, e a história tem exemplos claros, o público vai à sala de espetáculo para ouvir a lenda, independentemente de falhas durante a récita. Mieczysław Horszowski (1892-1993) deu recitais a beirar os 100 anos!!! Saber o momento de encerrar deveria ser ato pessoal. O notável pianista Alfred Brendel (1931- ) finalizou a brilhante carreira com tournée pela Europa, oferecendo o último antológico recital na cidade de Viena em 2008. Entrevistado, respondeu a uma pergunta a respeito da sua magnífica apresentação: “há setenta anos estou diante do público. Já não basta?”.

Estou a me lembrar de um de meus professores em Paris, a legendária pianista Marguerite Long (1874-1966). Tive o privilégio de assistir à sua última apresentação pública no Théâtre des Champs Elysées aos 3 de Fevereiro de 1959, a interpretar a “Ballade” de Fauré (1845-1924) acompanhada pela Orquestra Nacional dirigida por D.E. Inghelbrecht. Após o memorável concerto, pétalas de rosas jogadas por admiradores placidamente caíram sobre o palco. Inesquecível.
Mutatis mutandis, despedir-se voluntariamente do público pode, por outro lado, revestir-se da certeza de que a dedicação não foi em vão.

Após a leitura de meus últimos blogs, o notável regente coral Luiz de Godoy, que tive o privilégio de ter como aluno na USP, escreveu-me a dizer que presenciara apresentações de dois ilustres regentes: “Aqui na Europa, tive a honra de presenciar os concertos finais de alguns músicos célebres, com muita comoção. Assisti aos ensaios do último concerto de Claudio Abbado no Musikverein de Viena e, também lá, da última Paixão Segundo São Mateus de J.S.Bach regida por Harnoncourt! Inesquecíveis! Brilhantes!”.

Guardando as devidas proporções, dei meu último recital público nesse dia 31 de Agosto. Observei, em blogs anteriores, que a escolha da Pinacoteca teve razões múltiplas. A realização do recital levou-me à comoção. Após a apresentação da competente Cristina Guedes, Presidente do Conselho da Fundação da Pinacoteca Benedicto Calixto, o Diretor Presidente da TV Tribuna, do jornal “A Tribuna” e da Pinacoteca Benedicto Calixto, Dr. Roberto Clemente Santini, depois de pronunciamento, ofereceu-me o porta-retrato acima com duas fotos, uma do recital que apresentei em Novembro de 2008 e, de maneira “mágica”, dada a rapidez do processo, a da récita que finalizara minutos antes. Presentes, a Diretora de Projetos Especiais do Grupo “A Tribuna”, Arminda Augusto, o Presidente de honra da Pinacoteca, Geraldo Pierotti e a viúva do notável e saudoso compositor Gilberto Mendes, Eliane Mendes. Um público eclético compareceu ao evento.

A preceder o recital, no período da tarde dei palestra no mesmo recinto. Tive a grata surpresa de conhecer e ouvir um pouco, pois não se tratava de masterclass, jovens talentos que me causaram forte impressão. É bom sentir que ainda há esperanças no que concerne a preservação da música erudita ou de concerto no Brasil. Oxalá prosperem.


O convite inicial do dileto amigo Flávio Amoreira, poeta, escritor e crítico literário, foi prontamente aceito. Confesso ao prezado leitor que vivi em Santos, antes, durante e depois da minha última apresentação pública, momentos inefáveis.

Contei com a presença da minha mulher Regina e das duas filhas, Maria Beatriz e Maria Fernanda. Quantas décadas elas me ouviram estudar repertórios os mais variados, sempre apoiando amorosamente!

And then we come to the recital that definitively ends my public pianistic activity. It had to come, and it did. At the age of 85, feeling well both physically and mentally, I realize that fortunately the last recital took place in Santos, the city I chose to end my career and where I lived some ineffable moments.