A alternância como possibilidade

Lerás bem quando leres o que não existe
entre uma página e outra da mesma folha.
(“Espólio”)

Escrevendo ou lendo nos unimos para além do tempo e do espaço,
e os limitados braços se põem a abraçar o mundo;
a riqueza dos outros nos enriquece a nós. Leia.
(“Notícias”)
Agostinho da Silva

Após a leitura do último blog, “Canta… Sabiá!”, livro de Carolina Ramos, recebi muitas mensagens louvando a obra. A autora, hoje com 99 anos, mantém-se ativa na prosa e na poesia, para gáudio de seus leitores.

Marlene, leitora fiel, questiona-me sobre a alternância de livros que eu comento, como os técnicos, máxime os sobre música em seus vários matizes, àqueles de literatura, da mais densa à mais amena.

No menu do blog há o item Livros (Resenhas e comentários – lista) e, ao acessá-lo, a relação completa de todos os livros resenhados desde a criação deste blog, aos 2 de Março de 2007, e as respectivas datas da publicação.

Fez-me pensar a observação da leitora, fato que me leva à comparação desse alternar com determinadas formas musicais. A Suíte, forma musical que proliferou nos séculos XVII e XVIII, alternava danças rápidas com as mais lentas. Em fins do século XVIII, e mormente na primeira metade do XIX, a forma Sonata, com os seus três ou quatro movimentos, também seguia o mesmo processo de apresentar andamentos vivos e mais lentos, numa perene alternância.

A partir da juventude, já inteiramente voltado à música e ao piano, mercê da influência de nosso Pai e sua visão cultural abrangente, a leitura se nos apresentava como a água pura da fonte e os autores clássicos portugueses e franceses faziam parte essencial de nosso aperfeiçoamento. Dessa vasta bibliografia, o Pai permitia escolhas a partir da inclinação de cada filho.

Durante o período de estudos pianísticos e musicológicos em Paris, ainda jovem, acentuou-se a assiduidade aos livros. Estou a me lembrar da quantidade de romances franceses que percorri com avidez, sendo que de alguns autores, como Saint-Exupéry, Georges Bernanos, Albert Camus, tive a alegria de ler as integrais. Naquele longínquo período, os livros e tratados musicológicos mereciam a minha devotada atenção.

Com o passar das décadas, o piano sempre a reinar, acentuou-se o prazer pela leitura. Contudo, desenvolvia-se o gosto pelo aprofundamento voltado à música. As pesquisas se irmanavam às interpretações numa combinação estimulante.

Entendamos as leituras. Se a concentração maior era destinada àquelas da minha área de atuação, nem por isso deixava de intercalar outras: romances, aventuras, poesias… Se, por um lado, pesquisas musicais precisas prendiam minha atenção durante período determinado, tantas foram as vezes em que temáticas diferentes me entusiasmavam. Houve um período em que as aventuras na região do Himalaia levaram-me à leitura de inúmeros livros, assim como as tantas narrativas do aventureiro-escritor francês Sylvain Tesson em suas incríveis andanças pelo mundo. Compartilhava as observações a respeito com o ilustre compositor francês François Servenière, admirador confesso de seu conterrâneo andarilho.

A alternância da leitura, realizada não sistematicamente, depende dos aprofundamentos em andamento. Não obstante, como é benfazejo esse interregno que se faz necessário! Sob outro ângulo, nem todo conteúdo de livros da minha área transmito aos leitores, dado o fato analítico preciso. Há casos, raros, em que, ao receber um livro sobre determinado campo da ciência, completamente distante das minhas leituras habituais, lamento não ter a capacidade de seguir o roteiro proposto. Seria leviano se quisesse resenhar por resenhar. Mais de uma vez confessei àqueles que me brindaram com seus livros a minha incapacidade para certas leituras com temática bem especializada em área na qual sou nulo, como as ciências exatas. Meu livro “O som pianístico de Claude Debussy” (São Paulo, Novas Metas, 1982) torna-se, em determinados capítulos, de difícil entendimento àqueles desconhecedores da notação musical.

Se, da ampla bibliografia sobre música, escolho preferencialmente os livros voltados à minha área, reportando-me principalmente às obras dos compositores que elegi durante a já longa trajetória e, nesse compartimento, contando-se a vida do criador, a análise da produção que estou a focalizar e mais a bibliografia paralela que corrobora o aprofundamento, como estilo de determinada época, aspectos filosóficos e outros mais; ao me dirigir à literatura não musical realmente, nesse interregno, tenho a nítida sensação de uma categoria de repouso. Revisito os clássicos sempre, mas tantos outros temas prendem meu interesse igualmente.

Acrescentaria à gentil leitora que temos de entender nossas limitações. Aceitando-as, nossos objetivos se delineiam mais claramente. Não se daria o mesmo para o ouvinte leigo? Nos meus 25 CDs gravados no Exterior, há determinadas composições contemporâneas extraordinárias para aqueles ligados às atividades musicais específicas, mas “impossíveis” de serem assimiladas pelo ouvinte habitual. Gravei-as com o maior empenho, após constatar a qualidade das composições, mas tendo a certeza da limitação do alcance receptivo.

Do repertório apontado, apresento ao leitor duas composições rigorosamente distintas, mas ambas, entendo, de altíssima qualidade composicional.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, Estudo op. 8 nº 12, “Patetico”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=6H_T5I4BYn0

Clique para ouvir, de Daniel Gistelinck, “Résonances”, na interpretação de J.E.M.:

(463) Daniel Gistelinck – Résonances – José Eduardo Martins – piano – YouTube

Transmito à leitora que apontou tão interessante questão que um dos prazeres que tenho em relação à leitura é partir temporariamente para as derivações literárias qualitativas. Creio firmemente que esse balanceamento corrobora o equilíbrio mental.

Em recente artigo publicado em “A Tribuna” de Santos, o poeta, escritor e crítico literário Flávio Viegas Amoreira observa:

“É sabido que a alta literatura é sempre pedagógica, é sabido que ler os clássicos nos modifica (quase sempre para melhor) por toda a vida, é sabido que ler é uma atividade insuperável em busca de autoconhecimento e é sabido que escolas, governos e pais têm feito pouco para motivar os jovens ao hábito sagrado da leitura”.

After the last post, a faithful reader asked why I interweave books specifically about music with novels, history, arts, culture and adventuresI firmly believe that this practice supports mental equilibrium.