Transformações no século XXI
Viva sempre o presente com discernimento,
assim o passado será uma bela lembrança
e o futuro não se apresentará como um espantalho.
Franz Schubert (1797-1828)
O blog anterior suscitou uma série de questionamentos por parte de fiéis leitores. Se a música em suas essencialidades, respeito à partitura ou arbitrariedade, divide os intérpretes, os seguidores que acompanham os blogs semanais estariam interessados também em aspectos que intervêm na trajetória do músico, como o empresário, personagem que o agenda, mas cujos interesses majoritariamente são outros. Será ele que entrará em contato com agentes locais ou espalhados pelo mundo, cuidará da divulgação frente aos meios precisos, dos cachês a serem recebidos e estará atento à recepção pública. Questionam igualmente sobre a gravação e suas transformações sob o aspecto tecnológico. Um leitor ponderou se ela se manterá perene.
A se considerar a índole do intérprete. Muitos são os fatores que distanciam os executantes mediáticos que se adaptam aos desideratos do mercado, daqueles que, buscando caminhos outros não recebem a atenção maior desse sistema sempre em ebulição. Inúmeras biografias de intérpretes que se notabilizaram retratam a relação nem sempre adequada entre o artista e o agente, pois choques podem ocorrer, mercê do “compromisso” deste com o gosto vigente. Como qualquer empresário atuando em ramos os mais diversos, interessa-lhe os resultados. Esse tema relevante, tratado anos atrás em posts sobre a interpretação, adquire importância maior no presente, fruto das transformações dos costumes, do gosto e da proliferação sempre acentuada da música de altíssimo consumo e descartável que atrai as novas gerações. Contrariamente, o pouco espaço planetário à Música de Concerto, por vezes, cede à participação de músicos que praticam gêneros populares em suas apresentações. Diria, mão única.
Um aspecto preocupante relativo às gravações, faz-me lembrar da frase do ilustre arquiteto português António Menéres, dileto amigo, que em seu livro “Crônicas contra o Esquecimento” comenta: “Sempre que posso olho os meus livros, quer as lombadas simplesmente cantonadas, a sua cor, os títulos das obras: mesmo sem os abrir adivinho o seu conteúdo e, quando os folheio, reconheço as leituras anteriores, muitas das quais estão sublinhadas, justamente para me facilitar outros e novos convívios” (vide blog: “Crônicas contra o esquecimento”, 29/07/2007). Creio basilar esse testemunho a valorizar o livro físico percorrido no passado e que o simples olhar sua lombada faz reviver lembranças… Esse olhar a ativar a memória faz-me lembrar da adolescência, dos discos 78 rotações substituídos pelos Lps, um avanço considerável nessa compactação do tempo. Destes tinha meu Pai cerca de 3.000, dedicados à música clássica ou erudita nas suas várias configurações. Cada capa de Lp nos fazia antever a escuta.
Entre 1979 e 1988 gravei cinco LPs a privilegiar a obra do nosso notável compositor romântico Henrique Oswald (1852-1931) para piano solo e camerística. Das fronteiras do século XX-XXI a 2019 foram 25 CDs gravados no Exterior, Bulgária, Portugal e majoritariamente na Bélgica. O CD representou um avanço tecnológico e os ouvintes mantinham coleções, havendo inclusive móveis especiais a venda para abrigá-los. Em nossas terras e alhures, amigos e colegas músicos mantinham com certo orgulho suas coleções privilegiando seus respectivos gostos. O selo para o qual gravei na Bélgica, De Rode Pomp em Gand, do meu diletíssimo amigo, André Posman, lançava anualmente uma série de CDs impecavelmente gravados e interpretados por músicos europeus e da Rússia. Eu era o único das Américas a gravar. Jamais André sugeriu um programa a ser gravado, dando-me total liberdade na escolha do repertório, fato raríssimo entre os selos internacionais que inúmeras vezes indicam o repertório a ser gravado, geografia mutante e tempo de duração das sessões de gravação. Hoje o CD, em seus suspiros finais, não deixa sucessor físico, palpável, e todo o acervo colecionável e registrado dos primórdios do século XX em gravações rudimentares e fundamentais à qualidade atual se esvai, situadas que estarão doravante nas nuvens, na impalpabilidade online. Aparelhos de CD não mais se encontram na maioria das grandes lojas. Acredito que a menção a esses fatos evidencia a etapa final do objeto físico, CDs no caso. Durante os 17 anos escrevi vários blogs comentando cada CD gravado e as causas que motivaram a escolha do repertório.
Em programa televisivo que assisti em França, debatedores comentavam lá pelos anos 2010 que a música erudita ou clássica representava cerca de 4% de adeptos nesse amplo universo sonoro, considerando-se os ouvintes presenciais ou através das gravações. Antolha-se-me que, pelo fato de todo esse extraordinário acervo acumulado em de mais de um século, não mais estar à disposição fisicamente, mas através do streaming, poderá causar a diminuição maior de aficionados. As lombadas dos livros que abriam a memória de António Menéres ao já lido “…mesmo sem os abrir adivinho o seu conteúdo…”, a visualização das capas dos CDs que descortinavam o sonoro neles contidos, reativando a memória e essa presença física dos itens, corroboraram a retenção dos conteúdos. Os livros ainda persistem, os CDs saem de cena.
Teria o público de concerto envelhecido? Estou a me lembrar de um concerto magnífico na Antuérpia em que era apresentada pela orquestra de Flandres uma Sinfonia de Gustav Mahler. O público que lotou a sala mais parecia um campo de neve onde preponderavam cabeças brancas. Sinais do tempo, preocupantes.
É sempre bom lembrar que a grande maioria dos ouvintes de música erudita ou de concerto não é representada pela juventude, sendo que aqueles acima da meia idade, cultores da música clássica, erudita ou de concerto têm maior dificuldade de se adaptar à vertiginosa caminhada em direção à inteligência artificial. Sob outro prisma, as novas gerações, como um todo, sofrem tantos impactos sonoros dos gêneros “musicais” de alto consumo que fatalmente as desviam dos conteúdos clássicos consagrados. O mesmo se dá com a Cultura literária atingida no cerne por tantas obras rigorosamente descartáveis, mas que atingem tiragens elevadas.
Gerações futuras só conhecerão auditivamente o extraordinário acervo criativo dos compositores que permanecem e dos intérpretes do passado através do imaterial. E esse imaterial já se afigura como preocupante realidade.
In response to questions from readers, in this post I discuss the manager role in relation to the performer, marketing influences on the music industry, and the issue of recording with the end of the CD, after so many transformations of sound recording technology through time.
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