Artistas da Bélgica e da Holanda
O meu ponto de partida será sempre a cabeça,
o desenho ajuda a ver o caminho,
mas o princípio é sempre a cabeça. Sempre.
Álvaro Siza Vieira (1933-)
notável arquiteto português
A Bélgica, máxime a cidade de Gent, permanece como parte essencial da minha atividade musical. Foram mais de duas dezenas de viagens à cidade plena de mistérios. Recitais pelo país, gravação da maioria dos meus 25 CDs na já tão mencionada Capela de Saint-Hilarius (século XII), em Mullem, perdida na planície flamenga.
Três artistas belgas me privilegiaram com desenhos: Yves Dendal (1933-2001), Jan de Wachter (1960-) e Lutgard Wittocx (1956-). Joep Huiskamp (1956-), holandês, já esteve presente em blogs anteriores, pois nossa amizade irretocável data do ano 2000. Os quatro têm currículos significativos, com exposições em seus países e alhures.
Os dois primeiros frequentavam a galeria La Perseveranza, em Gand, que ficava num anexo da empresa De Rode Pomp para cujo selo gravei tantos CDs.
Yves Dendal em suas telas sofreu a influência da corrente surrealista. Pertenceu em 1955 ao movimento da “Jovem pintura belga”, que abrigou vários artistas de vanguarda. Dendal compareceu a vários recitais que apresentei em Gand e sempre me presenteava com desenhos que surgiam durante a interpretação. Figura tranquila, despojado de qualquer exibicionismo, Yves Dendal frequentava a temporada da De Rode Pomp e não deixava de registrar em seus desenhos aquilo que considerava essencial, o que emanava do intérprete no instante do acontecido.
Quando apresentei a integral dos “Estudos”, a “Fantasia op.28”, o “Poema Trágico” op. 34 e “Vers la Flamme” op. 62, de Alexandre Scriabine (1872-1915), compareceram alunos de piano da Rússia que estavam fazendo estágio no Conservatório Real de Gand. Após o recital e a recepção habitual da De Rode Pomp, o professor dos jovens, russo também, perguntou se eu poderia explicar aos seus alunos a minha concepção pianística da obra para piano de Scriabine. Aquiesci com prazer e Yves Dendal fixou aqueles momentos em plena madrugada.
Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, “Poème Tragique”op. 34, na interpretação de J.E.M.
Alexander Scriabin – Poème Tragique Opus 34 – José Eduardo Martins – piano
Jan de Wachter desenvolve várias ações em sua arte visual. Pintor, desenhista, escultor, tem merecido forte acolhida da crítica especializada. Um dos seus projetos, Ypres-Palmyr, esteve voltado ao impacto do terrorismo em Paris (Charlie Hebdo, 2015), no aeroporto de Zaventem e no metrô de Bruxelas (2016), e na destruição do sítio arqueológico sírio de Palmira (2015 a 2017). Jan de Wachter estava a realizar uma exposição na La Perseveranza com significativas ilustrações relacionadas aos filmes do cineasta russo Andrei Tarkovsky (1932-1986) e compareceu a um dos meus recitais, contemplando-me dias após, para minha surpresa, com trabalhos em técnica mista evocando três compositores constantes no programa apresentado que dediquei à música contemporânea luso-brasileira. Seus nomes ou títulos das peças estão fixados em grafite sobre pátina com coloração suave: Gilberto Mendes (1922-2016), lembrado através do “Estudo – Ex-tudo – Eis tudo pois”, Jorge Peixinho (1940-1995) in memoriam, “Etude 5 Die-Reihe Courante” e Paulo Costa Lima, “Ponteio-Estudo”.
Clique para ouvir, de Paulo Costa Lima, “Ponteio-Estudo”, na interpretação de J.E.M.
https://www.youtube.com/watch?v=OeFKNexsoeM
Em outros dois trabalhos artísticos, sem fazer referência a autores, apenas insere as mãos do pianista entre as abstrações.
A lembrança do nome do intérprete.
Lutgard Wittocx, pintora e desenhista, tem série com músicos em sua considerável obra. Observa-os durante as apresentações, fixando-se nas expressões e nas mãos. No seu site, uma crítica que revela algumas das suas atitudes frente à criação: “Na expressão facial e nas mãos, a artista capta o abandono com que os músicos tocam os seus instrumentos. No entanto, é o desenho que transmite ao espectador o impacto da música. A atividade do músico ganha vida graças à expressividade tão típica de Wittocx. O carácter do seu desenho manifesta-se de forma dinâmica. É a eloquência de apenas algumas linhas bem resolvidas”. O desenho foi realizado durante recital que apresentei em Schilde, região flamenga na província da Antuérpia.
Joep Huiskamp foi várias vezes mencionado neste espaço, pois acompanhou sempre os meus recitais apresentados na Bélgica de 2000 a 2023. Compareceu com sua esposa Joeneke aos recitais em Gand, Bruxelas, Antuérpia, Coimbra e Lisboa, vindo de Eindhoven, onde teve ação relevante junto à renomada Universidade de Tecnologia da cidade (vide blogs “Joep Huiskamp” 20/03/2021) e (“Meu amigo Joep Huiskamp e o arquipélago dos Açores”, 08/04/2023). Realizou várias exposições na Holanda, obtendo recepção elogiosa. Amante das ilhas açorianas, mormente a de São Jorge, terra natal de Francisco de Lacerda (1869-1934), um dos seus compositores eleitos e meu também, Joep fez o primeiro desenho em Gand, enquanto eu ouvia as provas da gravação dos Estudos de Scriabine, realizada dias antes.
Dias após um recital em Gand (2007), Joep Huiskamp entregou-me uma lembrança relacionada à minha amizade com André Posmam, Diretor da De Rode Pomp.
Em 2017 encerrei um recital com “Vers la Flamme”, de Scriabine, e Joep me presenteia com um trabalho intrigante das mãos.
Após o encerramento de minha atividade pianística na Europa em 2023, Joep Huiskamp novamente esteve presente, enviando-me semanas após um álbum de desenhos e fotos a relembrar as décadas da nossa intensa amizade. À la manière d’une introduction, relembrou minhas passagens pela Bélgica, Portugal continental e pelo arquipélago dos Açores, assim como figuras históricas que fizeram parte de tantas conversas que mantivemos. A referência aos amigos comuns, os Herberts: Tony, Tania, Tycho e Trixie, em cuja morada sempre me hospedei, está presente na lista das lembranças, T4.
No próximo blog exibirei as notáveis pinturas do artista russo Boris Shapovalov, que realizou várias exposições na galeria La Perseveranza. Guardo com carinho quatro das suas criações.
In today’s post, I introduce four artists – three Belgians and one Dutch – who offered me drawings or paintings that I highly treasure.