Navegando Posts publicados em julho, 2025

A volúpia progressiva das construtoras pelos espaços

Para que suceda o que vejo futuro,
não preciso nada de convencer ninguém;
virá, quer o queiram quer não, porquanto já existe.

Agostinho da Silva (“Espólio”)

Sem tréguas, bairros da zona sul da cidade, Brooklin, Monções e Campo Belo assistem ao desmoronamento de casas e do pequeno comércio, mercê da avassaladora sanha das construtoras com o fim da edificação de prédios, muitos deles acima dos trinta andares.

Esse tema já foi tratado neste espaço, graças ao longo caminho, cerca de seis anos, durante o qual quatro construtoras se interessaram pelo entorno da nossa antiga morada, sendo que a última conseguiu alcançar os seus desideratos, adquirindo um vasto espaço ocupado por moradias, incluindo um pequeno prédio. Após 60 anos felizes na mesma casa, tivemos de ceder, sob risco de ficar ilhados. Para não perdemos as referências humanas de tantas décadas e dos locais frequentados, mudamo-nos para um apartamento na mesma rua, não distante do lar antigo, em quadra já livre de incorporações próximas. Página virada, continuaremos bem a caminhada nesta fase final da existência.

Em quarteirões distintos nos bairros mencionados, alguns moradores resistiram e estão comprimidos entre prédios que se agigantam. Essas casas estão sujeitas a dois impactos insolúveis: imensa desvalorização dos imóveis nessa situação e convivência com grandes edifícios que as comprimem. Seria salientar o mínimo. Nas minhas andanças sistemáticas pelas ruas do bairro observo a hecatombe provocada pela rápida demolição das moradas, os stands de venda – alguns faraônicos – plenos de excessos, logo destruídos para o inevitável erguimento rápido, ruidoso e empoeirado dos altos edifícios.

A célebre frase “São Paulo precisa parar de crescer”, sugestão do prefeito biônico de São Paulo (1971-1973) José Carlos de Figueiredo Ferraz (1918-1994), engenheiro, urbanista e professor titular da Escola Politécnica, foi causa decisiva para a sua demissão, assinada pelo governador Laudo Natel, mercê da convicção generalizada, datada de 1940, que ditava que “São Paulo não pode parar”. Os conhecimentos técnicos insofismáveis de Figueiredo Ferraz o levaram a entender problemas sérios que estavam por vir, vieram e assumem a dimensão que já se afigura dantesca. São Paulo tem hoje lençol freático bem exaurido, sendo que a água que abastece a cidade está destinada a vir de regiões cada vez mais distantes. Se considerarmos desde o ano do pronunciamento de Figueiredo Ferraz à atualidade, nota-se o gigantesco aumento de edifícios com muitos andares, a beirar atualmente os 30.000, número que eleva a cidade, infelizmente, a uma das principais do mundo nesse quesito. Sob outro aspecto, humano, São Paulo tinha cerca de 8,77 milhões de habitantes em 1973 e hoje, por volta dos 12 milhões, parte da população a viver nas periferias de maneira complexa. Se considerada for a expansão da cidade – não há mais fronteiras físicas com quantidade de municípios do entorno – teríamos cifra acima dos 20 milhões de habitantes. As ruas e avenidas, a cada dia mais abarrotadas de carros e ônibus em determinados períodos do dia, tornam as locomoções um fardo pesado para o paulistano. No ano da profecia do prefeito José Carlos de Figueiredo Ferraz, São Paulo contava com cerca de 500 mil veículos, carros e motos. Atualmente rodam pela cidade aproximadamente 10 milhões de carros, motos, ônibus e tipos de caminhões.

Outros bairros estão sofrendo problemas similares, pois não faltam construtoras ávidas pelos espaços com a mesma finalidade. Sem contar os megaempreendimentos, com edifícios a serem construídos em regiões ditas “nobres” da cidade com dezenas de andares e apartamentos gigantes.

As estratégias de venda na nossa região têm semelhanças. Dezenas de distribuidores de folders se espalham nos três bairros. O discurso segue uma espécie de ladainha, pois cada empreendimento merece elogios que correspondem aproximadamente às palavras: único, projeto inédito, o ponto melhor do bairro, construtora ímpar, vantagens singulares, condições de venda sem concorrência. Iniciada a construção, já há o chamamento “últimas unidades”, “unidades ainda disponíveis”. Nessas andanças, vi prédios ainda nos alicerces, com corretores de plantão proferindo sempre as mesmas palavras, “melhor prédio da região”. Em conversa com corretores independentes aprendi que a oferta de apartamentos tem sido enorme e que a grande quantidade de estúdios faz com que alguns deles desistam desses pequenos espaços em suas carteiras.

Na região do Campo Belo, há a mesma sincronia voltada às construções. Em determinadas quadras, edifícios de aproximadamente 10 andares e outros bem maiores estão cercando a Feira do bairro. Antigos frequentadores desapareceram e barracas também. Lamento, pois a visito desde os anos 1970 (vide blog “Feira Livre – uma festa para os sentidos”. 08/08/2008). Quadras inteiras já estão com aquelas muralhas de metal e a destruição das moradas se processa igualmente de maneira avassaladora.

O desmonte que está a se acentuar em parte considerável da cidade e, em particular, nessa região da zona sul, não deveria ser motivo de orgulho, mas de preocupação. Se o leitor tiver alguma dúvida, que visite os três bairros mencionados e a surpresa estará garantida.

Até quando seguiremos ignorando a advertência de Figueiredo Ferraz?

Three neighborhoods in the south of São Paulo are undergoing abrupt transformations: Brooklin, Campo Belo and Monções. Houses and small businesses are being destroyed and a multitude of apartment buildings are under construction, some with more than 30 floors. In 1973, the city’s mayor made a prophecy: “São Paulo must stop growing” How long will we ignore his warning?

Gildo Magalhães frente à ciência

Tornou-se profundamente óbvio que a nossa tecnologia excedeu a nossa humanidade.
Somos um campo de energia, só que visível.
Albert Einstein (1879-1955)

Recebi, do meu dileto amigo Gildo Magalhães, o substancioso livro “Meu caro Einstein e outras histórias da ciência e da técnica” (Livraria da Física, São Paulo, 2023).

Gildo Magalhães, presente inúmeras vezes neste espaço, comentando com acuidade os meus blogs hebdomadários, é professor titular jubilado da FFECH-USP, onde foi docente na área da História da Ciência no Departamento de História. Foi diretor do Centro de História da Ciência da USP e é membro do Centro de Filosofia da Ciência da Universidade de Lisboa. Tem vários livros abordando a sua área de atuação. Ultimamente está a realizar uma profícua colaboração no Jornal da USP, focalizando paulatinamente a História da Ciência.

“Meu caro Einstein” apresenta um conjunto de artigos divididos em três grupos, como posiciona o autor. Num primeiro, insere “artigos que resultaram de pesquisas em bibliotecas e instituições especializadas de História da Ciência nos EUA e Europa”. Gildo Magalhães apresenta no segundo grupo três textos referentes à sua competente atuação junto ao Centro de Filosofia da Ciência da Universidade de Lisboa, frequentemente visitada pelo autor, partícipe dos vários simpósios realizados pela Instituição. Ele esclarece o terceiro grupo de estudos: “No último conjunto de textos, examino alguns tópicos da história da ciência e da técnica no Brasil, tendo como pano de fundo o desenvolvimento do país…”. Dez textos de Gildo Magalhães, publicados em vários países, foram por ele traduzidos para o português. A reunião de todos esses trabalhos revela o vasto conhecimento da História da Ciência, máxime pelo fato de que o autor sempre se baseou em pesquisas profundas,  que resultaram em deduções, tantas delas plenas de originalidade.

Engenhosamente, insere no primeiro texto título que daria nome ao livro, “Meu caro Einstein”, palavras iniciais que indicam as pesquisas do autor apreendidas da correspondência entre Felix Albert Ehrenhalf  (1879-1952) e Albert Einstein (1879-1955) sobre correntes magnéticas. Tem interesse maior essa troca de missivas dos dois cientistas. O interlocutor Ehrenhalf, em sua longeva atividade epistolar com Einstein, durante trinta anos buscou a anuência de suas descobertas, não obtendo a guarida esperada por parte de Einstein. Gildo Magalhães observa: “O problema é que suas teorias se opõem às de Einstein, e também às do eletromagnetismo clássico, pois afirma ter conseguido isolar os polos magnéticos Norte e Sul, observando uma ‘corrente magnética’. O relacionamento se complica com a intervenção de sua esposa, que escreve poesias provocadoras para Einstein, que responde também com poesias. A batalha verbal segue com lances surpreendentes”.

Em um dos textos do livro, “Sobre uma possível contribuição da matemática transfinita para a euritmia”, Magalhães considera que “O conhecimento nunca chega ao final. Qualquer sistema de teorias, por mais excelente que seja, termina gerando anomalias e paradoxos. Esta afirmação é válida para sistemas filosóficos, teorias científicas ou outras formas de conhecimento investigativo. Se se tomar, digamos, a história da física, há muitos exemplos para ilustrar o ponto, como o sistema geocêntrico ptolomaico, ou a mecânica de Newton, ou a teoria quântica ortodoxa”. Em todas as áreas, essas afirmações contundentes do autor encontram eco. Nos dois últimos posts tratamos do progresso e da evolução das artes, entendendo que, para a área musical, a aplicação do termo  evolução é mais adequada pela perenidade das criações dos grandes compositores do passado, máxime pela publicação das obras e pela sua permanente vivificação através da interpretação dos músicos através dos séculos .

Gildo Magalhães finaliza o instigante livro com quatro capítulos dedicados a temas brasileiros. No segundo, “Evolução no sertão: darwinismo, intelectuais brasileiros e o desenvolvimento da nação”, três figuras relevantes na nossa história são contempladas: Sílvio Romero (1851-1914), Euclides da Cunha (1866-1909) e Monteiro Lobato (1882-1948). Magalhães observa, após textos minuciosos sobre as suas atuações e farta produção literária diversificada: “Os três autores aqui apresentados tiveram uma fase de simples imitação dos cânones darwinianos, seguindo um padrão de ideias europeias importadas sobre a evolução, que começou com as obras de Spencer. Isso levou a um caminho ideológico que passou pelo darwinismo social e pela eugenia, agravado por uma visão naturalista. Muitos escritores assumiram a noção de que os problemas sociais e psicológicos eram características hereditárias, uma ideia prontamente assumida por pessoas que também acreditavam que doenças comuns – como tuberculose, sífilis e alcoolismo – eram herdados pelos pobres”.

O livro em apreço é de importância, mormente pelo fato de apresentar uma série de grandes descobertas na área da Ciência, reunidas e didaticamente explicadas. A não intimidade com as especialidades científicas – caso específico deste que ora redige – não impede que o leitor tome conhecimento das conquistas extraordinárias que têm ensejado o progresso da Ciência. “Meu caro Einstein” pode ser uma porta aberta a desvelamentos.

The recent book by Gildo Magalhães, a full professor at the University of São Paulo, “My dear Einstein”, is of great interest as it presents a series of studies published in Brazil and abroad over the years, dealing with his field of work, the History of Science.

 

 

A interpretação em causa

Consiste o progresso no regresso às origens:
com a plena memória da viagem.
Agostinho da Silva (1906-1994)
(Espólio)

O blog anterior apresenta tema polêmico e deriva da pergunta de jovem músico sobre progresso na interpretação musical. Tema controverso, motivou uma série de mensagens, curtas na grande maioria, majoritariamente concordando com a ausência do progresso nessa área. Poucas entendendo a interpretação como progresso. Acredito que, em muitos casos, a interpretação pianística da música clássica, erudita ou de concerto possa sofrer influências, por vezes tênues, advindas das várias modalidades de músicas voltadas ao grande público mais jovem e realizadas em grandes espaços abertos, precedidas por fantástica divulgação. Traduz-se mormente no vestuário e no gestual de alguns super ventilados pianistas clássicos. É evidente que, nesses casos em especial, a interpretação possa sofrer alterações, principalmente quanto aos andamentos mais acelerados em criações já compostas nesse propósito, para gáudio de parte dos que frequentam as salas de concerto. Há também casos de excelentes pianistas do repertório consagrado que frequentam com insistência gêneros de outra índole. Determinados atributos da música popular vazam periodicamente quando no repertório-mor do pianista.

Num blog bem anterior, “Progresso em Arte”, http://blog.joseeduardomartins.com/index.php/2014/09/27/progresso-em-arte/, já abordei a temática, igualmente a considerar não haver progresso na criação musical. Sob aspecto outro, quantidade enorme da música contemporânea é apresentada em festivais específicos apenas uma vez e fenece. Razões teve o compositor francês Serge Nigg (1924-2008) que, nos estertores da existência, afirmava que, contrariamente ao que ocorria num passado em que dialogava com intérpretes, compositores e musicólogos, nesses tempos finais só era apresentado a jovens compositores. No blog mencionado acima citei pertinente observação de Mario Vargas Llosa (1936-1925) que, à certa altura, não mais visitava Bienais de Arte “pelo descompromisso com a essência do termo, arrivismo de autores a qualquer custo e banalização conceitual da arte na atualidade”. Ambos os posicionamentos apenas ratificam que a obra-prima, desde o remoto passado à contemporaneidade, permanece indelével. Não há o progresso em direção aos tempos atuais, mas a aparição de novas técnicas e tendências, sendo que  poucas permanecerão. Se existisse progresso na arte musical o repertório do passado não seria largamente majoritário nas programações.

O insigne compositor e regente Pierre Boulez (1925-2016) reestruturou várias obras, dando-lhes novas versões. Denominaria works in progress (trabalhos em curso), que também poderiam ser considerados, com outras palavras, versões, adaptações, transcrições. Em entrevista ao jornal Le Monde (27/03/1985), afirmaria: “Não estou em paz se não estiver satisfeito, e como posso estar? Na composição, por exemplo, como conseguir o equilíbrio musical, como fazer com que a realização se apodere do especulativo e lhe dê um conteúdo efetivo?” (Le Monde, 27/03/1985), frase que bem exemplifica a perene curiosidade do compositor no desiderato de dar novas configurações a determinadas criações. Pli selon pli (1957) teve várias versões para diferentes formações, sendo a definitiva na década de 1990. Outras obras seguiram o mesmo roteiro.

De relevado interesse a longa exposição de Gildo Magalhães, Professor titular jubilado da FFLECH-USP na área da História da Ciência.

“Esta é de fato uma pergunta que suscita muita reflexão. Por um lado, há a questão da interpretação, onde é difícil avaliar como eram as interpretações antes das gravações; há apenas as descrições de pianistas fabulosos como se escrevia a respeito de Liszt; hoje podemos comparar o Chopin de Hoffmann com o de Horowitz e assim por diante. Já a composição se presta ao filtro do tempo, como você sempre assinala, ainda que de vez em quando alguém seja salvo do soterramento a que foi submetido e reaparece na sua grandeza – podemos dizer que é também uma questão de tempo, mas com retardo.

Uma área estética onde há alguns autores que acreditam no progresso parece ser nas artes plásticas, mas é sempre uma celeuma. Um critério proposto é o de que a arte serve para elevar o espírito humano, elevar num sentido amplo, que inclui aproximar o homem da divindade (alguma divindade) e de aproximar os homens uns dos outros – aliás, o sentido dado por Barenboim para sua orquestra do Divã Oriental-Ocidental (título que é uma referência à obra poética a 4 mãos de Goethe e Schiller)”.

Ao ter mencionado no post anterior o avião alemão Junkers Ju 52, recebi do meu querido irmão, o ilustre jurista Ives Gandra Martins, mensagem de interesse: “Da mesma forma que evoluímos dos barulhentos ‘junkers’ – voei num com papai, mas não me lembro do barulho, mas só da empolgação do voo em 1943 – para os silenciosos A-380. Creio que também na interpretação da arte há evolução. A própria ‘Sinfonia Clássica’ de Prokofiev, em que ele pensava reviver Mozart, hoje, muitas vezes é interpretada com toques diferentes propostos por Prokofiev”.

Diria que há evolução a atingir os devidos fins, melhores ou, tantas vezes, piores resultados. Todavia, a obra-prima que é a “Sinfonia Clássica” permanecerá, ratificando o conceito do não progresso da obra, mas tendências quanto à interpretação. Estou a me lembrar de fato curioso ocorrido num Congresso sobre Música em Salvador nos anos 1990. Como em determinada sessão o professor que deveria presidi-la faltou, convidaram-me para a tarefa. Em certo momento, utilizei a palavra evolução e um antropólogo no auditório imediatamente observou que o termo não mais poderia ser empregado. Felizmente, estava com um livro recente em inglês em minha pasta que abordava a evolução do cravo para o pianoforte e posteriormente para o piano.

Certamente haverá ao longo da história defensores das duas correntes concernentes às Artes nesse quesito progresso. A dialética sempre presente.

I’ve received countless messages on the subject of Progress in the Art of Music. There will always be considerations about progress and evolution, the latter of which is banned in certain areas.