A volúpia progressiva das construtoras pelos espaços
Para que suceda o que vejo futuro,
não preciso nada de convencer ninguém;
virá, quer o queiram quer não, porquanto já existe.
Agostinho da Silva (“Espólio”)
Sem tréguas, bairros da zona sul da cidade, Brooklin, Monções e Campo Belo assistem ao desmoronamento de casas e do pequeno comércio, mercê da avassaladora sanha das construtoras com o fim da edificação de prédios, muitos deles acima dos trinta andares.
Esse tema já foi tratado neste espaço, graças ao longo caminho, cerca de seis anos, durante o qual quatro construtoras se interessaram pelo entorno da nossa antiga morada, sendo que a última conseguiu alcançar os seus desideratos, adquirindo um vasto espaço ocupado por moradias, incluindo um pequeno prédio. Após 60 anos felizes na mesma casa, tivemos de ceder, sob risco de ficar ilhados. Para não perdemos as referências humanas de tantas décadas e dos locais frequentados, mudamo-nos para um apartamento na mesma rua, não distante do lar antigo, em quadra já livre de incorporações próximas. Página virada, continuaremos bem a caminhada nesta fase final da existência.
Em quarteirões distintos nos bairros mencionados, alguns moradores resistiram e estão comprimidos entre prédios que se agigantam. Essas casas estão sujeitas a dois impactos insolúveis: imensa desvalorização dos imóveis nessa situação e convivência com grandes edifícios que as comprimem. Seria salientar o mínimo. Nas minhas andanças sistemáticas pelas ruas do bairro observo a hecatombe provocada pela rápida demolição das moradas, os stands de venda – alguns faraônicos – plenos de excessos, logo destruídos para o inevitável erguimento rápido, ruidoso e empoeirado dos altos edifícios.
A célebre frase “São Paulo precisa parar de crescer”, sugestão do prefeito biônico de São Paulo (1971-1973) José Carlos de Figueiredo Ferraz (1918-1994), engenheiro, urbanista e professor titular da Escola Politécnica, foi causa decisiva para a sua demissão, assinada pelo governador Laudo Natel, mercê da convicção generalizada, datada de 1940, que ditava que “São Paulo não pode parar”. Os conhecimentos técnicos insofismáveis de Figueiredo Ferraz o levaram a entender problemas sérios que estavam por vir, vieram e assumem a dimensão que já se afigura dantesca. São Paulo tem hoje lençol freático bem exaurido, sendo que a água que abastece a cidade está destinada a vir de regiões cada vez mais distantes. Se considerarmos desde o ano do pronunciamento de Figueiredo Ferraz à atualidade, nota-se o gigantesco aumento de edifícios com muitos andares, a beirar atualmente os 30.000, número que eleva a cidade, infelizmente, a uma das principais do mundo nesse quesito. Sob outro aspecto, humano, São Paulo tinha cerca de 8,77 milhões de habitantes em 1973 e hoje, por volta dos 12 milhões, parte da população a viver nas periferias de maneira complexa. Se considerada for a expansão da cidade – não há mais fronteiras físicas com quantidade de municípios do entorno – teríamos cifra acima dos 20 milhões de habitantes. As ruas e avenidas, a cada dia mais abarrotadas de carros e ônibus em determinados períodos do dia, tornam as locomoções um fardo pesado para o paulistano. No ano da profecia do prefeito José Carlos de Figueiredo Ferraz, São Paulo contava com cerca de 500 mil veículos, carros e motos. Atualmente rodam pela cidade aproximadamente 10 milhões de carros, motos, ônibus e tipos de caminhões.
Outros bairros estão sofrendo problemas similares, pois não faltam construtoras ávidas pelos espaços com a mesma finalidade. Sem contar os megaempreendimentos, com edifícios a serem construídos em regiões ditas “nobres” da cidade com dezenas de andares e apartamentos gigantes.
As estratégias de venda na nossa região têm semelhanças. Dezenas de distribuidores de folders se espalham nos três bairros. O discurso segue uma espécie de ladainha, pois cada empreendimento merece elogios que correspondem aproximadamente às palavras: único, projeto inédito, o ponto melhor do bairro, construtora ímpar, vantagens singulares, condições de venda sem concorrência. Iniciada a construção, já há o chamamento “últimas unidades”, “unidades ainda disponíveis”. Nessas andanças, vi prédios ainda nos alicerces, com corretores de plantão proferindo sempre as mesmas palavras, “melhor prédio da região”. Em conversa com corretores independentes aprendi que a oferta de apartamentos tem sido enorme e que a grande quantidade de estúdios faz com que alguns deles desistam desses pequenos espaços em suas carteiras.
Na região do Campo Belo, há a mesma sincronia voltada às construções. Em determinadas quadras, edifícios de aproximadamente 10 andares e outros bem maiores estão cercando a Feira do bairro. Antigos frequentadores desapareceram e barracas também. Lamento, pois a visito desde os anos 1970 (vide blog “Feira Livre – uma festa para os sentidos”. 08/08/2008). Quadras inteiras já estão com aquelas muralhas de metal e a destruição das moradas se processa igualmente de maneira avassaladora.
O desmonte que está a se acentuar em parte considerável da cidade e, em particular, nessa região da zona sul, não deveria ser motivo de orgulho, mas de preocupação. Se o leitor tiver alguma dúvida, que visite os três bairros mencionados e a surpresa estará garantida.
Até quando seguiremos ignorando a advertência de Figueiredo Ferraz?
Three neighborhoods in the south of São Paulo are undergoing abrupt transformations: Brooklin, Campo Belo and Monções. Houses and small businesses are being destroyed and a multitude of apartment buildings are under construction, some with more than 30 floors. In 1973, the city’s mayor made a prophecy: “São Paulo must stop growing” How long will we ignore his warning?