Navegando Posts em Artes

Quando a geografia fascina e a arte aflora

Porém, a arte só beija quem por ela almeja ser beijado.
A arte exige uma liturgia, um ritual, que se prende com a fonte da dádiva e a aproximação do amor.
A arte atravessa a nossa mente com pés de pomba,
à mínima tempestade torna-se invisível, substituída pelos apelos do cotidiano.
Miguel Real (ensaísta e professor de filosofia português)

Em blog já escrevi sobre Joep, meu amigo holandês (vide Blog: “Joep Huiskamp”, 20/03/2021). Conselheiro do “Executive Board”, trabalha na Direção da Universidade de Tecnologia de Eindhoven (IUe) desde 1990.

Recentemente pormenorizei o escritor português Wenceslau de Moraes que, a certa altura, niponizou-se inteiramente motivado pelo fascínio com que o Extremo Oriente, Japão em particular, impregnou sua existência de maneira definitiva (vide blog: “Daí-Nippon” de Wenceslau de Moraes -1854-1929, 11/02 e 18/02/2023).

Conheci Joep no ano 2000 e nos tornamos bons amigos. É um privilégio vê-lo, juntamente com sua esposa Jonneke, em quase todos os recitais que apresento na Bélgica, os bem mais de uma dezena em Gand e em outras cidades do país. Inclusive, estiveram por duas vezes em Portugal, nas apresentações em Coimbra e Lisboa. O apego de Joep aos Açores, bem anterior à nossa amizade, é proverbial. Sempre que pode viaja para visitá-los. De minha parte, confesso que, em três das nove ilhas do arquipélago dos Açores, território autônomo português, apresentei-me em recitais no longínquo 1992. Terceira, Faial, e São Miguel foram as ilhas e, não fosse tão distante alcançá-las, teria ido mais vezes, pois minha impressão é a de que os Açores, situados no Atlântico Norte, fazem parte daquelas regiões entendidas como paraísos sobre a Terra.

Estreitaram-se nossos laços em torno do notável compositor e regente Francisco de Lacerda (1869-1934), açoriano nascido na ilha de São Jorge.  Havia gravado a extraordinária coletânea de Lacerda, “Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste”, e já àquela altura Joep esboçava suas aquarelas, guaches ou desenhos em cores cultuando a música, a arte, e não se esquecendo de Francisco de Lacerda. Amalgama-se o amor pelos Açores e a um de seus filhos maiores. Ofereceu-me, fruto dessa admiração pelos luminares açorianos, um desenho de Lacerda feito num recorte de papel grosso, após um almoço num pequeno restaurante de Gand no ano 2.000.

Mais tarde, a rememorar nossa conversa sobre literatura portuguesa, deu-me pequeno óleo sobre tela, em 2015, a homenagear o grande poeta Antero de Quental (1842-1891), nascido em Ponta Delgada, Ilha de São Miguel.

Os desenhos de Joep Huiskamp relacionados à minha atividade pianística atravessaram duas décadas, pois dos primeiros, no ano 2.000, caracterizando Lacerda, mas também Scriabine, outros surgiram. Em 2017, após meu recital na sala Quatre Mains, em Gand, entregou-me alguns guaches feitos no dia seguinte, sendo que um deles, “Ir mãos”, foi inspirado após a interpretação de “Vers la Flamme”, de Scriabine. Joep e Jonneke deverão estar presentes no meu recital em Gand no próximo dia 25 de Maio.

Qual não foi a minha surpresa ao receber dias atrás e-mail de Joep a dizer que visitara, como sempre o faz, seja com Jonneke ou com seu irmão, a Ilha de São Jorge. A visita “obrigatória” representa também um culto a Francisco de Lacerda. Enviou-me foto do mar açoriano, tantas vezes revolto, a açoitar o arquipélago, e um desenho, creio que o mais expressivo da coleção. Apresento-o no atual post, ratificando a admiração de Joep pela criação de Lacerda.

Creio firmemente que a sensível e magistral coletânea de Francisco de Lacerda está entre as mais importantes obras para piano destinadas ao universo infantil em termos planetários. Já o disse em vários blogs. A ratificação dessa importância veio através do texto assinado pelo mais importante biógrafo de Claude Debussy da segunda metade do século XX, François Lesure (1923-2001), Diretor do Departamento de Música da Bibliothèque Nationale de Paris. Privilegiava o texto minha gravação da coletânea lacerdiana no CD lançado pelo selo belga De Rode Pomp. Seria ledo engano acreditar que as “36 histórias…” são de fácil aprendizado. O aguçado sentido das sonoridades e o seguir as suas extinções sonoras através de efeitos requintados, a pedalização seletiva e, a “comandar “a execução, a audição acurada, tornam o conjunto único no gênero.   No Youtube as 36 histórias podem ser ouvidas, divididas em três blocos. Os desenhos coloridos que acompanham a criação lacerdiana foram realizados pelo meu saudoso amigo e artista plástico Luca Vitali (1940-2012). O ilustre compositor Willy Correia de Oliveira, ao ouvir pela primeira vez as “36 histórias”, atônito me disse: “Essa obra é um milagre”.

https://www.youtube.com/playlist?list=PL1j-Jq5yk8iyblpLYazgN-iA6IyfG6eBv

Se Joep já havia sido atraído pelos Açores, foi mais ainda sonoramente “abduzido” pelas sonoridades de Francisco de Lacerda. Como bem se expressou nosso poeta Luiz Guimarães Júnior (1844-1898) em contexto outro: “Resistir quem há-de?”. Historiar o compositor e a Cultura portuguesa durante mais de duas décadas, pois Joep também traduziu para o holandês “O Mandarim”, de Eça de Queiroz, a revelar o raro talento em áreas outras que não a da sua especialidade em educação e tecnologia, bem evidencia o resultado do aprofundamento em várias sendas. Para tanto, necessário se faz o olhar amoroso àquilo que se está a pesquisar. A existência propicia essa rara oportunidade. Não desperdiçá-la é uma dádiva.

Clique para ouvir, de Francisco de Lacerda, “Papillons” e “Zara”, na interpretação de J.E.M:

https://www.youtube.com/watch?v=rOa_dEmQg30

My friend Joep Huikamp is an advisor to the Executive Board of the Eindhoven University of Technology (IUe). Having visited the Azores archipelago decades ago, he would return numerous times, fascinated by the local culture and unique nature. Our friendship dates back to 2000 and began in Ghent, Belgium, growing stronger  around our shared interest for the remarkable Azorean composer Francisco de Lacerda (1869-1934). Over the years I have been favored with a series of drawings and gouaches made by the artist. A recent gouache I received portraying Lacerda motivated this post.

 

Alguns aspectos da magnificente Cultura de Portugal

Far-se-á alguma vez a sincronização,
verificar-se-á algum dia a unidade de propósitos,
a harmonia de forças entre a música portuguesa e a cultura portuguesa,
encaradas uma e outra do ponto de vista do processo nacional?
O futuro o dirá, mas não era mau que todos nós fôssemos preparando,
na medida das nossas forças, para o conseguir.
Fernando Lopes-Graça
(“A Música Portuguesa e os seus problemas”, 1959)

Nesses dezesseis anos de blogs ininterruptos publicados sempre aos sábados, um número considerável foi dedicado à Cultura de Portugal, mormente a Música. Quantos às gravações, considerando-se obras de compositores do Brasil e de Portugal, cerca de doze CDs foram dedicados às criações dos dois países, equilibradamente. Foram as dezenas de viagens a Portugal para recitais, mas igualmente para outras atividades voltadas à Música, que me levaram à ratificação do encantamento pela Cultura do país. Considero que foi fundamental o culto aos valores literários portugueses que meu saudoso Pai transmitiu aos quatro filhos. Líamos mais os autores de Portugal, de Camões aos da primeira metade do século XX, do que escritores e poetas brasileiros.

Transcorriam os blogs hebdomadários e, a certa altura, verifiquei que o retorno periódico à Cultura portuguesa se fazia de maneira espontânea.

A reunião de textos resultou na publicação, pela Imprensa da Universidade de Coimbra, do primeiro volume de “Impressões sobre a Música Portuguesa” (2011), prefaciado pelo ilustre musicólogo e autor português Mário Vieira de Carvalho, livro este que teria a edição brasileira lançada pela Editora da Universidade de São Paulo em 2014.

Daqueles anos até bem recentemente, outros 63 blogs foram dedicados à Cultura de Portugal, salientando-se sempre prioritariamente a Música, mas não negligenciando outras áreas do conhecimento. Na breve turnê que realizei em solo português no ano passado, após o décimo recital, desde um primeiro em 2004 na magnífica Biblioteca Joanina em Coimbra, apresentei à Direção da Imprensa da Universidade de Coimbra proposta que reunia aqueles posts publicados sobre música, mas também com inserções temáticas outras, como literatura em prosa e verso, história, aventura, esta última salientando o excepcional alpinista João Garcia. Foi motivo de grande alegria o comunicado de que o Conselho Editorial da IUC aprovara a publicação, que viria a ser realidade no fim de 2022. Tive sempre o incentivo do relevante João Gouveia Monteiro, um dos mais importantes medievalistas da Europa e professor da Instituição fundada em 1290. A leitura de três de seus livros basilares apenas ratifica minha admiração pelo seu perfil de grande pesquisador.

Ponderei em vários blogs que haveria a necessidade imperiosa de a Música Portuguesa ser muitíssimo mais divulgada. Poderia parecer repetição, pois insisto em vários posts nesse quesito essencial. Se alguns intérpretes de valor de Portugal buscam expandir a aceitação da criação portuguesa, haveria que existir a participação do Estado nessa propagação das composições do país, no sentido de que elas merecessem ser visitadas e tocadas por músicos de outros centros mundiais. Trata-se de um árduo trabalho de divulgação que teria de estar amparado por especialistas da área, não necessariamente músicos, mas ao menos com visão cultural ampla. É certo que a cultura erudita tem sofrido erosão, mercê do avanço avassalador de outras voltadas ao supérfluo, ao efêmero e que, renovadas não qualitativamente, seduzem multidões. Essa derrocada não vem isolada, pois contamina tradições, costumes e até moralidade.

A respeito da Música, estudiosos se debruçam sobre sua importância na sociedade portuguesa. Os musicólogos José Maria Pedrosa Cardoso (1942-2021), a quem dediquei in memoriam o livro ora publicado, e Mário Vieira de Carvalho são alguns exemplos meritórios de pesquisadores que entendem na essência essencial a relevância da criação musical portuguesa. Alguns de seus livros são mencionados no presente “Impressões sobre a Música Portuguesa” (II).

No livro em pauta, blogs foram particularmente dedicados a compositores que me são caros e que integram meu repertório pianístico habitual. Fernando Lopes-Graça (1906-1994) destaca-se entre os mais importantes compositores do século XX, infelizmente ainda não divulgado à altura nos países europeus e nas Américas, apesar do seu incomensurável valor. Em Simpósio de que participei, promovido pela Associação Lopes-Graça em Moira, observei que, se em um concerto hipotético com auditório pleno em Portugal alguém perguntar aos presentes se conhecem nosso músico maior, Heitor Villa-Lobos (1887-1959), haverá aqueles que dirão conhecer algumas obras do compositor. Mutatis mutandi, se no Brasil fizerem o mesmo em relação a Lopes-Graça, corre-se o risco de haver um silêncio sepulcral. No Brasil é quase nulo o conhecimento da composição portuguesa, hélas.

Clique para ouvir, de Carlos Seixas, “Sonata em Mi Maior, nº 34, na interpretação de J.E.M.:

Carlos Seixas – Sonata nº 34 in E major – José Eduardo Martins – piano – Bing video

Diria igualmente que o notável compositor conimbricense Carlos Seixas (1704-1742) não é tocado em nosso país, ele que foi tão admirado pelo grande Domênico Scarlatti (1685-1756). Algumas das Sonatas de Seixas, que gravei ao piano para um álbum duplo de CDs (23 Sonatas, selo belga De Rode Pomp), estão no Youtube. Outros compositores portugueses também estão no aplicativo. Enumerando-os: de Francisco de Lacerda (1869-1934), açoriano de São Jorge, amigo de Claude Debussy, regente renomado, as “Trente-six Histoires pour amuser les enfants d’un artiste”; do saudoso amigo Jorge Peixinho (1940-1995), o “Étude Dei-Reihe Courante”; do brilhante compositor contemporâneo e dileto amigo Eurico Carrapatoso (1962- ), as “Six histoires d’enfants pour amuser un artiste” e  a “Missa sem palavras”. São vários os blogs dedicados a esses mestres, que dignificam a Música Portuguesa, nos quais amplio considerações a respeito de obras que tive o prazer de apresentar em solo português e brasileiro, tantas delas em primeira audição.

Acredito firmemente que, se houver empenho efetivo e permanente do Estado português, compositores como Carlos Seixas e Fernando Lopes-Graça, como exemplos, estariam a ser interpretados frequentemente no planeta. Não mereceriam o olhar que propicia aberturas?

Clique para ouvir, de Jorge Peixinho, “Étude V – Die Reihe Courante”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=Uc1PTtYbnoA

Ao longo dos anos, algumas figuras de relevo na cultura portuguesa foram lembradas após o passamento: organista Antoine Sibertin Blanc (1930-2012) – nascido em França, mas com destacada atuação como intérprete e professor em Portugal durante décadas -, pianista Sequeira Costa (1929-2019), Presidente da República Portuguesa Jorge Sampaio (1939-2021) e o musicólogo, meu amigo-irmão, José Maria Pedrosa Cardoso (1942-2021).

Aos 84 anos o tempo se abrevia, mas continuarei a pontuar as Culturas da pátria-mãe em meus blogs hebdomadários.

“Impressões sobre a Música Portuguesa” ( II ) está à disposição do leitor através do link:

https://www.amazon.com/dp/9892623231

“Impressões sobre a Música Portuguesa e outros temas” (II) focuses  primarity on Portuguese Music. Nevertheless, there are reviews about some works written by Portuguese authors. In the 63 texts, written from November 2011 to December 2021, Portugal is always kept as my point of focus.

 

Um Grande Mestre na arte do Shakuhati
(flauta de bambu clássica japonesa)

A vida, para a vida, é sempre longa;
mas para a arte é sempre breve;
só quando não se faz nada há sempre tempo.
Agostinho da Silva
(“Sete Cartas a um Jovem Filósofo”)

Não foram poucos os leitores que se interessaram pelo livro Dai-Nippon, de Wenceslau de Moraes, e buscarão obtê-lo. Notícia alvissareira. Alguns outros queriam saber mais sobre Tsuna Iwami, após os três poemas para piano que inseri nos dois blogs dedicados ao Dai-Nippon. Coincidentemente, comemora-se neste ano o centenário de nascimento de Tsuna Iwami.

Distintamente de Moraes, Iwami, engenheiro, ao aportar no Brasil em 1956 se casaria e constituiria família, mas jamais se desprenderia de suas profundas raízes, independentemente do afeto à terra que o abrigaria até a morte. Realizava suas orações budistas, cultuava as tradições, vestindo-se, quando em sua morada, com quimono, e era atento ao cerimonial do chá. Sua esposa Haydée era sensível especialista nas iguarias japonesas.

Conheci-o na década de 1970 e nos tornamos amigos na acepção do termo. Em sua profícua formação, Iwami também estudou composição e, paralelamente, foi exímio intérprete da milenar flauta Shakuhati. Era um profundo admirador de segmentos da música ocidental, mormente de Claude Debussy (1862-1918), que tanto apreendeu da cultura do Extremo-Oriente. Quantas não foram as vezes em que, antes de uma apresentação pública na qual interpretaria programa novo, repassava-o em sua residência, serões esses que sempre tinham a presença do médico Ruy Yamanichi, saudoso amigo, e sua esposa Margareth. Após a récita, e antes do cerimonial do chá, à meia luz, Tsuna Iwami interpretava uma ou mais peças ao Shakuhati, para nossa grande admiração.

As mensagens recebidas fizeram-me lembrar de um número da “Revista do Instituto de Estudos Brasileiros” da Universidade de São Paulo (1995 – nº 39) dedicado às comemorações dos 100 anos do Tratado de Amizade entre o Brasil e o Japão. À época, a Direção da Revista estava sob os cuidados da atuante Profa. Marta Rossetti Batista (1940-2007). Tive o privilégio de integrar o Conselho Editorial presidido pelo ilustre acadêmico Nilo Scalzo (1929-2007) e, entre os conselheiros, José Paulo Paes (1926-1998), José de Souza Martins, Franklin Leopoldo e Silva, Telê Ancona Lopez e outros ilustres membros. Encarreguei-me de um artigo-entrevista sob o título “Tsuna Iwami – A recepção da Música Tradicional Japonesa no Brasil”. Apreende-se, através das sábias respostas, o pensamento vivo do polivalente artista japonês, mormente no que concerne ao culto da música de seu país natal no Brasil. Presentemente, ao entrar em contato com o IEB a pedir autorização para apresentar o artigo-entrevista aos leitores, gentilmente o Editor-Executivo da Revista, Pedro B. de Menezes Bolle, aquiesceu.

“O compositor e intérprete de Shakuhati, Tsuna Iwami, nasceu em Tóquio no ano de 1923, radicando-se em São Paulo em 1956. Engenheiro por profissão, o mestre Iwami teve sólida formação, estruturada na tradição da cultura musical japonesa. Ainda no Japão, tornou-se o Baikyoku V, título máximo conferido a um executante de Shakuhati de Kinko-Ryo. No Brasil, disseminou entre os discípulos brasileiros e do Exterior (principalmente pós-graduandos norte-americanos) o culto ao niponismo musical erudito do passado. Como compositor, o mestre Iwami criou obras para orquestra com solo de Shakuhati, obras para piano solo, para canto e piano e para flauta e piano, pois o autor é igualmente intérprete de flauta transversa.

Na entrevista concedida a José Eduardo Martins, o mestre Tsuna Iwami discorre a respeito da música nipônica não-erudita aqui praticada; da recepção da música erudita tradicional no Brasil; dos instrumentos japoneses; dos mestres em música que aqui aportaram; da tradição transmitida através das gerações, baseada na mais pura competência.

JEM – A imigração de outros povos para o Brasil, sobremaneira o europeu e o latino-americano, possibilitou a continuação, em terras brasileiras, de práticas folclóricas. Conjuntos se formaram e as gerações sucedâneas mantêm reuniões festivas periódicas, quando grupos executam repertório dos ascendentes, trajando-se ao estilo de origem e conservando o gestual de danças características. O que o mestre Iwami poderia nos falar sobre a música folclórica japonesa praticada no Brasil?

Tsuna Iwami – Trata-se de uma música de origem popular, contrastando com a que mencionarei durante a entrevista. É evidente que grupos pertencentes à imensa colônia japonesa pratiquem, nas datas festivas, o culto ao japonismo. Grupos formados por cantores, dançarinos e acompanhados por instrumentistas ao Shamisen e na percussão, trajados com quimonos simples, constituem o que poderíamos chamar de ‘preservação da cultura popular japonesa’. São muitos e espalhados nos centros onde a colônia se mostra mais numerosa. Cumprem, sim, um papel importante nessa sustentação dos traços fundamentais de um milenar japonismo.

JEM – Como se processou, certamente sob outra égide, a aceitação da música erudita tradicional japonesa no Brasil?

TI – A partir da década de 30, mais acentuadamente, realizou-se o processo. Um primeiro recital de música japonesa em São Paulo deu-se em 1936, realizado por Juzan Miyoshi (Shakuhati) e Miwa Miyoshi (Koto), sob os auspícios do Consulado do Japão. Datam, pois, das fronteiras dos anos 20-30 os tímidos inícios de um japonismo tradicional em São Paulo. A expansão, desde aquela época, dessa prática erudita foi lenta, reduzida durante a Segunda Grande Guerra, mas desde a década de 50, podemos afirmar, um desenvolvimento, não rápido, mas constante, está num caminho seguro.

JEM – Esta segurança de que fala o mestre Iwami seria a resultante da existência do ensino da música tradicional japonesa no Brasil? Haveria escolas ou professores isolados, ou ambos?

TI – Constatamos a existência de professores de Shakuhati (flauta de bambu), Koto (harpa horizontal de treze cordas, executada pelo intérprete munido de unha artificial ou marfim) e de Shamisen (tipo de guitarra de três cordas, tangidas pelo executante por plectro de marfim). Na verdade, não encontramos escolas dedicadas à difusão da música tradicional nipônica. Professores particulares perpetram ensinamentos a gerações definidas, pois há um perfil daquele que se dedica a este gênero de música. Os alunos nem sempre são orientais.

JEM – Quantitativamente, qual seria o número aproximado de praticantes desses instrumentos no Brasil? Tem havido difusão e expansão do japonismo tradicional musical?

TI – Só em São Paulo, aproximadamente cem pessoas tocam instrumentos de música japonesa, das quais mais ou menos setenta e cinco são brasileiros; e destes, talvez 60% de descendência nipônica. Em Belém e em Curitiba, e mais outros centros, podemos encontrar grupos numericamente menos expressivos.

JEM – No Brasil, fabricam-se instrumentos sacralizados pela cultura erudita europeia. A qualidade deles, exceção talvez única a determinados violões construídos por lutaios da maior competência, é, infelizmente, duvidosa, apesar de massacrante propaganda divulgadora. Maturação das madeiras, chapas de ferro de qualidade menor, metais não à altura de padrões internacionais dificultam a equiparação qualitativa dos instrumentos brasileiros, se submetidos às exigências de países de tecnologia de ponta. Existem instrumentos da cultura nipônica produzidos no Brasil? E qual a qualidade?

TI - O Problema é complexo. Realmente você tem razão quanto aos modelos ocidentais fabricados no Brasil. Há nítida defasagem de qualidade. Estamos experimentando, no que tange aos instrumentos japoneses, por exemplo, fabricar Shakuhati em São Paulo. As dificuldades são sempre as mesmas e se refletem na qualidade das matérias primas: bambu adequado e charão.

JEM – O escritor português Wenceslau de Moraes niponizou-se integralmente, deixando textos, como o célebre Dai-Nippon, que revelam a sua admiração profunda pelos costumes nipônicos e apontam com precisão para transformações insulares em direção à modernidade. O autor impregnou-se visceralmente, sob outro aspecto, da cultura japonesa. O olhar era aquele de um ocidental, o texto, pleno de lirismo contagiante, o amálgama da identidade plena entre Ocidente e Oriente. O mestre Iwami, radicado no Brasil há quase quarenta anos, teria sofrido o processo inverso?

TI – No que se refere ao culto da música tradicional japonesa e à minha maneira de tocar, praticamente não sofri, no Brasil, nenhuma influência. Há um enraizamento muito profundo de todo este culto milenar, difícil de ser compreendido por um ocidental. É lógico que influências sofri na minha maneira de compor. Nunca na maneira de tocar o repertório tradicional adquirido e nem na maneira de ensiná-lo.

JEM – Esta sua resposta leva-me a perguntar ao mestre Iwami se os praticantes da música tradicional japonesa, seus alunos, sofreram, na interpretação, influências da cultura musical brasileira.

TI – Praticamente nulas.

JEM – No Kasato-Maru vieram músicos que permaneceram como imigrantes? E nos anos posteriores? O mestre Iwami pode nos citar músicos instrumentistas que aqui aportaram?

TI – No Kasato-Maru não vieram músicos, pelo menos que se dedicassem exclusivamente à música. O que podemos afirmar é que alguns instrumentistas de talento foram aportando inicialmente em Santos e, posteriormente, aterrissando em aeroportos internacionais brasileiros. Citaria, por ordem cronológica, as prováveis datas de fixação em São Paulo: Kisue Hayashida (Koto, Shamisen) – 1931; Jusan Miyoshi (Shakuhati), Miwa Miyoshi (Koto e Shhamisen) 1931; Kanemiki Tokiwazu (Shamisen) – década de 30; Ryosaku Miyashita (Shakuhati) – anos 40; Shinzan Saito , Yôzan Sagara e Sôzan Yoshioka – década de 50; Sonoko Kamieda (Shamizen) – 1956; minha mãe, Tomil Iwami (Koto e Shamisen) e eu (Shakuhati) em 1956, precisamente.

JEM – Todos estes mestres citados, pertencentes provavelmente a escolas diversas, passaram às gerações, no Brasil, o conhecimento da música tradicional japonesa. Seria importante o mestre Iwami, a título de exemplo, discorrer sobre a sua própria origem como instrumentista, tão distante dos padrões ocidentais. Quais os seus ascendentes? Qual o significado exato de seu título máximo de Baikyoku V?

TI – A pergunta tem fundamento e ‘antagoniza’ essencialidades de nossas culturas. Não é fácil para um músico ocidental entender nossas longas gestações. Citaria o piano moderno, por exemplo, instrumento que se consolidou há pouco mais de um século. Dificilmente, o instrumentista ocidental, mesmo um violinista, poderia citar três gerações ascendentes de professores. O Shakuhati é um instrumento que teve origem nos séculos VII e VIII da era ocidentalmente conhecida como cristã. Sofreu transformações e o moderno Shakuhati de bambu especialíssimo, contendo cinco orifícios, data do século XVI. A moderna música para Shakuhati teve início no século XVII, com Kinko, um Iemoto ou mestre de escola, que foi o chefe do Konko-Ryo. Os seus ensinamentos permaneceram durante três gerações de discípulos. Posteriormente, tivemos a escola de Fuyo Hisamatsu, aluno da segunda geração da escola de Kinko. Após, Fûkei Kodo, discípulo de Hisamatsu, foi o seu sucessor que, por sua vez, passou os ensinamentos a Kodo II, também denominado Baikyoku I. Gerações se sucederam e eu sou o representante de toda uma tradição. Sou o Baikyoku V, assim como existe o Kodo V, mais jovem do que eu e que, após estudos em Universidades americanas, retornou ao Japão. Apesar de quase quarenta anos vividos no Brasil, ainda não elegi meu sucessor, o Baikyoku VI. Preocupa-me, a mim e ao mestre Kodo V, a unificação desse conhecimento secular. Pensamos eleger um mestre excepcional, cujo talento evidente e o caráter impoluto possam preservar a arte do Shakuhati, apreendida através dos séculos sem desvirtuamentos. Quem sabe não poderá ser um brasileiro o Baikyoku VI?”

Clique para ouvir, de Tsuna Iwami, “Fragmento Cantabile” e “Estudo para a mão esquerda”, na interpretação da pianista Regina Normanha Martins:

(87) Tsuna Iwami – Fragmento Cantabile – Regina Normanha Martins – piano – YouTube

(87) Tsuna Iwami – Left Hand Study – Regina Normanha Martins – piano – YouTube

Entre aqueles que estudaram com Tsuna Iwami, destacaria seu principal discípulo, Danilo Baikyo Tomic, que continua ativamente a perenizar os ensinamentos do mestre, agregando ao Shakuhati novas tendências musicais. Felizmente, outros intérpretes de Shakuhati, alguns que estudaram com Tsuna Iwami, têm realizado um significativo trabalho de divulgação, igualmente incorporando ao instrumento novos caminhos repertoriais, independentemente do culto à música tradicional do Japão, coluna mestra a ser preservada. Da entrevista de 1995 ao presente, há esperanças quanto à perpetuação do Shakuhati no Brasil, com um número apreciável de praticantes.

Infelizmente, um vídeo a ter Tsuna Iwami tocando Shakuhati está com falha, sofrendo abrupta interrupção quase no início da peça executada. Inseri “Beautiful Demon”, na interpretação do multi-instrumentista norte-americano, Cornelius Boots, professor de Shakuhati:

https://www.google.com/search?q=youtube+Cornelius+Boots+beautiful+demon+dhakuhati&oq=youtube+Cornelius+Boots+beautiful+demon+dhakuhati&aqs=chrome..69i57j33i160l3.34119j0j7&sourceid=chrome&ie=UTF-8#fpstate=ive&vld=cid:25f3279e,vid:BSDKLJsWdq4

Tsuna Iwami admirava a cerâmica e realizaria em seu ateliê peças cuidadosamente elaboradas. Tive o privilégio de receber um pote com meu nome em ideograma nipônico. Faz-me lembrar de uma figura rigorosamente singular, que me privilegiou com sua amizade. Um músico a ser perenizado.

The reception to “Dai-Nippon” by Wenceslau de Moraes was great. Readers would also like to know more about the composer Tsuna Baikyoku Iwami. I transcribe an interview I conducted with him, published by the Journal of the Brazilian Studies Institute (Instituto de Estudos Brasileiros – IEB) of the University of São Paulo in 1995.