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Admiração pela bela carreira na aviação comercial internacional

Do homem, não me pergunto «qual é o valor das suas leis»,
mas sim «qual é o seu poder criativo»?
Antoine de Saint-Exupéry
(“Carnets”)

Recebi muitas mensagens que me sensibilizaram, pois entenderam que, no post anterior dedicado ao impecável comandante César Sfoggia Júnior, eu homenageava in adendo toda uma extensa classe de pilotos que desafiam as alturas com destemor e profissionalismo. Alguns jamais pensaram no piloto e em suas atribuições, mas apenas nas viagens. Aqueles que assim pensaram, felizmente, escreveram que abrirão as mentes para a missão do piloto e, ao que tudo indica, serão leitores dos livros preciosos de Saint-Exupéry. Oxalá isso ocorra.

Confesso que, sempre que atravessava o Atlântico, pensava nessa proteção inequívoca de profissionais responsáveis que escolheram a profissão, majoritariamente por vocação. Vinha-me a imagem do meu primeiro voo, quando, após recital de piano em Botucatu no segundo lustro dos anos 1950, a convite do Arcebispo Dom Henrique Golland Trindade (1897-1974), regressei a São Paulo num avião Paulistinha com apenas dois lugares, do piloto e do passageiro, e cujas portas eram de uma espécie de lona. Lentamente chegamos à cidade. Verdadeiro deslumbramento.

Eliane Ghigonetto Mendes, inúmeras vezes presente neste espaço, escreveu: “Fascinante todo esse relato do Comandante César Sfoggia. ‘Voei’ com vocês dois, ‘planando’ a cada momento…”. O professor titular da FFLECH-USP, Gildo Magalhães ponderou: “Realmente, o tema pode surpreender, mas não é insólito, para quem conhece o interesse do amigo pela experiência humana e talvez haja mais de um ponto em comum entre atravessar o céu e atravessar um concerto. Muito bom”.

Reuni alguns questionamentos dos leitores que prestigiam o blog semanal e os transmiti ao comandante César Sfoggia.

Q. “Nas importantes empresas aéreas internacionais, qual o papel do comandante em relação ao comportamento indevido de determinados passageiros?”. R. “A tripulação de comissários tem treinamento para esses casos. O comandante em hipótese alguma sairá da cabine de comando. Em situações extremas será feito pouso não programado para desembarque do passageiro pelas autoridades policiais. Existem empresas que exigem ressarcimento nesses casos”.

Q. “Qual a autoridade do comandante frente a toda a tripulação?” R. “Ele é o responsável com plenos poderes pela operação e segurança da aeronave e é também o representante da Empresa/Empregador. Todas as decisões finais estão sob seu cargo. Autoridade outorgada pelo código brasileiro de aeronáutica (Lei 7565/1986)”.

Q. “Qual a idade limite para a atividade de um comandante nesses voos internacionais? R. “O limite de idade do comandante para voos internacionais é de 65 anos”.

Q. “Num voo transoceânico, qual o período de descanso da tripulação para o retorno ao aeroporto inicial?”. R. “Está tudo relacionado na Lei 13.475/2017. Jornada de trabalho de até 15 horas, 16 horas de repouso, este começando após o corte dos motores mais 45 minutos. Jornada de mais 15 horas, idem para o início do repouso, ou seja, no caso, 24 horas. No retorno ao Brasil serão acrescidas mais duas horas por fuso horário cruzado”.

Q. “Tem o comandante desses longos trajetos a possibilidade de prolongados cochilos reparadores? R. “Varia de acordo com as políticas das Empresas, obedecendo as normas da agência de aviação do país da matrícula da aeronave. Uma Empresa do Oriente permite, quando em voo de cruzeiro, cochilo máximo de 30 minutos de duração. Há normas diferenciadas das agências reguladoras de cada país. No Brasil temos a Anac”.

Q. “Às vezes, acidentes aéreos com sobreviventes acontecem em locais inóspitos, como florestas densas, montanhas geladas e mesmo na água. Será que a tripulação, comandante incluso, recebe treinamento para sobreviver em tais condições enquanto espera por resgate? Em caso afirmativo, esse treinamento é prático ou apenas teórico? R. “As aeronaves dispõem de equipamentos de sobrevivência e a tripulação tem treinamento para pouso na água. Possuem as aeronaves kits de sobrevivência no mar. Há botes e coletes para todos a bordo. É dado treinamento para evacuação de emergência e fogo a bordo, assim como para emergências médicas”.

Q. “Como é feita a avaliação psicológica de um piloto? Existe uma reavaliação periódica?”. R. Sim, para cada grau da licença de piloto, a saber, piloto privado, piloto comercial e piloto de linha aérea, são feitas avaliações psicológicas. Quando do ingresso em companhias aéreas esses exames também são realizados. Há uma preocupação quanto à saúde mental dos tripulantes e, para isso, cada empresa tem seus processos de avaliação.

O comandante César Sfoggia complementa que “as Cias. Aéreas do mundo todo são obrigadas a seguir as normas das autoridades aeronáuticas do país de registro/matrícula da aeronave. Exemplificando: Europa – Agência EASA, Brasil – ANAC, China-CAAC, Inglaterra – CAA, Qatar – QCAA. O Brasil segue as normas da Agência da ONU para a aviação, a ICAO, sede em Montreal”.

Sob outra égide, os diálogos com o comandante César fluíram constantemente intermediados pela aura de Saint-Exupéry e seus extraordinários relatos. Bastou ter mencionado o nome do piloto-escritor para, de imediato, César confessar o pleno conhecimento de seus livros, fato que me levou a entender que a escolha do amigo pela aviação foi motivada pela vocação. Não lhe bastaram os difíceis cursos necessários, havia em sua mente essa centelha voltada ao passado da aeronáutica, suas histórias, seus relatos, sua literatura. As menções no blog anterior aos pilotos que marcaram época apenas comprovaram a destinação precisa que levou César Sfoggia Júnior à brilhante carreira internacional durante as 30.500 horas de voo. Sua trajetória não é apenas a do piloto que se tornaria comandante, mas de alguém que vive nas alturas, cultuando o maravilhamento que a aviação proporciona.

Quando mencionei a obra maior de Saint-Exupéry, “Citadelle”, César e eu trocamos ideias confluentes. Mencionaria uma frase que sintetiza aquilo que o livro contém, redigida por sua irmã, Simone de Saint-Exupéry (1898-1978), que tive o imenso privilégio de conhecer nas tantas tertúlias literomusicais no apartamento do seu primo diplomata, Baron André de Fonscolombe, há mais de sessenta anos, como expressei no post anterior. Responsável pela edição de “Citadelle”, Simone de Saint-Exupéry escreve sobre a obra “densa e profunda que aborda todos os problemas da destinação humana e do condicionamento do homem”.  Toda a maturação do piloto escritor, seu pensar humanista estão concentrados na sua criação maior, apesar “de não ser uma obra acabada. No pensamento do autor ela deveria ser abreviada e remanejada seguindo um plano rigoroso que, no estado atual, dificilmente se reconstitui. Saint-Exupéry frequentemente retomava os mesmos temas, seja para expressá-los com mais precisão, seja para esclarecê-los com uma daquelas imagens de que só ele tinha o segredo”, escreveu sua irmã. Acredito que o conteúdo de “Citadelle,” através dos inúmeros escritos que iriam compô-lo, teria origem mormente após a experiência marcante que o piloto viveu em seus voos solitários ou acompanhado por um copiloto ou mecânico. Nas conversas com o comandante César, que realizou incontáveis voos com aviões pequenos e desprovidos da tecnologia atual, mas igualmente com o poderoso Boeing B747-400F, depreende-se que o pensar do piloto também atinge outras dimensões, se assim o quiser. Saint-Exupéry conseguiu alcançar um nível transcendente e a sua herança resultou perene.

Ao finalizar o post atual, repensei a frase do professor Gildo Magalhães, mencionada acima: “talvez haja mais de um ponto em comum entre atravessar o céu e atravessar um concerto”. Sim, se há alguma possível relação, ela se situa naquilo que o filósofo e musicólogo Vladimir Jankélévitch (1903-1985) conceitua, o inefável, que leva, máxime para o intérprete, às esferas não tangíveis.

In the previous post, the airplane commander César Sfoggia Jr. shared some interesting details of his career in commercial aviation in Brazil and abroad. His report has sparked many questions from readers, which he answers in the current post.

 

Conversas a partir das 30.500 horas de voo

O piloto não se mexeu. O motor foi ligado. O piloto sentiu nos ombros, apoiados no avião, que o avião estava vivo.
O piloto finalmente se tranquilizou, depois de tantas notícias falsas: vai partir… vai partir… não vai… vai partir!
Sua boca se abriu ligeiramente e os dentes brilharam ao luar como os de um jovem animal selvagem.

Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944)
(“Vol de Nuit”)

Desde a juventude sempre admirei a literatura sobre a aviação, máxime durante e após os estudos pianísticos em França, entre os anos 1958-1961. “L’Équipage”, de Joseph Kessel (1898-1979), foi o primeiro livro. Relata aventuras aéreas durante o conflito 1914-1918. Contudo, a grande revelação veio através da leitura paulatina, naqueles tempos em Paris, da opera omnia de Antoine de Saint-Exupéry, piloto e escritor, mercê igualmente do convívio às quartas-feiras com o Barão André de Fonscolombe, primo do escritor, durante tertúlias literomusicais no apartamento do diplomata. Frequentava essas inesquecíveis reuniões a irmã de Saint-Exupéry, responsável pela edição da obra-prima do ilustre irmão, “Citadelle”. Simone de Saint-Exupéry, nesses encontros, lia sempre um trecho dessa criação fundamental e por vezes colocava gravações do irmão referentes à obra ora editada (Gallimard – Bibliothèque nrf de la Pléiade, 1959). Tornou-se o meu livro de cabeceira. A releitura se deu após diagnóstico sombrio que me levou a rígidas quimioterapias em 2004, questionando-me sobre qual o livro a ser lido naqueles possíveis momentos finais, e veio-me instantaneamente “Citadelle”. Dediquei ao longo do tempo vários posts à obra de Saint-Exupéry.

Após a mudança da casa para um apartamento na mesma rua, cruzo ainda mais frequentemente com moradores do entorno e César Sfoggia Júnior (1956-), comandante de aviação, é um deles. Conheço-o há muitos anos, mas estreitamos ainda mais nosso relacionamento nesses últimos meses. Marcamos um café na vizinhança e apreendi não apenas sobre o currículo de César, como também partilhamos nossa incomensurável admiração pela obra literária de Saint-Exupéry.

As 30.500 horas de voo de César, a partir de 1974, foram repartidas pelas inúmeras companhias aéreas para as quais trabalhou. Inicialmente voou como piloto privado e comercial em regiões ao Sul e Centro Oeste, sendo que apenas após 1.500 horas de voo obteve a licença de piloto de linhas aéreas, PLA. De 1977 a 1979, foi piloto de táxi aéreo em Belém do Pará, sobrevoando constantemente a floresta amazônica. Nesse curto período perdeu 11 companheiros, mercê prioritariamente dos instrumentos de orientação de voo, precários em relação aos existentes nos aviões de carreira que cruzavam o planeta. De 1979 a 2006, ano do encerramento das atividades da Varig, esteve como copiloto, primeiramente em voos domésticos, passando a seguir a comandante de voos internacionais para Europa, Ásia, Estados Unidos e países do Mercosul. Trabalhou depois para a Jade Cargo Internacional, uma empresa com sede em Shenzhen, na China, de 2006 a 2011, ano de encerramento da empresa. Suas viagens nesse período se estendiam da China à Europa. Os aviões Boeing 747-400F (412 toneladas) têm peso superior aos dos Boeings de passageiros (396 t.). Posteriormente, de 2013 a 2020, ano do início da pandemia, foi comandante de empresa aérea do Catar. Presentemente atende a aviação executiva no Brasil.

César lamenta o desaparecimento de empresas que mereciam consideração plena no país, máxime a Varig, mas também a Vasp e a Transbrasil. Entende como fruto das más gestões, nem sempre claras, o encerramento de suas atividades, mormente da Varig, que era símbolo de orgulho para os brasileiros.

Ao longo das décadas, acumularam-se muitas dúvidas a respeito dos voos nas cerca de 60 viagens internacionais que realizei a fim de atividades pianísticas e musicológicas, prontamente respondidas com a maior segurança pelo amigo. Certamente, muitas delas integram questionamentos de legião de viajantes.

O crescimento dos voos internacionais implicou um aumento significativo de profissionais ligados à aviação. César ponderou que, décadas atrás, a duração da aprendizagem para pilotagem era maior, fato que não se repete na atualidade, o que é um mal certamente.

Elencou algumas preocupações para um comandante de voos internacionais. Elas existem e estão intrinsicamente ligadas à responsabilidade.

Sobre os aeroportos que conheceu e que merecem maior atenção dos pilotos, mencionou, entre outros, o de Amsterdam (latitude muito elevada), Quito (a 2.400 metros nos Andes), Lisboa (vento cruzado). Uma das preocupações dos pilotos é a presença do gelo nas asas da aeronave, que pode ocorrer em voo ou no solo. Nesta última situação, aplica-se processo líquido antigelo meia hora antes da aeronave alçar voo. Nas alturas, aciona-se o ar que se mantém dentro das asas que, aquecido, elimina o gelo. O problema maior ocorre nos aviões turboélices, cuja altitude máxima é de 9.000 metros, portanto mais sujeitos ao gelo, enquanto os jatos comerciais atingem 12.000 e podem encontrar gelo nas asas durante as subidas e descidas. Estou a me lembrar de que, ao retornar ao Brasil durante rigoroso inverno em voo da Air France, por segurança antes da partida, já com todos os passageiros no interior da aeronave, aguardamos por mais de uma hora a retirada do gelo sobre as asas. Bombeiros em um caminhão com poderosa mangueira e líquido especial misturado à água quente encharcaram as asas da aeronave, formando uma espessa espuma logo diluída.

Perguntei-lhe a respeito da situação mais dramática em toda a sua trajetória na aviação. César Sfoggia Júnior foi contundente: “No ano 2000, ao efetuar a decolagem com peso máximo de 290 toneladas, numa aeronave Douglas MD 11, saindo de São Paulo com destino a Los Angeles, logo após, ao sobrevoar um rádio-auxílio à aeronavegação, notei que o avião não estava ganhando altitude, pois começou a descer. Olhei rapidamente para os aceleradores automáticos e, dos 3 motores, dois estavam reduzidos à potência de marcha lenta. Eu estava voando com peso máximo com 1 motor apenas!!! Acelerei estes dois e reassumimos a subida para o nível de voo de cruzeiro. Curioso, éramos 4 pilotos na cabine e só eu vi esta situação, que poderia ter sido uma grande tragédia. Na realidade, tivemos interferência eletrônica deste rádio-auxílio nos aceleradores automáticos do avião”.

Por fim fiz uma pergunta abrupta sobre o Medo. A resposta foi totalmente inusitada. “Nunca nas alturas, mas jamais entraria em um submarino”.

César e eu retornamos a Saint-Exupéry e o amigo comandante, numa viagem imaginária, considerou como verdadeiros ícones os pilotos que cruzaram o Atlântico a serviço da empresa francesa Aéropostale. Três permearam as nossas conversas, Saint-Exupéry, Jean Mermoz (1901-1936), que realizou a primeira viagem transatlântica de correio aéreo sem escalas, do Senegal a Natal em 21 horas, e Henri Guillaumet (1902-1940), pioneiro da aviação francesa nos Andes. A epopeia de Guillaumet, após queda do seu avião nos Andes, é relatada em “Terre des Hommes” (1939), livro de Saint Exupéry.

Sob outra égide, lembramos da brasileira Ada Rogato (1910-1986), que obteve brevê de piloto de planador e de paraquedas, tendo em voos solitários sobrevoado as três Américas. A jornalista Lucita Brisa escreveu substancial biografia da aviadora: “Ada – mulher pioneira aviadora” (C e R Editorial, 2011).

César Sfoggia Júnior não é apenas um comandante de aviação dos mais experientes. Suas histórias preencheriam vários blogs. Uma das suas qualidades, aferida durante nosso encontro e certamente fundamental no comando de uma aeronave, é a serenidade, evidente ao expor as narrativas.  Saí enriquecido após relatos inéditos para este admirador, mas leigo na matéria.

Conversations with César Sfoggia Júnior, an aviation commander with extensive experience in various airlines. A friend and neighbor, César has 30,500 flight hours under his belt.  One of his qualities, certainly essential when piloting an aircraft, is his calmness, evident when recounting  his stories.

 

A volúpia progressiva das construtoras pelos espaços

Para que suceda o que vejo futuro,
não preciso nada de convencer ninguém;
virá, quer o queiram quer não, porquanto já existe.

Agostinho da Silva (“Espólio”)

Sem tréguas, bairros da zona sul da cidade, Brooklin, Monções e Campo Belo assistem ao desmoronamento de casas e do pequeno comércio, mercê da avassaladora sanha das construtoras com o fim da edificação de prédios, muitos deles acima dos trinta andares.

Esse tema já foi tratado neste espaço, graças ao longo caminho, cerca de seis anos, durante o qual quatro construtoras se interessaram pelo entorno da nossa antiga morada, sendo que a última conseguiu alcançar os seus desideratos, adquirindo um vasto espaço ocupado por moradias, incluindo um pequeno prédio. Após 60 anos felizes na mesma casa, tivemos de ceder, sob risco de ficar ilhados. Para não perdemos as referências humanas de tantas décadas e dos locais frequentados, mudamo-nos para um apartamento na mesma rua, não distante do lar antigo, em quadra já livre de incorporações próximas. Página virada, continuaremos bem a caminhada nesta fase final da existência.

Em quarteirões distintos nos bairros mencionados, alguns moradores resistiram e estão comprimidos entre prédios que se agigantam. Essas casas estão sujeitas a dois impactos insolúveis: imensa desvalorização dos imóveis nessa situação e convivência com grandes edifícios que as comprimem. Seria salientar o mínimo. Nas minhas andanças sistemáticas pelas ruas do bairro observo a hecatombe provocada pela rápida demolição das moradas, os stands de venda – alguns faraônicos – plenos de excessos, logo destruídos para o inevitável erguimento rápido, ruidoso e empoeirado dos altos edifícios.

A célebre frase “São Paulo precisa parar de crescer”, sugestão do prefeito biônico de São Paulo (1971-1973) José Carlos de Figueiredo Ferraz (1918-1994), engenheiro, urbanista e professor titular da Escola Politécnica, foi causa decisiva para a sua demissão, assinada pelo governador Laudo Natel, mercê da convicção generalizada, datada de 1940, que ditava que “São Paulo não pode parar”. Os conhecimentos técnicos insofismáveis de Figueiredo Ferraz o levaram a entender problemas sérios que estavam por vir, vieram e assumem a dimensão que já se afigura dantesca. São Paulo tem hoje lençol freático bem exaurido, sendo que a água que abastece a cidade está destinada a vir de regiões cada vez mais distantes. Se considerarmos desde o ano do pronunciamento de Figueiredo Ferraz à atualidade, nota-se o gigantesco aumento de edifícios com muitos andares, a beirar atualmente os 30.000, número que eleva a cidade, infelizmente, a uma das principais do mundo nesse quesito. Sob outro aspecto, humano, São Paulo tinha cerca de 8,77 milhões de habitantes em 1973 e hoje, por volta dos 12 milhões, parte da população a viver nas periferias de maneira complexa. Se considerada for a expansão da cidade – não há mais fronteiras físicas com quantidade de municípios do entorno – teríamos cifra acima dos 20 milhões de habitantes. As ruas e avenidas, a cada dia mais abarrotadas de carros e ônibus em determinados períodos do dia, tornam as locomoções um fardo pesado para o paulistano. No ano da profecia do prefeito José Carlos de Figueiredo Ferraz, São Paulo contava com cerca de 500 mil veículos, carros e motos. Atualmente rodam pela cidade aproximadamente 10 milhões de carros, motos, ônibus e tipos de caminhões.

Outros bairros estão sofrendo problemas similares, pois não faltam construtoras ávidas pelos espaços com a mesma finalidade. Sem contar os megaempreendimentos, com edifícios a serem construídos em regiões ditas “nobres” da cidade com dezenas de andares e apartamentos gigantes.

As estratégias de venda na nossa região têm semelhanças. Dezenas de distribuidores de folders se espalham nos três bairros. O discurso segue uma espécie de ladainha, pois cada empreendimento merece elogios que correspondem aproximadamente às palavras: único, projeto inédito, o ponto melhor do bairro, construtora ímpar, vantagens singulares, condições de venda sem concorrência. Iniciada a construção, já há o chamamento “últimas unidades”, “unidades ainda disponíveis”. Nessas andanças, vi prédios ainda nos alicerces, com corretores de plantão proferindo sempre as mesmas palavras, “melhor prédio da região”. Em conversa com corretores independentes aprendi que a oferta de apartamentos tem sido enorme e que a grande quantidade de estúdios faz com que alguns deles desistam desses pequenos espaços em suas carteiras.

Na região do Campo Belo, há a mesma sincronia voltada às construções. Em determinadas quadras, edifícios de aproximadamente 10 andares e outros bem maiores estão cercando a Feira do bairro. Antigos frequentadores desapareceram e barracas também. Lamento, pois a visito desde os anos 1970 (vide blog “Feira Livre – uma festa para os sentidos”. 08/08/2008). Quadras inteiras já estão com aquelas muralhas de metal e a destruição das moradas se processa igualmente de maneira avassaladora.

O desmonte que está a se acentuar em parte considerável da cidade e, em particular, nessa região da zona sul, não deveria ser motivo de orgulho, mas de preocupação. Se o leitor tiver alguma dúvida, que visite os três bairros mencionados e a surpresa estará garantida.

Até quando seguiremos ignorando a advertência de Figueiredo Ferraz?

Three neighborhoods in the south of São Paulo are undergoing abrupt transformations: Brooklin, Campo Belo and Monções. Houses and small businesses are being destroyed and a multitude of apartment buildings are under construction, some with more than 30 floors. In 1973, the city’s mayor made a prophecy: “São Paulo must stop growing” How long will we ignore his warning?