Navegando Posts em Cotidiano

Desdobramentos da leitura frente à pandemia

El terror a la peste es, simplemente,
el miedo a la muerte que nos acompañará siempre
como una sombra.
Mario Vargas Llosa
(El País, Piedra de Toque, 14/03/2020)

Meses sob pressão motivada pela pandemia fazem com que a peste, esse tema recorrente ao longo da História, provoque interpretações as mais diversas. É natural que assim seja. Os séculos guardam na memória testemunhos que, ou pela escrita ou através da oralidade, são revisitados sempre que episódio marcante assim determine.

Constantemente menciono nos blogs diálogos profícuos com o amigo Marcelo, que encontrava aos sábados na feira-livre de minha cidade-bairro. Leitor assíduo dos posts hebdomadários, marcávamos um curto em um dos cafés das cercanias e discutíamos. O confinamento distanciou-me desse aprazível mercado aberto, espaço que sempre tive imenso prazer de frequentar. Já lá se vão mais de quatro meses de pleno isolamento.

Deu-se situação singular num desses dias. Marcelo toca a campainha, atendo-o com a máscara e ambos conversamos ao ar livre, sentados num banco interior e frente ao pequeno jardim de casa. Bem mais jovem, Marcelo transita protegido. Lera na manhã de sábado último o texto a comentar La Peste, de Albert Camus, e durante um bom tempo abordamos a temática e seus reflexos nesses tempos do Covid-19, pois não lera o livro e entendeu pertinente o tema.

Os blogs têm seguido uma dimensão que possibilite a leitura, se não integral numa primeira abordagem, completa após revisita. Busco escrever essencialidades sucintamente, mas entendo que, pelo alcance, outras fiquem prejudicadas. Os questionamentos de Marcelo serviram para comentá-los nesses Ecos sobre La Peste.

Suas indagações invariavelmente voltavam-se à nossa pandemia e, interpretando suas palavras, “o tema que o fez pensar numa exaustão do povo quanto ao noticiário”. Há sim semelhanças entre o conteúdo do livro e a nossa realidade. Camus estabelece em sua narrativa aspectos hodiernos frente ao flagelo que nos assola. Da revolta inicial em tempos da peste passa-se a uma acomodação, ao relaxamento e, tantas vezes, à depressão. Camus acompanha as transformações do concidadão. Anônimo, este adquire importância crucial, observado quase sempre nessa atmosfera de espanto. Na epígrafe do blog anterior já mencionara uma de suas frases: “A peste suprimira julgamentos de valor. Via-se que ninguém mais se preocupava pela qualidade das vestes ou dos alimentos que compra. Aceitava-se tudo em bloco”. Seria o que hoje definimos como efeito manada. “Não se estaria a aceitar o cansaço do povo quanto às cifras dadas com profusão e ênfase pela mídia?”. À pergunta de Marcelo diria que em La Peste esse posicionamento é claro. Hoje, à custa de informações diárias pelos veículos de comunicação, não sem antes manter o ouvinte ou telespectador em suspense, esse cidadão também se cansou, caso dele específico. Quase poderíamos não errar ao dizer que a mídia necessita desses números elevados, verdadeiro chamariz. Durante quanto tempo, exaustivamente, Mariana e Brumadinho não estiveram em pauta? O cansaço de que nos fala Camus advém do excesso de notícias que se repetem ad nauseam.

A conversa com Marcelo abordou reflexões do personagem Jean Tarrou diante de duas condenações à morte que o marcaram profundamente: a primeira, após julgamento a ter seu pai como juiz, sentenciando à pena capital um acusado e a segunda, presencialmente, ficando-lhe indelével a impressão da cena do fuzilamento de outro infeliz, quando enfatiza a ínfima distância entre o batalhão e o condenado. A construção de outro livro relevante de Camus, L’Étranger, é realizada, entre tantas implicações, na direção à guilhotina da figura central do livro, Meursault, este aparentemente indiferente frente à vida e à morte. Evidencia Camus um repúdio à pena máxima. Uma frase de Camus é decisiva: “No universo do revoltado, a morte exalta a injustiça. Ela é o supremo abuso”. Na cena final da peça teatral Caligula, a preceder o assassinato do imperador romano, Albert Camus insere em uma de suas últimas falas: “Quem ousará me condenar nesse mundo sem juiz onde ninguém é inocente!”. Em 1954 intervém a favor de sete tunisianos condenados à morte. Acrescentei que apenas em 1981 a pena de morte foi abolida em França. Estou a me lembrar de meus anos como estudante em Paris nas fronteiras das décadas de 1950-1960. Quase todas as noites tomava sopa e bebia uma taça de vinho tinto com o adorável casal de concierges do prédio onde eu morava. Mais de uma vez, Robert Orambourg, leitor diário de jornal popular, comentou episódios de execuções de condenados à guilhotina. Espantou-me o fato de que uma dessas execuções se dera poucas semanas após o julgamento de bárbaro crime. Jean Tarrou, após ter narrado ao personagem central, Dr. Rieux, o trauma que o acompanharia pela existência devido àquelas duas condenações à morte, ao sucumbir vítima da peste teria, talvez, encontrado a “santidade sem Deus”. Apesar de não acreditar em Deus, Camus não se considerava ateu. No caso de Meursault, no peristilo do cadafalso há a sua plena revolta ao receber a visita do Padre a falar que rezaria por ele.

Em nossa profícua conversa observei que, sob outra égide, a de Saint-Exupéry, Camus também apresenta, através de seus vários personagens, mensagens sobre essencialidades da condição do homem. Acrescentei que se, sob o aspecto humano, “há mais coisas a admirar do que a desprezar”; sob o lado dos periódicos flagelos nada a fazer, mas sim aguardá-los, pois vírus ou bactéria estariam sempre à espreita através dos tempos. Fui buscar o livro e traduzi para Marcelo o final contundente quanto às futuras e malfadadas pestes: “Escutando efetivamente os gritos eufóricos que vinham da cidade, Rieux se lembrou de que essa alegria estava sempre ameaçada. Sabia ele que se pode ler nos livros que o bacilo da peste não morre, tampouco jamais desaparece, mas que essa multidão alegre ignorava tal fato. O bacilo pode permanecer durante dezenas de anos dormindo nos móveis e nos lençóis, a esperar pacientemente nos quartos, nas caves, nas malas, nos lenços e na papelada. Talvez dia virá quando, por desgraça e para ensinar os homens, a peste despertará seus ratos e os enviará para morrer numa cidade feliz”.

Finalmente, Marcelo disse-me que lera nesses últimos dias, num site portal conhecido, que o Prêmio Nobel de Literatura (2010), Mario Vargas Llosa, escrevera que La Peste era um livro medíocre. Disse-lhe que tinha lido o artigo publicado em El País, periódico espanhol, em sua coluna Piedra de Toque. Discordo, data venia, da posição do ilustre Mario Vargas Llosa, escritor que muito admiro, a entender inoportuno e até deselegante segmento de seu artigo Regreso al Medioevo? (14/03/2020): “La peor novela de Albert Camus, La Peste, tiene un súbito renascimento y tanto en Francia como en España se hacen reediciones y esse libro mediocre se há convertido en un best seller”. Considere-se que a afirmação se destina a uma das obras essenciais de Albert Camus, Prêmio Nobel em 1957. Opiniões, opiniões…

Once again I write about Camus’ novel The Plague, with focus on the similarities between the book and the moment we now live: tiredness, sometimes almost indifference, in face of the sensationalist media coverage of the Covid-19 pandemic, the heroism of ordinary people doing extraordinary things, the awareness – as in the final paragraph of the book -  that plagues never die, they just lie dormant waiting to take us by surprise. And, opposing this pessimism, the faint note of optimism when the novel’s main character says  “there are more things to admire in men than to despise”. Camus, the man who said he didn’t believe in God but was not an atheist, had faith in humanity after all.

Entrevista a J.E.M.

Deus não se afirma nem se nega:
Deus É, mesmo quando não é, numa plena manifestação da sua extrema liberdade.
Agostinho da Silva (1906-1994)
(“Do Previsível e do Imprevisível”)

Sugeri ao meu irmão, Ives Gandra Martins, notável jurista, uma entrevista para o blog semanal. Motivos vários levaram-me à ideia. Primeiramente pelo fato de que Ives sofreu recentemente uma quarta cirurgia do Divertículo de Zenker (processo endoscópico), que resultaria, mercê de consequências imprevisíveis, em uma série de adversidades ao longo de prolongada hospitalização no referencial Hospital Sírio-Libanês. Restabelecia-se das vicissitudes quando contraiu o Covid-19. Apenas como referência, acrescentaria que em 2018 fui também operado do Divertículo de Zenker por endoscopia, intervenção relativamente simples, mas que imprevisivelmente provocou uma pneumonia, a me reter durante uma semana em UTI no ótimo Hospital Santa Catarina.

J.E. – Em algum momento antes da cirurgia, devido à sua faixa etária, alertaram-no sobre decorrências?

Ives – Não houve qualquer alerta, creio que pela simplicidade da operação. Os médicos esperavam que pudesse até sair à tarde.

J.E. – Naqueles angustiantes dias em que sequencialmente o seu organismo não reagia, seu genro e eu, sempre em contato, temíamos pela sua vida. Que força interior o levou a acreditar numa recuperação e em algum momento o irmão temeu a morte? É de conhecimento público sua religiosidade. Em que dimensão a situa?

Ives – Após o procedimento endoscópico tive, algumas horas depois, uma isquemia, sendo levado de imediato para uma unidade cardiológica. Na sequência, houve uma septicemia que me deixou em coma por seis dias. O estado inconsciente leva, todavia, em alguns momentos, o paciente a delirar. No meu caso, quando saía do estado comatoso, distinguia alguns elementos da família, mas voltava rapidamente a participar do delírio, revivendo fatos históricos (2ª Guerra Mundial, independência do Brasil, a guerra de secessão, etc), que desapareciam sempre que abria os olhos. Quando saí da inconsciência, contaram-me que ficara seis dias entubado e em coma. Assim que me livrei do entubamento e fui da UTI para a Semi-UTI e depois para quarto, peguei o corona vírus, ficando mais 11 dias no Hospital Sírio Libanês. Ao todo 38 dias. Nestes momentos, o importante é não desanimar, manter o espírito aberto – sempre brinquei com a enfermagem – e manter-se a par do que estava acontecendo no Brasil e no mundo. Foi o que fiz. Estou, todavia, convencido de que as orações de todos e as minhas também – assistia às missas diárias na TV quando fui liberado – levaram o médico divino a curar-me.

J.E. – Ao visitá-lo por duas vezes, não entrei no espaço em que o irmão estava na UTI, pois não me ofereceram máscara, jaleco ou avental descartável. Vi familiares e visitantes que entraram no seu espaço da UTI sem qualquer proteção. Seria uma das causas dos problemas até a contaminação pelo Covid-19?

Ives – Não creio. O mais possível é que dois dos médicos que me tratavam e que tiveram o corona, tenham-me passado.

J.E. – Durante os 38 dias hospitalizado o irmão acompanhou o início da evolução do Covid-19 no Brasil, temendo-o?

Ives – Quando peguei o novo corona vírus fiquei um pouco preocupado, mas nos 11 dias isolado não tive falta de ar, nem precisei de respirador.

J.E. – Qual a sua reação, em pleno processo de recuperação pós-operatória, ao saber da contaminação pelo Covid-19?

Ives – Não foi agradável, pois já estava internado há 27 dias, mas enfrentei, com tranquilidade, pois não havia outra alternativa.

J.E. – Tenho acompanhado as pesquisas internacionais a envolver medicamentos como Hidroxicloroquina + Azitromicina e Plaquenil. Em França, resultados concretos a partir da Hidroxicloroquina + Azitromicina têm sido reais, mormente a partir do protocolo do Dr. Didier Raoult, de Marselha. Correntes do governo francês contrariam as pesquisas alvissareiras do Dr. Raoult. O medicamento não é caro, mas precisa ser indicado por médicos, pois arbitrariamente consumido pode até levar a óbito. Dado o seu estado de saúde pré-Covid-19, esse medicamento foi-lhe administrado? Teria sido igualmente prescrito à Ângela, sua filha na foto, que contraiu o Covid-19 e já está curada?

Ives – Por lutar há 30 anos contra a artrite, tomei Plaquenil e Plaquenol durante muitos anos, que são remédios à base de Quinino. Talvez tenha havido alguma proteção pelo depósito de Quinino no corpo. No hospital, todavia, não tomei o remédio.

J.E. – Não teriam os três Poderes de se debruçar bem mais sensivelmente sobre áreas como saúde, educação, saneamento básico? O SUS, sustentáculo tênue nessa avalanche de infectados que a todo momento acorre aos seus postos, tem sofrido retração constante das verbas. Os índices estratosféricos do Covid-19 nos Estados Unidos não seriam bem inferiores tivesse o país um modelo público, tipo SUS? Não mereceria doravante o SUS uma atenção plena do governo, mormente pelo crescimento excessivo, pós-Covid-19, das classes menos favorecidas?

Ives – Passo-lhe artigo por mim escrito que saiu no Migalhas [vide link abaixo], entendendo que a união entre as três esferas da Federação seria fundamental para combater a Covid-19. Nenhum país do mundo estava preparado para enfrentar a pandemia, com “escolhas de Sofia” sendo feitas em países desenvolvidos como Itália e Espanha. No caso brasileiro, a não obediência ao confinamento tem dificultado ainda mais o combate a sua disseminação.

J.E. – Sobre a problemática confinamento-economia, quais suas perspectivas?

Ives – “É difícil dizer. Os governos estão gastando mais e recebendo menos. Se forem para um aumento da carga tributária para compensar a perda, esgotarão a sociedade e atrasarão a recuperação. Se pretenderem emitir moeda para se autofinanciar gerarão, no tempo, inflação.

A única forma seria, visto que 35% aproximadamente da carga brasileira é destinada aos servidores públicos de todas as entidades federativas e poderes, que houvesse um gesto de redução temporária de seus vencimentos, visto que está havendo redução de salários no setor privado e desemprego. Neste sentido, passo-lhe o texto de meu artigo “A omissão burocrática” publicado no “Estadão” [vide link abaixo]. O certo é que o mundo terá que repensar em nível de solidariedade e soluções econômicas e sociais a partir de agora. No Brasil, só com a redução da esclerosada máquina burocrática teremos condições de sair da crise.
Há 50 anos faço o melhor negócio do mundo: dou meia hora do meu dia assistindo uma missa e mais algum tempo entre oração, terço e poucas devoções, e recebo mais de 21h de Deus para gozar daquele dia. Nenhum banco pagou juros tão generosos, em qualquer momento da história da humanidade.

J.E. Ives enviou-me as respostas no dia 19 de Maio. Há exatamente 20 anos morria nosso saudosíssimo pai, figura emblemática na nossa formação, dias antes de completar 102 anos e um ano após nossa querida mãe. Hospitalizado, ouvi, uma hora antes do desenlace, as batidas aceleradas de um coração que batera sem cessar de 1898 ao ano 2000. Dois dias após, ouvia em uma maternidade o coraçãozinho acelerado da neta Valentina, que está a completar 20 anos. Mistérios insondáveis!

Finda a entrevista, Ives pediu-me para inserir Dumka de Tchaikowski, peça que interpretei em 1962 no Conservatório P.I.Tchaikowsky, Moscou, durante o II Concurso Internacional Tchaikovsky. Agradeço ao dileto amigo Elson Otake que atende à solicitação do irmão, introduzindo a composição no Youtube.

https://www.youtube.com/watch?v=S1IQtIpZCJA

“O combate ao coronavírus”

https://migalhas.com.br/depeso/326553/o-combate-ao-coronavirus

“A omissão burocrática”

https://gandramartins.adv.br/artigo/a-omissao-burocratica/

Today I publish a “conversation” with my brother, the eminent lawyer Ives Gandra Martins, who has recently been admitted to hospital for a simple and quick surgery, expecting to be discharged on the same day. However, a series of unexpected post-surgery complications including a six-day comma and later an infection by coronavirus kept him in hospital for 38 days. The family feared for his life, but fortunately he is already at home in a good general state. In this interview for my blog, Ives talks about his days in hospital and how his strong faith contributed to a positive attitude towards his health. As an expert tax lawyer, he also gives his views on the predicted economic and human chaos after Covid-19, stating that in Brazil, only with the reduction of its sclerotic bureaucracy the country will be able to get out of the crisis.


Entrevista de raro interesse

A mundialização devia estar feliz.
Ela é uma dama das camélias: infectada.

O vírus é a flor do mal
crescendo ao contato do mundo interior e exterior.

Sylvain Tesson
(Entrevista: “Que ferons-nous de cette épreuve?”)

Meu dileto amigo, compositor François Servenière, enviou-me recente entrevista do aventureiro e escritor Sylvain Tesson a tecer reflexões sobre o confinamento devido ao COVID-19. A entrevista, concedida a Vincent Tremolet de Villers e publicada inicialmente no Le Figaro aos 19 de Março último, teve outra edição pela Gallimard em Tracts de crise, nº 23.

Uma das qualidades de Sylvain Tesson em suas entrevistas é a agilidade de raciocínio, quase sempre coerente e original. A larga experiência que adquiriu em suas andanças pelo mundo, que resultaria em uma bibliografia considerável (vide no menu: Livros,   Resenhas e Comentários – lista), faz com que, da inquietação pelo confinamento, Tesson passe a refletir sobre o significado dessa exclusão social, assim como a respeito do humano diante do COVID-19. Frente às seis perguntas do entrevistador, o escritor se posiciona com clareza.

Primeiramente entende que a ultramundialização terá avaliação efêmera no futuro. Acredita que, desde a queda do muro de Berlin, o materialismo e a banalização das relações humanas via internet fazem com que “o digital complete a uniformização”.  A partir dessas premissas, Tesson caracteriza aspecto fulcral: graças às reações rápidas impostas pela mundialização, fomos levados ao “fique confinado”, algo impensável anteriormente. Tem dúvidas sobre o pós-COVID-19, passado o que ele denomina pangonligate, referente à possível transmissão por pangolins ou morcegos.

Tesson comenta a posição do catastrofista, que faz parte dessa atração do homem pela morbidez. “Para certos profetas da catástrofe, não há necessidade de inventar o futuro, nem de suavizar a análise, tampouco de se lançar inteiramente na conservação daquilo que se mantém. O infeliz fundamentalista anuncia o inferno de Bosch, mas estoca patês. Muitos esfregam as mãos e dizem: ‘Nós bem que avisamos!’ Não perceberam que o pontapé inicial partiu de um pequeno animal parecido com um panzer vestido por Paco Rabane”. Instado pelo entrevistador sobre quais conselhos poderia dar de seu confinamento, Tesson acrescenta: “Você percebeu a nossa chance? Durante quinze dias o Estado assegura a mordomia de nosso confinamento forçado. Há um ano, parte do país queria derrubar o Estado. De repente, tem-se consciência: é mais agradável sentir uma crise na França do que na Curlândia Oriental. O Estado se revela como Providência que não exige devoção. Pode-se cuspir sobre ele, mas ele virá socorrê-lo”.

Tesson observa dado relevante que faz toda a diferença nesse confinamento forçado, a vida interior que parte da humanidade desconhece: “Tenho compaixão pelos que passarão dias longe de um jardim”. A pensar possivelmente no letrado com acesso à cultura como ideal, considera essa compaixão estendida “àqueles que não amam a leitura e que ‘não têm a menor noção que um Rembrandt, um Beethoven, um Dante ou um Napoleão existiram’, como escreve Stefan Zweig no início do Jogador de xadrez”.

Crítico mordaz de aspectos da tecnologia voltados à imagem nas telas, seja ela televisiva ou através das engenhocas que invadiram o planeta, mormente neste século, afirma: “Abram os livros. Diante de uma tela vocês estarão duas vezes confinados!” Insiste em outro segmento da entrevista: “Tomamos consciência de evidências esquecidas. Citemo-las: Ficar em casa não significa detestar seu vizinho. Os muros são membranas de proteção e não blindagens hostis. Eles são perfurados por portas e podemos escolher abri-las ou fechá-las. Ler não significa se aborrecer”.

Insiste nesse tema da nocividade da alienação motivada pela fixação do homem atual nesses avanços tecnológicos: “Nós, humanos do século XXI, seguimos bem desfavorecidos nesse desafio que nos é proposto. A nova ordem digital-consumista habituou-nos a temer o vazio. A revolução digital é um fenômeno hidráulico. Internet e vaso sanitário, preenchem o espaço vacante em alta velocidade. O tubo tem sede. É necessário fluir! De repente, o confinamento impõe uma experiência do vazio. Não se deve, contudo, agir como preconiza a conexão integral: preencher tudo com qualquer coisa.” Em “Une três légère oscillation” (vide blog, 28/03/2020), o autor, sob outro olhar, comenta essa realidade. Necessário verificar que não se trata de elitismo quando Tesson sugere a leitura, assim como o acesso à cultura artística, musical, filosófica acima mencionada, através da citação de expoentes nessas áreas. O vazio viria da desinformação, da impossibilidade de o homem moderno se ater a aspectos da cultura humanística pelo massacre diário, através do baixíssimo nível de parte substancial das programações televisivas, dos sites portais e dos aplicativos das engenhocas digitais mais evidentes, que desconsideram quase completamente a cultura dita erudita, enaltecendo o lixo da imagem, dos costumes, da linguagem, atentados que desvirtuam as mentes.

Nesse período com desfecho imprevisível, em que se assiste mortos sobrepostos em valas coletivas, ouçamos de Alexandre Scriabine o Poema Trágico op. 34 na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=K0k7wUwHAn8

Tece elogios rasgados aos médicos, enfermeiros e profissionais de saúde vestidos de branco, comparando-os àqueles que há dois anos atrás correram sérios riscos debelando o fogo da Catedral de Notre-Dame. Diz: “O heroísmo não mudou de definição: sacrifício de si mesmo. A nação se conscientiza de que dispõe desses dedicados servidores, que aceitam salvar ou morrer”.

Frente à reconciliação interior ou não, Tesson se posiciona: “Que faremos  após essa prova? Como sou ingênuo, acredito que os passageiros do trem cyber-mercantil chegarão a um aggiornamento.  As civilizações estabeleceram-se sobre alguns princípios: separação, reclusão, distinção, singularização, enraizamento. Confinamento, pois. Decênios foram suficientes para varrer esses conceitos em nome de uma ideologia: o globalismo igualitário preparatório à grande liquidação. A propagação massiva do vírus não é um acidente. É uma consequência”.

Tesson considera que a mundialização inevitável “não é irreversível e que a nostalgia pode propor novas direções!”. Finaliza: “ Diante da pretensa inevitabilidade das coisas, o vírus do fatalismo possui seu álcool-gel: a vontade. ‘Caminhemos’ é finalmente um maravilhoso slogan, uma vez ultrapassada essa fase”.

Verifica-se que as preocupações de Sylvain Tesson aproximam-se dos atos da grande maioria das populações atingidas pelo COVID-19. O leitor deve lembrar-se da cantoria solidária de italianos da Lombardia, epicentro do vírus na Itália, que saíam às varandas para cantar, inclusive o seu Hino Nacional. Faz lembrar tantas narrativas existentes em livros, relatos históricos, romances e poesias, nas quais grupos que seriam exterminados cantavam hinos religiosos ou pátrios. Heroísmo pré-morte certa, instantes a anteceder a tragédia.

Quanto às leituras ou atividades culturais outras, como as que menciono em termos individuais no blog precedente, dependem da formação. Para famílias onde impera harmonia, mesmo que não haja essa vocação para a leitura, assistimos pelos noticiários a tantas sugestões de atividades criativas,  inexistentes antes da pandemia, mas que unem o núcleo familiar. Sob outra égide, acentuou-se o número de separações ou, no limite máximo das incompreensões, a cifra relativa ao feminicídio. O convívio permanente entre paredes, que pode ser enfadonho para tantos, tem levado à fatalidade.

Em termos de Brasil, desassistido pela enorme classe política, o que não dizer do empobrecimento educacional, a levar moradores das favelas, das comunidades, daqueles sobre palafitas, a viverem aglomerados, basicamente sem possibilidades de reflexão mínima quanto ao mal que os atinge?

Tem carradas de razão Sylvain Tesson ao dizer que “Uma disparidade imediata se revela. Alguns têm vida interior, outros não”. Nossa classe política tem interesse em solucionar ao menos problemas práticos elementares para minimizar o desalento, a desesperança e a desassistência aos desfavorecidos? Se atiram migalhas, são apenas migalhas. Saberia a grande maioria dos integrantes dos três Poderes o que significa vida interior?

Clique para ouvir o Coral Jesus Alegria dos Homens de J.S.Bach na transcrição de Dame Myra Hess. Piano: J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=flrkpW5L4KQ

Comments on an interview given by the French writer and adventurer Sylvain Tesson and published by “Le Figaro” of last March 19. Tesson talks about his quarantine days in Paris in times of Covid-19, an experience he turns into a chance to muse over the meaning of social exclusion in the outbreak of the virus across the world, the impact of digital technologies in our lives, the world once the virus has been controlled.  As usual, Tesson’s acute intelligence and the originality of his ideas make this interview well worth reading.