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Entrevista de raro interesse

A mundialização devia estar feliz.
Ela é uma dama das camélias: infectada.

O vírus é a flor do mal
crescendo ao contato do mundo interior e exterior.

Sylvain Tesson
(Entrevista: “Que ferons-nous de cette épreuve?”)

Meu dileto amigo, compositor François Servenière, enviou-me recente entrevista do aventureiro e escritor Sylvain Tesson a tecer reflexões sobre o confinamento devido ao COVID-19. A entrevista, concedida a Vincent Tremolet de Villers e publicada inicialmente no Le Figaro aos 19 de Março último, teve outra edição pela Gallimard em Tracts de crise, nº 23.

Uma das qualidades de Sylvain Tesson em suas entrevistas é a agilidade de raciocínio, quase sempre coerente e original. A larga experiência que adquiriu em suas andanças pelo mundo, que resultaria em uma bibliografia considerável (vide no menu: Livros,   Resenhas e Comentários – lista), faz com que, da inquietação pelo confinamento, Tesson passe a refletir sobre o significado dessa exclusão social, assim como a respeito do humano diante do COVID-19. Frente às seis perguntas do entrevistador, o escritor se posiciona com clareza.

Primeiramente entende que a ultramundialização terá avaliação efêmera no futuro. Acredita que, desde a queda do muro de Berlin, o materialismo e a banalização das relações humanas via internet fazem com que “o digital complete a uniformização”.  A partir dessas premissas, Tesson caracteriza aspecto fulcral: graças às reações rápidas impostas pela mundialização, fomos levados ao “fique confinado”, algo impensável anteriormente. Tem dúvidas sobre o pós-COVID-19, passado o que ele denomina pangonligate, referente à possível transmissão por pangolins ou morcegos.

Tesson comenta a posição do catastrofista, que faz parte dessa atração do homem pela morbidez. “Para certos profetas da catástrofe, não há necessidade de inventar o futuro, nem de suavizar a análise, tampouco de se lançar inteiramente na conservação daquilo que se mantém. O infeliz fundamentalista anuncia o inferno de Bosch, mas estoca patês. Muitos esfregam as mãos e dizem: ‘Nós bem que avisamos!’ Não perceberam que o pontapé inicial partiu de um pequeno animal parecido com um panzer vestido por Paco Rabane”. Instado pelo entrevistador sobre quais conselhos poderia dar de seu confinamento, Tesson acrescenta: “Você percebeu a nossa chance? Durante quinze dias o Estado assegura a mordomia de nosso confinamento forçado. Há um ano, parte do país queria derrubar o Estado. De repente, tem-se consciência: é mais agradável sentir uma crise na França do que na Curlândia Oriental. O Estado se revela como Providência que não exige devoção. Pode-se cuspir sobre ele, mas ele virá socorrê-lo”.

Tesson observa dado relevante que faz toda a diferença nesse confinamento forçado, a vida interior que parte da humanidade desconhece: “Tenho compaixão pelos que passarão dias longe de um jardim”. A pensar possivelmente no letrado com acesso à cultura como ideal, considera essa compaixão estendida “àqueles que não amam a leitura e que ‘não têm a menor noção que um Rembrandt, um Beethoven, um Dante ou um Napoleão existiram’, como escreve Stefan Zweig no início do Jogador de xadrez”.

Crítico mordaz de aspectos da tecnologia voltados à imagem nas telas, seja ela televisiva ou através das engenhocas que invadiram o planeta, mormente neste século, afirma: “Abram os livros. Diante de uma tela vocês estarão duas vezes confinados!” Insiste em outro segmento da entrevista: “Tomamos consciência de evidências esquecidas. Citemo-las: Ficar em casa não significa detestar seu vizinho. Os muros são membranas de proteção e não blindagens hostis. Eles são perfurados por portas e podemos escolher abri-las ou fechá-las. Ler não significa se aborrecer”.

Insiste nesse tema da nocividade da alienação motivada pela fixação do homem atual nesses avanços tecnológicos: “Nós, humanos do século XXI, seguimos bem desfavorecidos nesse desafio que nos é proposto. A nova ordem digital-consumista habituou-nos a temer o vazio. A revolução digital é um fenômeno hidráulico. Internet e vaso sanitário, preenchem o espaço vacante em alta velocidade. O tubo tem sede. É necessário fluir! De repente, o confinamento impõe uma experiência do vazio. Não se deve, contudo, agir como preconiza a conexão integral: preencher tudo com qualquer coisa.” Em “Une três légère oscillation” (vide blog, 28/03/2020), o autor, sob outro olhar, comenta essa realidade. Necessário verificar que não se trata de elitismo quando Tesson sugere a leitura, assim como o acesso à cultura artística, musical, filosófica acima mencionada, através da citação de expoentes nessas áreas. O vazio viria da desinformação, da impossibilidade de o homem moderno se ater a aspectos da cultura humanística pelo massacre diário, através do baixíssimo nível de parte substancial das programações televisivas, dos sites portais e dos aplicativos das engenhocas digitais mais evidentes, que desconsideram quase completamente a cultura dita erudita, enaltecendo o lixo da imagem, dos costumes, da linguagem, atentados que desvirtuam as mentes.

Nesse período com desfecho imprevisível, em que se assiste mortos sobrepostos em valas coletivas, ouçamos de Alexandre Scriabine o Poema Trágico op. 34 na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=K0k7wUwHAn8

Tece elogios rasgados aos médicos, enfermeiros e profissionais de saúde vestidos de branco, comparando-os àqueles que há dois anos atrás correram sérios riscos debelando o fogo da Catedral de Notre-Dame. Diz: “O heroísmo não mudou de definição: sacrifício de si mesmo. A nação se conscientiza de que dispõe desses dedicados servidores, que aceitam salvar ou morrer”.

Frente à reconciliação interior ou não, Tesson se posiciona: “Que faremos  após essa prova? Como sou ingênuo, acredito que os passageiros do trem cyber-mercantil chegarão a um aggiornamento.  As civilizações estabeleceram-se sobre alguns princípios: separação, reclusão, distinção, singularização, enraizamento. Confinamento, pois. Decênios foram suficientes para varrer esses conceitos em nome de uma ideologia: o globalismo igualitário preparatório à grande liquidação. A propagação massiva do vírus não é um acidente. É uma consequência”.

Tesson considera que a mundialização inevitável “não é irreversível e que a nostalgia pode propor novas direções!”. Finaliza: “ Diante da pretensa inevitabilidade das coisas, o vírus do fatalismo possui seu álcool-gel: a vontade. ‘Caminhemos’ é finalmente um maravilhoso slogan, uma vez ultrapassada essa fase”.

Verifica-se que as preocupações de Sylvain Tesson aproximam-se dos atos da grande maioria das populações atingidas pelo COVID-19. O leitor deve lembrar-se da cantoria solidária de italianos da Lombardia, epicentro do vírus na Itália, que saíam às varandas para cantar, inclusive o seu Hino Nacional. Faz lembrar tantas narrativas existentes em livros, relatos históricos, romances e poesias, nas quais grupos que seriam exterminados cantavam hinos religiosos ou pátrios. Heroísmo pré-morte certa, instantes a anteceder a tragédia.

Quanto às leituras ou atividades culturais outras, como as que menciono em termos individuais no blog precedente, dependem da formação. Para famílias onde impera harmonia, mesmo que não haja essa vocação para a leitura, assistimos pelos noticiários a tantas sugestões de atividades criativas,  inexistentes antes da pandemia, mas que unem o núcleo familiar. Sob outra égide, acentuou-se o número de separações ou, no limite máximo das incompreensões, a cifra relativa ao feminicídio. O convívio permanente entre paredes, que pode ser enfadonho para tantos, tem levado à fatalidade.

Em termos de Brasil, desassistido pela enorme classe política, o que não dizer do empobrecimento educacional, a levar moradores das favelas, das comunidades, daqueles sobre palafitas, a viverem aglomerados, basicamente sem possibilidades de reflexão mínima quanto ao mal que os atinge?

Tem carradas de razão Sylvain Tesson ao dizer que “Uma disparidade imediata se revela. Alguns têm vida interior, outros não”. Nossa classe política tem interesse em solucionar ao menos problemas práticos elementares para minimizar o desalento, a desesperança e a desassistência aos desfavorecidos? Se atiram migalhas, são apenas migalhas. Saberia a grande maioria dos integrantes dos três Poderes o que significa vida interior?

Clique para ouvir o Coral Jesus Alegria dos Homens de J.S.Bach na transcrição de Dame Myra Hess. Piano: J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=flrkpW5L4KQ

Comments on an interview given by the French writer and adventurer Sylvain Tesson and published by “Le Figaro” of last March 19. Tesson talks about his quarantine days in Paris in times of Covid-19, an experience he turns into a chance to muse over the meaning of social exclusion in the outbreak of the virus across the world, the impact of digital technologies in our lives, the world once the virus has been controlled.  As usual, Tesson’s acute intelligence and the originality of his ideas make this interview well worth reading.

 

 

Saber entender tempos trágicos

Trancar o nômade entre paredes
é o mesmo que enlatar o vento.
Sylvain Tesson

Sabia-se que o COVID-19 chegaria em nossas plagas. Era questão de dias ou semanas. Geograficamente o vírus fez uma grande curva, surgiu na China, atravessou a Ásia, chegou ao Oriente Médio, à Rússia, está a devastar parte da Europa, a seguir penetrou na África, atingiu a América do Norte e desliza pela América Latina sem perder a eficácia. Não é um tsunami que, após a passagem devastadora, traz calmaria ao oceano. Esse vírus tem proporções de pragas bíblicas. O COVID-19 invade, não esmorece, eventualmente toma outras configurações, sem perder seus efeitos que, infelizmente, têm contabilizado incontáveis vítimas fatais pelo planeta.

Nossos políticos, completamente despreparados, estão em permanentes disputas mesquinhas, enquanto o vírus avança. O âncora de “São Paulo Gente” da Rádio Bandeirantes, José Paulo de Andrade, define bem a classe que “conduz” este país: “Falta grandeza ao nosso homem público”.
O COVID-19 está entre nós. Timidamente penetrou em nossas terras sem insumos necessários para combater sua ferocidade maligna. Estamos apenas no início dessa pandemia que deverá ser, segundo alguns especialistas mais enfáticos, apocalíptica a partir deste outono que, paradoxalmente, prepara-se para exibir em São Paulo – epicentro da pandemia no Brasil – os manacás da serra inteiramente floridos. Bálsamo? Talvez.

O leitor Arlindo, de Belo Horizonte, escreveu-me a sinalar: “Como um pianista vive durante o confinamento?” Fiquei a pensar e respondo através deste post.

Primeiramente, menciono dois outros, dedicados ao promissor compositor português António Fragoso, que, a estudar em Lisboa, parte para Pocariça, hoje a fazer parte da União das Freguesias de Cantanhede e Pocariça, com sede em Cantanhede. Num espaço de poucos dias, o jovem António, seus três irmãos e duas outras pessoas que habitavam sua morada morreriam vitimados pela pneumônica ou gripe espanhola. Causou-me forte impressão a leitura dos relatos da tragédia (vide blogs: “António Fragoso 1897-1918”, 01/12/2018 e “António Fragoso diante da História”, 08/12/2018). Em 1918 sucumbiria em Ribeirão Preto, vítima da pneumônica, uma de minhas tias, Jupira, a caçula de meus avós maternos, aos 10 anos. Narrativas de minha saudosa mãe não deixavam de nos assustar quando meninos. Cifras contrastantes elevam de 50 a 100 milhões as vítimas de uma das estirpes do vírus Influenza A, do subtipo H1N1, pois estatísticas asiáticas não teriam sido contabilizadas. Os avanços da medicina fizeram com que jamais pensássemos na magnitude de um outro vírus de estirpe derivante daquela de 1918.

Minha mulher Regina e eu acatamos as recomendações da OMS. Recolhemo-nos desde meados de Março e saímos uma vez apenas para a vacinação contra a gripe influenza. Nossas queridas filhas nos trazem o necessário e aguardaremos intramuros o desfecho dessa calamidade.

Nessa rotina diária a lembrar, mutatis mutandis, o filme “O dia da marmota”, o calendário deixou de existir, apenas a ser lembrado nos momentos de pagamentos por aplicativo. Os dias da semana perderam significado e refletimos sobre privilégio e tragédia: o primeiro ao sabermos estar “protegidos”; em seguida, conscientes da avalanche de mortos quando de fato as periferias das cidades forem atingidas. Saúde e Saneamento Básico nunca foram preocupação essencial para figuras das várias esferas do governo. Obras abaixo do solo não rendem votos. Contudo, as dezenas de milhares de cadáveres que estarão proximamente nesse subsolo, ignotos pelos políticos, serão o libelo dos sepultos pelo descaso.

Desde o primeiro dia da quarentena sabíamos que a trajetória do COVID-19 promulgaria sentenças, tantas delas de morte. Nada a fazer, a não ser seguirmos pragmáticos nessa reclusão voluntária. Regina e eu dividimos tarefas, pois permanecemos isolados em nossa morada.

Ao acordar, fico sentado incontáveis minutos. Voluntariado, como gostaria de praticá-lo nesse período, mas a faixa etária impede-me de participar. Durante as horas penso nesses desfavorecidos fadados à morte sem assistência. Chegaremos ao caos. Lição aprendida? Passada a crise avassaladora, nossos homens públicos, sejam eles da direita ou da esquerda, continuarão a desprezar os mais pobres. A hecatombe seria muitíssimo maior, não tivéssemos o SUS, tão veementemente criticado e a ser desidratado, perdendo verbas preciosas a cada gestão, mas que, apesar de sucateado, ainda tem uma eficiência considerável para os menos favorecidos sem um plano de saúde privado.

Quanto ao nosso isolamento, a prática pianística prossegue com interesse invulgar. Compromissos para apresentações foram adiados sine die, mas estou a ter prazer muito grande ao revisitar obras que não frequentava há décadas. Causa-me vivo interesse o observar partituras com tantas anotações que inseri. Algumas dessas observações hoje seriam outras, a mostrar que o velho Camões tinha razão ao escrever que “todo mundo é composto de mudanças”. Essas partituras outrora estudadas comportam repertório bem substancioso. Sob outra égide, a curiosidade nesses tempos estáticos faz-me voltar a partituras que compromissos ao longo do tempo, impediram-me de estudar.

Clique para ouvir de J.S.Bach-Kempff, Awake the Voice is Sounding na interpretação de J.E.M., a pedido da dileta amiga e leitora Jenny Aisenberg:

https://www.youtube.com/watch?v=0nQUzeqdu4s

De sua parte, Regina estuda seu repertório com agenda já para Setembro, se o ciclo do COVID-19 passar. Sob outro aspecto, revela-se inventiva na arte culinária.

O COVID-19 acentuou leituras. Há mais tempo para esse fundamental mister. Tenho manancial para um bom período a passar retraído. As palavras de meu bom amigo, ilustre arquiteto português António Menéres – “Sempre que posso olho os meus livros, quer as lombadas simplesmente cartonadas, a sua cor, os títulos das obras; mesmo sem os abrir adivinho o seu conteúdo e, quando os folheio, reconheço as leituras anteriores, muitas das quais estão sublinhadas, justamente para me facilitar outros e novos convívios” – precisam com nitidez o momento que estamos a viver (vide resenha do livro de Menéres no blog “Crónicas contra o esquecimento”, 29/07/2007).

Há décadas não mais leio os dois principais jornais de São Paulo com nítidas tendências ideológicas opostas, tornando enfadonho frequentá-los. Jornais televisivos da Band News ou da agora CNN e documentários espalhados nos inúmeros canais a cabo são vistos por Regina e por mim durante as refeições. A minha visão do mundo é atualizada através da leitura diária de dois jornais online franceses e um inglês.

Comunico-me com filhas e netas quase diariamente e com amigos fidelíssimos. Essas ligações são de imensa valia, substituem o presencial sem perder a intensidade.

Por fim, não mais treino nas ruas de minha cidade-bairro, Brooklin-Campo Belo, para as corridas oficiais, hoje suspensas. Nas fronteiras dos 82 anos, dá para treinar nos espaços de nossa morada. Apesar das distâncias exíguas, duas ou três vezes por semana treino durante 60 minutos, 150 voltas no térreo e 50 no terraço. Faz-bem bem e ajuda-me a manter físico e alma.

Creio ter respondido ao Arlindo. Acrescentaria que meu querido irmão, o notável jurista Ives Gandra Martins, após cirurgia de um divertículo de Zenker – o mesmo procedimento a que fui submetido em 2018 – teve complicações que o levaram à isquemia, à septicemia, à disfunção digestiva e, para agravar, à contaminação pelo COVID-19. Ficou internado durante 38 dias. Tememos por seu desenlace. Aos 85 anos, milagrosamente safou-se dos males e recupera-se em seu apartamento. Ângela, sua filha, doutora em Filosofia do Direito, contraiu o vírus, contaminada durante visitas ao pai, e recupera-se lentamente após deixar o hospital.

A tudo nos adaptamos. O COVID-19 um dia deixará o Brasil. O que nos espera a seguir mal podemos antever.

In this post I give an account of my routine in quarantine days. Following the advice of the World Health Organization, my wife and I adopted a stay-at-home procedure intended to protect ourselves and, indirectly, lower the number of infections by Covid-19 by promoting social distance. Totally isolated at home since 15 March, our daughters take turns in bringing us what we need. I divide household chores with my wife, study piano, read a lot, run one hour without a break in my backyard twice a week, talk by phone with family and friends and reflect about the tragedy that has befallen the world. We adjust to everything. COVID-19 will one day leave Brazil. What awaits us next can hardly be predicted.

 


Decadência sem fim

Que falta nesta cidade?… Verdade.
Que mais por sua desonra?… Honra.
Falta mais que se lhe ponha?… Vergonha.
Quem a pôs neste socrócio?… Negócio.
Quem causa tal perdição?… Ambição.
E no meio desta loucura?… Usura.
Gregório de Matos (1636-1696)

Ter acompanhado ao longo dos anos a ação de nossos Correios habilita-me a dedicar o presente blog à Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – criada em 1969 – e assinalar transformações. O histórico de meu relacionamento com os serviços postais do país remonta ao ano 1958. O declínio acentuado de nossos Correios a partir do início do século é sensível e soluções urgentes têm de ser tomadas.

Estou a me lembrar de meus anos como estudante em Paris, de 1958 a 1962, período em que a tecnologia engatinhava e as comunicações eram realizadas com lentidão. Semanalmente enviava carta a meus pais, deles recebendo resposta quinze dias após. Poderia dizer que o fluxo de missivas era quase imutável. Tal fato não acontecia com os telefonemas. Durante o período parisiense, poucas vezes conversei com meus pais. Tínhamos de agendar horários para os dois ou três dias subsequentes e mais de uma vez a telefonista de plantão, na hora precisa marcada, ligava-me para dizer que a comunicação só poderia ser realizada no dia seguinte por problemas com os cabos. Jamais entendi aquela “tecnologia”.

Bem posteriormente, de 1981 até 1991, mantive correspondência regular com a ilustre musicóloga portuguesa Júlia d’Almendra (1904-1992). Quando em Lisboa para recitais de piano pelo país ficava hospedado em sua morada. Nossa vasta correspondência girava preferencialmente sobre Claude Debussy. Júlia d’Almendra era autora de livro referencial sobre o compositor, “Les modes grégoriens dans l’oeuvre de Claude Debussy” (Paris, G.Enault, 1948). Nossa correspondência “completa” encontra-se presentemente no Centro Ward de Lisboa, dirigido por sua discípula e também defensora infatigável do Canto Gregoriano em Portugal, Idalete Giga. De Júlia d’Almendra recebi cerca de quarenta e tantas longas cartas e a notável gregorianista acolheria aquelas que lhe enviava. Recebi também inúmeros cartões postais. A menção neste blog é para afirmar que essa troca de missivas seguia um curso normal. Mutuamente recebíamos as cartas escritas a mão no prazo certo. A correspondência de Júlia d’Almendra foi-me de imensa importância. Mantenho pela saudosa amiga perene gratidão. Sobre a nossa atividade epistolar e a evidenciar a regularidade dos Correios daqui e d’além mar, Júlia D’ Almendra escreveu-me com certo humor: “Eu pergunto: porque é que as nossas cartas não se perdem? Se recebem sempre. (…) Sempre ouvi dizer que só se perdem as cartas que nos convêm…Naturalmente, se não são mandadas por via aérea e esperam ainda os barcos do século passado, é natural que nunca mais cheguem” (carta de 06/12/1983).

Passaram-se os anos. Creio que a partir do início do século XXI, num processo que se acentuaria a seguir, a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) se foi  deteriorando e elevando os preços de seus serviços ao consumidor. Em blog “A inacreditável realidade – Todos assistem e nada acontece”, datado de 31/03/2012, escrevia: “Recebi da França um pacote com revistas e livro sobre música, livre et brochures. Um amigo me enviou a encomenda no dia 13 de Março às 12h. A entrega deu-se no dia 19, ou seja, no quinto dia útil. O preço pago pelo remetente para essa entrega especial – E$ 5,49 – corresponde aproximadamente a R$ 13,20. A primeira impressão foi de choque, pois estou habituado a enviar livros e revistas para amigos do Exterior e sempre considerei elevadíssimas as quantias pagas. Mesmo um livro enviado para uma cidade próxima como Rio de Janeiro e com peso bem inferior custou-me praticamente o dobro para o mesmo prazo de entrega. Atiçado pela curiosidade, levei a encomenda até a agência dos Correios mais próxima, virei o envelope ao contrário, livre de qualquer endereço ou carimbo, e pedi para a atendente verificar o preço para entrega rápida na França. Disse-lhe o nome da cidade. A simpática funcionária comunicou-me que, se quisesse entrega em 2 o u 3 dias , custaria aproximadamente R$ 100,00; para um prazo maior, de 6 a 13 dias, num envio denominado ‘prioritário com registro’, R$ 65,35 até 1.200 gramas. Meu envelope pesava exatamente 1.180 gramas, pois mantido como recebi, com livro e revistas”.

O processo de deterioração dos serviços e dos preços abusivos apenas continuou ascendente. Nesses últimos anos, livros enviados da França ou de Portugal e CDs belgas chegaram às minhas mãos mui tardiamente. Outros devem ter se perdido no vasto Atlântico. Ultimamente estava para ler e resenhar quatro livros da musicóloga e escritora francesa, Catherine Lechner-Reydellet. Aguardei-os, após a missiva da autora anunciando a remessa. Chegaram seis meses após o envio. O ilustre musicólogo português José Maria Pedrosa Cardoso enviou-me em Outubro seu último livro, “O Grande Te Deum setecentista português – The eighteenth-Century portuguese Te Deum” (Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal/CESEM, 2019). Até este início de Abril nada recebi.

Também no final de 2019, o excelente pianista e meu colega na classe de Marguerite Long em Paris, Désiré N’Kaoua, enviou-me sua última gravação, a Sonata op.106, Hammerklavier de Beethoven. Qual não foi o meu espanto ao receber, dois meses após, a imagem do envelope com todos os meus dados exatos e com a frase de Michèlle, sua esposa: “C’est avec une grande tristesse que nous avons vu revenir le CD Beethoven (que Désiré vous avait envoyé) avec la mention ‘adresse inconnue’. Vous trouverez ci-joint la photographie de l’enveloppe avec toutes les mentions”. Endereço claríssimo, mas desconhecido ou negligenciado pelos Correios!!!

http://d.nkaoua.free.fr/bioFR.html

Menção de elogio faço aos carteiros. As décadas acentuaram meu respeito pelo trabalho árduo por eles enfrentado diariamente. Dedicados e cordiais.

Aparelhado por governos anteriores, creio que, após a calamidade do COVID-19, teríamos de encontrar solução definitiva para a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. Para nós, brasileiros, é vergonhoso, num diálogo com outros povos, ter de apresentar essa chaga em processo de franca deterioração. Até quando?

A comparison between the state-owned Brazilian postal service in the second half of the last century, when it was pretty reliable and relatively fast, and today, when it slid downhill: extremely high postage costs, slow mail delivery — both for outgoing and incoming mails —, serious number of mail lost in transit. Confidence is completely gone. How much longer will this last?