Navegando Posts em Cotidiano

Quando referência ao passado se faz necessária

Os idosos gostam de dar bons preceitos,
para consolo de não mais estarem em condições de dar maus exemplos.
La Rochefoucauld (1613-1680)
(Les Maximes)

Foram muitas as mensagens. Todas saudando a sequência de blogs que se prolonga, sobremaneira durante esta pandemia, nos quais grandes intérpretes de antanho são justamente reverenciados. As colocações dos leitores têm de ser devidamente entendidas. Friso sempre sobre o acesso ao YouTube basicamente diminuto quando das interpretações dos grandes mestres do passado. Meus blogs visam prioritariamente salientar segmentos da cultura erudita, clássica e humanista, que presentemente respira ofegante frente a essa civilização do espetáculo a acentuar, sempre de maneira ascendente, vertentes culturais que sem serem populares numa acepção de raiz,  associam-se às correntes  que, ou sopram acima do equador ou aqui nascem, amplamente amparadas pela grande mídia. Admiro profundamente as manifestações culturais genuínas do povo, autênticas, sem máculas, pois tem-se fonte permanente de inspiração a tantos compositores, artistas plásticos, poetas e escritores que perduraram na história.

Assiste-se nessas últimas décadas a um conjunto de formas impactantes nas artes e na música mais acentuadamente.  O surgimento meteórico de um personagem vem acompanhado profusamente por associação de acessórios como efeitos de luzes, imagens, gestos improvisados, ritmos e tentativas de cantos, vestuário “criativo”, não apenas a descaracterizar ainda mais uma espécie de “mensagem musical”, mas possivelmente com outras finalidades. O eleito ídolo pela mídia e por legião de adeptos é seguido em seus cantos e imitado em seus gestuais. Consequência natural.

Chamou-me a atenção entrevista recente de uma cantora pop a uma colunista de veículo de grande circulação em São Paulo. Uma só frase colocada em destaque evidencia a compreensão distinta de valores e que certamente será assimilada como verdade pela legião seguidora da entrevistada, presente em várias áreas. Dizia ela que “o elitismo cultural é cafona”.

A banalização que tende a enroupar a decadência dos costumes e a acentuar a mutação constante do que é aceito no momento para padrões sempre mais ousados, tem tido por parte da mídia a guarida ampla. Fiquei a pensar no “conteúdo” da longa entrevista que revela pensamento a enfatizar distorção a causar impacto.

A palavra cafona a rotular a elite cultural tem como sinônimos, entre outros termos, brega e chinfrim e poderia ser interpretada ainda mais pejorativamente na entrevista, dependendo do próprio conceito de elite assim expresso no Caldas Aulete: “minoria mais apta, ou mais forte, dominante no grupo. (Usado no pl. tem sentido mais genérico e refere-se às minorias culturais políticas ou econômicas em cujas mãos está o governo do Estado)”. Parcela pequena da elite cultural professa o humanismo, as artes, a música erudita e a literatura. Mario Vargas Llosa define a atualidade como “civilização do espetáculo” e aponta para o declínio da cultura erudita.  O ideal seria que a cultura humanística permanecesse perene, divulgada e assimilada pelas várias camadas sociais e fosse preocupação dos detentores de decisões.

Parte considerável da grande mídia ao divulgar e debater temas como política, segurança, saúde, economia, esportes, mergulha em assuntos nada edificantes sobre a vida pessoal dos caracterizados “famosos”, inviabilizando por completo o crescimento cultural, moral e ético da população. Diminui a possibilidade de reflexão pelo excesso de banalidades e os textos sofríveis estão eivados de incorreções que no todo teriam tudo a ver com o valor do que é divulgado.

O desaparecimento da temática cultural, erudita ou clássica das páginas dos portais online empobrece o já minguado conhecimento existente dos valores do passado e do presente. Sem acesso à memória cultural artística pela falta de divulgação, as novas gerações acabam por desconhecer as obras referenciais nos campos das artes e da literatura. Esse desconectar torna quase sempre irreversível a recuperação do saber humanístico e artístico. Parte-se do imediato efêmero, logo transmutado em algo ainda mais superficial. Mesmo que determinadas manifestações e aparições congreguem milhões de adeptos nos múltiplos processos de ampla divulgação, certamente a existência do efêmero se extingue espontaneamente, pois substituído de imediato por outras manifestações à maneira de um tsunami avassalador que passa e destrói, no caso, sem intervalo de tempo.

Ficaria uma pergunta sobre a capacidade de uns poucos redatores diaristas voltados à cultura humanística proporem outras pautas que não a dessa “cultura” que se esvai com tanta rapidez. Teriam força diante dos seus superiores mediáticos, uma das categorias de elite, tantos deles sem a básica cultural humanística? É toda uma engrenagem que envolve poder e lucro. Os “valores” que estão diariamente sendo ventilados estão a despreparar as gerações futuras. Elos foram partidos e a junção dessa corrente antes coesa não é objetivo dos que estão envolvidos, sejam eles dirigentes ou redatores. É todo um conjunto de informações degradantes que homeopaticamente têm influência sobre a conduta humana, pois conhecimentos sedimentados e edificantes estão sendo destruídos. Pareceria que se está a viver na plenitude conceito antigo de que batalhas podem ser ganhas, mas que a guerra estaria definitivamente perdida. Parafraseando o poeta Luiz Guimarães Junior (1844-1898): “Resistir quem há-de?” Uns poucos certamente.

A certain statement, during a widely publicized interview, motivated reflections on the absolute reversal of values and consequent disdain for elitist, erudite or classical culture in the present civilization of spectacle, which increasingly aims towards the ephemeral and the seduction of the masses.

 

O futebolista absoluto

As pessoas tentam encontrar um novo Pelé, mas isso não pode ser.
Como na música, em que só existe um Frank Sinatra e um Beethoven,
ou nas artes, um único Michelangelo, no futebol só há um Pelé.

Se eu pudesse me chamaria Edson Arantes do Nascimento Bola.
Seria a única maneira de agradecer o que ela fez por mim…
Pelé

Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, completou 80 anos no dia 23 de Outubro, sexta-feira. Já estava com meu blog programado para aquele dia e guardei para o presente sábado a homenagem ao maior atleta de todos os tempos.

Fui pouquíssimas vezes assistir a um jogo de futebol. Dessas presenças, ver in loco a atuação de Pelé representava o prazer maior, mesmo quando jogava contra a minha saudosa Portuguesa de Desportos que, mercê de gestões medíocres, desapareceria das competições relevantes.

Já àquela altura dos anos 1960, Pelé era festejado como o astro maior do futebol mundial. Estar presente e vê-lo jogar, possibilitava a compreensão da arte autêntica do esporte bretão. Não era apenas assistir ao ato final e primordial de uma partida, o gol, consequência que majoritariamente tinha na ação de Pelé a magia que leva ao maravilhamento.

Pelé, não apenas foi considerado a atleta do século pelos seus feitos futebolísticos, mas também o atleta maior da história se consideramos todos os esportes existentes. Suas marcas são imbatíveis, 1281 gols em 1363 jogos, tricampeão mundial (1958-1962 e 1970), bicampeão mundial interclubes. Ao marcar o milésimo gol (19/11/1969) houve comoção nacional. A transmissão impecável de meu dileto amigo Flávio Araújo fixaria aqueles momentos mágicos. A esses recordes alcançados temos ainda 92 hat-tricks, quando um jogador marca três gols numa mesma partida.

https://www.youtube.com/watch?v=tJnB7q-6vMU

Na juventude fui um apaixonado pelo futebol jogado no Brasil, mormente quando Pelé e seu companheiro Coutinho – futebolista com raro faro de gol -, sempre assistido pelos passes milimétricos do grande mestre, encantavam multidões. O passar das décadas revelaria a decadência progressiva do futebol praticado por times brasileiros e os melhores jogadores precocemente atravessam o Atlântico em busca de reconhecimento e ganhos maiores. Presentemente assisto a determinados bons jogos de campeonatos europeus, não mais vendo partidas de nossos campeonatos.

Se admirei Ademir da Guia, Maradona e hoje Cristiano Ronaldo e Messi, pela inteligência e qualidade no trato da bola, todos ficam a dever se comparados a Pelé. Se no atletismo tivemos Carl Lewis e suas proezas como maior atleta olímpico do século XX, surgiria Usain Bolt como o mais veloz do planeta e tudo indica que outros virão com novos recordes. Isso acontece nas provas de atletismo e de natação, assim como nos esportes coletivos como basquete e vôlei como exemplos. Especialistas concordam que os recordes de Pelé jamais serão batidos. Essa constatação sedimenta a quase absoluta unanimidade em torno de seu nome.

No final da década de 1990, o ilustre musicólogo Régis Duprat me convidou para uma visita ao estúdio de gravação de seu filho Ruriá. Aquiesci com prazer e lá encontrei Pelé a finalizar uma sua gravação, pois gostava de cantar acompanhado ao som de um violão. Foi realmente uma emoção muito grande estar frente a frente ao ídolo de sempre. Extremamente atencioso, ouviu pacientemente meus elogios ao seu incomensurável talento. As duas fotos revelam momentos desse encontro. Ofereci-lhe um CD e ele autografou vários folders com os nomes de três das minhas netas àquela altura, pois mais duas viriam.

Em entrevista que ouvi anos atrás, Pelé afirmava que há duas entidades distintas, Edson Arantes do Nascimento e Pelé. Falava como Edson, figura passível de críticas como todo ser humano, mas tinha absoluta consciência da genialidade do jogador Pelé, personagem que acalenta sempre com respeito e carinho.

Neste post rendo minhas homenagens ao insuperável Pelé que alegrou o planeta com sua arte futebolística. Grandes jogadores surgiram antes e depois dele, alguns demiurgos, mas todos, sem exceção, não atingiram a arte que Pelé desfilou pelo mundo.

On October 23rd, Pelé turned 80. He was the greatest player in the history of soccer and certainly the greatest athlete in history, because his records are impossible to be broken. I followed with admiration all his trajectory and, decades after ending his career, I had the privilege to meet him.

 

 


Desdobramentos da leitura frente à pandemia

El terror a la peste es, simplemente,
el miedo a la muerte que nos acompañará siempre
como una sombra.
Mario Vargas Llosa
(El País, Piedra de Toque, 14/03/2020)

Meses sob pressão motivada pela pandemia fazem com que a peste, esse tema recorrente ao longo da História, provoque interpretações as mais diversas. É natural que assim seja. Os séculos guardam na memória testemunhos que, ou pela escrita ou através da oralidade, são revisitados sempre que episódio marcante assim determine.

Constantemente menciono nos blogs diálogos profícuos com o amigo Marcelo, que encontrava aos sábados na feira-livre de minha cidade-bairro. Leitor assíduo dos posts hebdomadários, marcávamos um curto em um dos cafés das cercanias e discutíamos. O confinamento distanciou-me desse aprazível mercado aberto, espaço que sempre tive imenso prazer de frequentar. Já lá se vão mais de quatro meses de pleno isolamento.

Deu-se situação singular num desses dias. Marcelo toca a campainha, atendo-o com a máscara e ambos conversamos ao ar livre, sentados num banco interior e frente ao pequeno jardim de casa. Bem mais jovem, Marcelo transita protegido. Lera na manhã de sábado último o texto a comentar La Peste, de Albert Camus, e durante um bom tempo abordamos a temática e seus reflexos nesses tempos do Covid-19, pois não lera o livro e entendeu pertinente o tema.

Os blogs têm seguido uma dimensão que possibilite a leitura, se não integral numa primeira abordagem, completa após revisita. Busco escrever essencialidades sucintamente, mas entendo que, pelo alcance, outras fiquem prejudicadas. Os questionamentos de Marcelo serviram para comentá-los nesses Ecos sobre La Peste.

Suas indagações invariavelmente voltavam-se à nossa pandemia e, interpretando suas palavras, “o tema que o fez pensar numa exaustão do povo quanto ao noticiário”. Há sim semelhanças entre o conteúdo do livro e a nossa realidade. Camus estabelece em sua narrativa aspectos hodiernos frente ao flagelo que nos assola. Da revolta inicial em tempos da peste passa-se a uma acomodação, ao relaxamento e, tantas vezes, à depressão. Camus acompanha as transformações do concidadão. Anônimo, este adquire importância crucial, observado quase sempre nessa atmosfera de espanto. Na epígrafe do blog anterior já mencionara uma de suas frases: “A peste suprimira julgamentos de valor. Via-se que ninguém mais se preocupava pela qualidade das vestes ou dos alimentos que compra. Aceitava-se tudo em bloco”. Seria o que hoje definimos como efeito manada. “Não se estaria a aceitar o cansaço do povo quanto às cifras dadas com profusão e ênfase pela mídia?”. À pergunta de Marcelo diria que em La Peste esse posicionamento é claro. Hoje, à custa de informações diárias pelos veículos de comunicação, não sem antes manter o ouvinte ou telespectador em suspense, esse cidadão também se cansou, caso dele específico. Quase poderíamos não errar ao dizer que a mídia necessita desses números elevados, verdadeiro chamariz. Durante quanto tempo, exaustivamente, Mariana e Brumadinho não estiveram em pauta? O cansaço de que nos fala Camus advém do excesso de notícias que se repetem ad nauseam.

A conversa com Marcelo abordou reflexões do personagem Jean Tarrou diante de duas condenações à morte que o marcaram profundamente: a primeira, após julgamento a ter seu pai como juiz, sentenciando à pena capital um acusado e a segunda, presencialmente, ficando-lhe indelével a impressão da cena do fuzilamento de outro infeliz, quando enfatiza a ínfima distância entre o batalhão e o condenado. A construção de outro livro relevante de Camus, L’Étranger, é realizada, entre tantas implicações, na direção à guilhotina da figura central do livro, Meursault, este aparentemente indiferente frente à vida e à morte. Evidencia Camus um repúdio à pena máxima. Uma frase de Camus é decisiva: “No universo do revoltado, a morte exalta a injustiça. Ela é o supremo abuso”. Na cena final da peça teatral Caligula, a preceder o assassinato do imperador romano, Albert Camus insere em uma de suas últimas falas: “Quem ousará me condenar nesse mundo sem juiz onde ninguém é inocente!”. Em 1954 intervém a favor de sete tunisianos condenados à morte. Acrescentei que apenas em 1981 a pena de morte foi abolida em França. Estou a me lembrar de meus anos como estudante em Paris nas fronteiras das décadas de 1950-1960. Quase todas as noites tomava sopa e bebia uma taça de vinho tinto com o adorável casal de concierges do prédio onde eu morava. Mais de uma vez, Robert Orambourg, leitor diário de jornal popular, comentou episódios de execuções de condenados à guilhotina. Espantou-me o fato de que uma dessas execuções se dera poucas semanas após o julgamento de bárbaro crime. Jean Tarrou, após ter narrado ao personagem central, Dr. Rieux, o trauma que o acompanharia pela existência devido àquelas duas condenações à morte, ao sucumbir vítima da peste teria, talvez, encontrado a “santidade sem Deus”. Apesar de não acreditar em Deus, Camus não se considerava ateu. No caso de Meursault, no peristilo do cadafalso há a sua plena revolta ao receber a visita do Padre a falar que rezaria por ele.

Em nossa profícua conversa observei que, sob outra égide, a de Saint-Exupéry, Camus também apresenta, através de seus vários personagens, mensagens sobre essencialidades da condição do homem. Acrescentei que se, sob o aspecto humano, “há mais coisas a admirar do que a desprezar”; sob o lado dos periódicos flagelos nada a fazer, mas sim aguardá-los, pois vírus ou bactéria estariam sempre à espreita através dos tempos. Fui buscar o livro e traduzi para Marcelo o final contundente quanto às futuras e malfadadas pestes: “Escutando efetivamente os gritos eufóricos que vinham da cidade, Rieux se lembrou de que essa alegria estava sempre ameaçada. Sabia ele que se pode ler nos livros que o bacilo da peste não morre, tampouco jamais desaparece, mas que essa multidão alegre ignorava tal fato. O bacilo pode permanecer durante dezenas de anos dormindo nos móveis e nos lençóis, a esperar pacientemente nos quartos, nas caves, nas malas, nos lenços e na papelada. Talvez dia virá quando, por desgraça e para ensinar os homens, a peste despertará seus ratos e os enviará para morrer numa cidade feliz”.

Finalmente, Marcelo disse-me que lera nesses últimos dias, num site portal conhecido, que o Prêmio Nobel de Literatura (2010), Mario Vargas Llosa, escrevera que La Peste era um livro medíocre. Disse-lhe que tinha lido o artigo publicado em El País, periódico espanhol, em sua coluna Piedra de Toque. Discordo, data venia, da posição do ilustre Mario Vargas Llosa, escritor que muito admiro, a entender inoportuno e até deselegante segmento de seu artigo Regreso al Medioevo? (14/03/2020): “La peor novela de Albert Camus, La Peste, tiene un súbito renascimento y tanto en Francia como en España se hacen reediciones y esse libro mediocre se há convertido en un best seller”. Considere-se que a afirmação se destina a uma das obras essenciais de Albert Camus, Prêmio Nobel em 1957. Opiniões, opiniões…

Once again I write about Camus’ novel The Plague, with focus on the similarities between the book and the moment we now live: tiredness, sometimes almost indifference, in face of the sensationalist media coverage of the Covid-19 pandemic, the heroism of ordinary people doing extraordinary things, the awareness – as in the final paragraph of the book -  that plagues never die, they just lie dormant waiting to take us by surprise. And, opposing this pessimism, the faint note of optimism when the novel’s main character says  “there are more things to admire in men than to despise”. Camus, the man who said he didn’t believe in God but was not an atheist, had faith in humanity after all.