Navegando Posts em Impressões de Viagens

Bélgica e Portugal em Pauta

Não sou um optimista.
O que sou é determinado naquilo em que me apetece ser determinado,
e continuo convicto até entender que a convicção estava errada e tenho de mudar.
Mas isso não tem acontecido muito.
Agostinho da Silva

O evento a comemorar os vinte anos da Associação Lopes-Graça na Câmara Municipal de Moita foi marcado por muita emoção. Houve jantar a preceder breves intervenções de cinco membros escolhidos pela Associação. Fui um deles e enfatizei o vergonhoso desconhecimento que se tem no Brasil de Fernando Lopes-Graça, a meu ver, ao lado de Villa-Lobos, um dos nomes maiores da composição luso-brasileira em toda sua história. Sem primazia alguma. Dois coros se apresentaram, o Alius Vetus e o da Academia de Amadores de Música caríssimo a Lopes-Graça, e dirigido amorosamente por José Robert.

Em termos brasileiros, nossos músicos não frequentam a obra de Lopes-Graça e nem sequer a música de concerto portuguesa, com raríssimas exceções. Mesmo a popular, o fado, fica restrito basicamente ao culto que lhe professam descendentes lusos. E de pensar que esforço considerável tem sido realizado quanto às edições e gravações de Lopes-Graça em Portugal, sem que se sensibilizem consciências musicais no Brasil. Recentemente foram editadas as “Músicas Festivas” para piano, coletânea com as 23 peças gravadas recentemente pelo notável pianista português António Rosado. A Associação Lopes-Graça presenteou os participantes da mesa que se pronunciaram antes do concerto coral, com duas gigantescas caixas contendo as 267 Canções Regionais Portuguesas (coro a capella) reunidas em 24 cadernos!!! (Fermata, Associação Lopes-Graça). O revisor da obra, José Luís Borges Coelho, músico competente em várias áreas, escreve texto a dar a ideia geral da planificação do conjunto magnífico das Canções e cita depoimento de Lopes-Graça a justificar a recolha dos cantos e suas adaptações esmeradas e fiéis ao impulso original da manifestação vocal popular.

Em resumo, a tournée pela Bélgica e por cidades portuguesas atingiu objetivos almejados. Os longos dias a gravar na mágica capela de Sint-Hilarius em Mullem, sempre perdida na planura flamenga, o recital em Gent, assim como as masterclasses e recital em meu outro templo europeu, a Academia de Amadores de Música em Lisboa, a apresentação precedida de palestra na Canto Firme de Tomar ficaram registrados em minha memória.

Na tarde de 13 de Maio, o encontro com alunos e professores na AAM da capital portuguesa, a versar sobre a obra para piano de Henrique Oswald, quando falei e toquei inúmeras obras do mestre, ratificou em alunos e professores a ascendência francesa na escrita do autor de “Il Neige”.

Foram três semanas de intensa atividade musical na Bélgica e em Portugal. Após a sequência de eventos, os amigos diletos, musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso e Manuela, e mais a gregorianista Idalete Giga, levaram-nos a passeios que sempre trazem captações que o olhar  não assimilou anteriormente. O Convento de Mafra; Sintra e seus palácios, moradias e o Castelo dos Mouros; Queluz e seu palácio, que nos faz pensar sempre, miniaturizado, no palácio de Versalhes, foram visitados e os diálogos que travamos com tão cultos amigos ainda nos levam a acreditar que a preservação do belo é o eixo de equilíbrio de que necessitamos frente ao mundo atual.

Regina e eu ainda assistimos à missa na Igreja de Santo Antônio em Lisboa, junto à Sé. O coro, dirigido por Idalete Giga, transporta o fiel, fá-lo estabelecer um elo com o Criador. A absoluta segurança e a leveza com que Idalete conduz os cantos gregorianos fazem-me lembrar de sua mestra, a grande gregorianista Júlia d’Almendra, figura ímpar na cultura portuguesa, que nos deixou em 1992. Idalete é sua herdeira legítima, insofismável, e tem com coragem e competência mantido a chama desses cantos que, desde a Idade Média, elevam o ser humano, cristão ou não.

Algumas imagens recapitulam a digressão intensamente musical. Não seguem uma ordem cronológica. Outra longa digressão já está sendo agendada. Novos projetos. Oxalá vinguem. Assim contamos.

Apesar da intensidade houve espaço para a prova de rua em Ninove, entre Gent e Bruxelas, já mencionada em um dos posts anteriores. Frio de 5°, vento cortante e chuva. Tineke, esposa do excepcional engenheiro de som, Johan Kennivé e eu participamos. Alegria contagiante. Nossos tempos registrados foram compatíveis.

This post is a summary of the musical and “sports” activities taking place during my recent trip to Belgium and Portugal.

 


Chegado a Lisboa, esperavam-me dois dias intensos de master classes. Ouvi alunos entusiasmados pela arte do piano. Como sempre faço nessas oportunidades, interessa-me explanar as causas de tal obra, o contexto histórico e a necessidade imperiosa de o aluno abrir a mente “além” do limite do teclado. A interpretação inteligente é fruto de denodo, disciplina, concentração, análise e muito estudo. O intérprete deve abrir os horizontes. É só querer. A intuição e o sensível, em reconhecimento por esse preparo soberano, chegam à mente levados pelas musas. Tocar significa o acúmulo de toda uma dedicação. Os alunos atentos, de diversas faixas etárias, entenderam as mensagens, que se prolongaram por dois dias, das 14h30min às 19h!!!

Confessei tantas vezes ao leitor que dois templos têm para mim a aura do sagrado. Mantê-la é saber que a música continua a pulsar em minhas veias. A Capela de Sint-Hilarius, em Müllem, e a Academia de Amadores de Música, em Lisboa. Nesse templo dei meu primeiro recital na Europa, a convite do imenso compositor Lopes-Graça (1906-1994). Dia 14 de julho de 1959!!! Como não me lembrar da data e dos aproximados 15 recitais apresentados ao longo dos anos… Se na minha juventude subia a correr os 49 degraus que levam ao segundo andar, onde está a sede da AAM, hoje, nos meus 76, subo-os tranquila e amorosamente.

O recital de sábado à noite em Lisboa teve numeroso público e, entre ilustres ouvintes, Mário Vieira de Carvalho, Eurico Carrapatoso, José Maria Pedrosa Cardoso, Idalete Giga, António Ferreirinho, Alexandre Branco Weffort. Como ocorreu em São Paulo, em Gent e agora em Lisboa, foi incrível a aceitação dos Estudos de Eurico Carrapatoso e de François Servenière. Tinha-se a impressão de que pertenciam ao repertório sacralizado, tão grande a acolhida.

Sigo para Tomar, cidade envolta em mistérios. Segredos muitos já foram revelados, mas há, em torno do extraordinário Convento de Cristo, histórias e lendas que dimensionam o imaginário. Sob a égide musical, a cidade viu nascer o extraordinário compositor, músico absoluto e pensador notável, Fernando Lopes-Graça (1906-1994). Apresentei-me pela primeira vez em Tomar em 1982 e  anos subsequentes. A partir de 2003 retorno prazerosamente à cidade e apresento-me no Canto Firme, dirigido pelo professor e dileto amigo António Souza. Já foram muitos os recitais e palestras. Nunca faltou a música portuguesa, mormente Lopes-Graça.

O recital em Tomar foi algo mágico para o velho intérprete. Saber que todo aquele repertório apresentado foi criado por compositores extraordinários a partir da acolhida que deram ao projeto de Estudos Contemporâneos, nascido em 1985 e que se encerra neste ano!!!! Todas as obras novas acolhidas com o maior entusiasmo!!! Sentir que não há por que não adentrar no universo desconhecido. Se a obra é de qualidade e a transmissão amorosa, como não aceitá-la? E duas obras rigorosamente herméticas, os Estudos de Gheorghi Arnaoudov e de Jorge Peixinho, tiveram a mesma acolhida de outras que vão direto aos sentimentos, ao coração, mais precisamente. Precedido de conferência horas antes, o público entendeu a extensão do projeto e compreendeu que o repertório sacralizado ─- importantíssimo, diga-se ─ não é o único.

Em Lisboa um dia após, na Academia de Amadores de Música, dei palestra-recital em torno da obra para piano de nosso grande compositor romântico Henrique Oswald. Provoquei alunos professores, que entenderam, nas obras para piano que apresentei ─- gravara-as dias antes na Bélgica ─, a filiação francesa dessas magníficas criações, algumas inéditas.

Na próxima semana escreverei sobre homenagem que será prestada a Fernando Lopes-Graça. Participarei com pronunciamento sobre o contributo extraordinário do grande mestre tomarense.

 

 

Ainda ecoa em meus ouvidos o despertar dos pássaros na planura flamenga. Encerrávamos as gravações, entregando os sons que ecoaram durante três mágicas madrugadas àqueles pássaros que pertencem à longa dinastia atemporal que ainda hoje nos faz ter esperanças.

Um fabuloso piano Fazioli esteve à disposição da transmissão de minhas mensagens. Tornamo-nos cúmplices sob a égide do sagrado. Müllem e sua Capela Sint Hilarius! Comunhão absoluta com o intérprete de passagem. Graças à competência sem fronteiras desse imenso mestre dos sons, Johan Kennivé, uma paz interior corrobora a transmissão. Ele e eu acreditamos nessa transcendência Musical.

É em Müllem que tudo acontece.

(clique no vídeo abaixo para assistir JEM em gravação realizada em Mullem, na Bélgica.)

Gent me surpreende sempre. Amigos fidelíssimos, decantados como bom vinho nesses vinte anos de relações. As palavras pouco dizem dessa integração!

Após o recital, pausa de um dia para confraternizações sinceras com aqueles que apreendi a admirar. Houve tantas lembranças sobrevoando os ares primaveris em Gent!!!

A descontração da corrida – 400 participantes – em Ninove, perto de Gent, foi motivo de conversas. A esposa de Kennivé, Tineke, e eu corremos sob chuva, frio e vento intenso, quilômetros de entendimento!