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Os 100 Anos de “La Boîte à Joujoux”

Claude Debussy Modest Moussorgsky

Confesso que, durante a passagem oceânica, por várias vezes veio-me à mente tantas outras travessias. Jamais iguais. Quando a dedicação foi à não repetição repertorial, toda viagem tem o cunho da diferenciação. O leitor perguntaria: “Não pertenceriam os ‘Quadros de uma Exposição’, incluído no recital, ao repertório tradicionalizado”? Só poderia responder afirmativamente. No presente caso, o que importa é a essência da proposta. Do momento em que levantei posicionamento de uma influência que Debussy teria recebido da monumental obra de Moussorgsky, tornou-se imperativo para este intérprete apresentar “La Boîte à Joujoux” junto aos “Quadros…”. Doravante amalgamaram-se na mente do intérprete.  Quanto ao ballet pour enfants, essa extraordinária criação que apresentei no Musée Debussy, na casa em que o compositor nasceu, é pouquíssimo apresentado. Tocado isoladamente já se sustentaria, graças à raríssima feitura e beleza rara. Pode-se juntar a obras consagradas de compositores super ventilados quando da montagem de um recital. Ousariam fazê-lo? Mas não, a frequência às criações de Debussy é quase sempre a mesma e, hélas, é insistentemente apresentado em recitais pelo mundo em obras que “penetraram os ouvidos”. Interessa aos empresários, satisfaz a mídia, acomoda a escuta do ouvinte, que não se preocupa com o descortino de outras composições do músico francês. O compositor é voluntariamente diminuído quando não se tem consciência de que tantas de suas obras são importantíssimas. Como exemplo, o ballet “Khamma”, escrito no mesmo período de “Jeux”, não é interpretado. Porém, um excelente músico francês, Charles Koechlin (1867-1950),  considerava-o superior a “Jeux”.  Princípio básico, “La Boîte à Joujoux“, original para piano, é obra prima para o instrumento, mas minimamente tocada. A versão para orquestra mostrou outros caminhos, assim como a transcrição para orquestra dos “Quadros…”, empreendida por Maurice Ravel. Frise-se, outros caminhos.

Nesse centenário que se está a comemorar, minha alegria é ainda maior, pois sempre que visito “La Boîte…” faço-o amorosamente, mormente nestes 100 anos de existência e na casa em que Debussy nasceu.

Sob a égide do entendimento o recital transcorreu a contento. A pequena, mas aconchegante sala do Muséé Debussy, abrigou admiradores da obra do grande compositor. Alexandre Martin-Varroy, ator, comediante, musicista e cantor preparou textos criando clima para a apresentação. Escritos de Debussy, de André Hellé e Moussorgsky foram lidos com rara expressão. Poderia acrescentar que estive sempre absolutamente à l’aise durante todo o recital que não teve intervalo. “La Boîte à Joujoux” e os “Quadros de uma Exposição” transcorreram no plano amalgamado, irmanados. A recepção não poderia ser mais intensa. Figuras ilustres da musicologia e criação fizeram-se presentes, entres as quais Myriam Chimènes, Alexandra Laederich, Anik Lesure, François Servenière e José Maria Pedrosa Cardoso.

A escolha individual tem de seguir o impulso natural. No final dos anos 1960 encontrei a minha senda. Ao atravessar o oceano na semana que passou estava consciente que a mensagem a ser transmitida não comportaria a repetição. Esse caminho pessoal faz-me, à maneira do viajante que busca o desconhecido, encontrar uma surda alegria. A renovação que nasce com a mudança das estações, com a vida que reencontra seu fluxo em todas elas, não seria a luz a nos indicar que a permanência no ar rarefeito, pode prolongar a vida, mas nunca oxigenar a contento nossas intenções?

Corroborando o pensamento, estive neste domingo pela manhã no lançamento do livro de um de meus autores preferidos, Sylvain Tesson. O acaso levou-me a ter conhecimento do evento. Durante a viagem estava a ler “Dans les Forêts de Sibérie“, e o novo livro “S’Abandonner à Vivre” era o centro do encontro. Durante mais de uma hora Sylvain Tesson respondeu aos questionamentos. Teremos tempo brevemente para voltar ao tema. Dizia o autor que esse renovar planejado é a essência da vida. Não importa o caminho encontrado. São tantos. A mente se abre ao descortino. Reflexões…

Surpresa e Entusiasmo Exaltam a Qualidade

Em torno de Henrique Oswald. Palácio Foz, Lisboa. A mezzo-soprano, Rita Morão Tavares e JEM.

Ao adentrarmos a esplendorosa Sala dos Espelhos do Palácio Foz, em Lisboa, no último dia 28, ficamos surpresos. Público numeroso e muitos ouvintes sentados no chão. Músicos, melômanos, adultos e jovens saudaram as obras que foram apresentadas em primeira audição em Portugal. A minha relação intensa com a família de Henrique Oswald, que remonta ao ano de 1978, quando, ao lado da neta do compositor, minha saudosa amiga Maria Isabel Oswald Monteiro, “redescobrimos” tantas criações maiúsculas de Oswald guardadas carinhosamente em pastas pela neta, resultou em momento mágico. Os bisnetos do compositor, Tude e João Inácio, chegaram no dia do concerto vindos de Brasília e de Cabo Verde, respectivamente. Imensa alegria!!!

O grande musicólogo português Mário Vieira de Carvalho ficou muito impressionado com a escrita oswaldiana, que dialoga tão bem com a dos compositores europeus do período, que seguiam o caudaloso rio romântico. Na realidade, foi somente após nossos compositores realizarem a travessia atlântica rumo à Europa, mormente na segunda metade do século XIX, que esse diálogo se estabeleceria à altura.

Dois outros ilustres pensadores musicais em Portugal, o musicólogo e professor José Maria Pedrosa Cardoso e a gregorianista Idalete Giga, escreveram impressões que muito me comoveram. Pedrosa Cardoso comenta:

“Não era a primeira vez que a música de Henrique Oswald se fazia escutar em Portugal, mas para muitos, quase todos os que lotaram a magnífica sala barroca do Palácio Foz, foi rara a oportunidade de apreciar música de câmara de um excelente compositor quase ignorado, digno representante do romantismo tardio. O recital muito bem desenhado por José Eduardo Martins, afinal o primeiro responsável da divulgação de Henrique Oswald no mundo, começou com a Sonata-Fantasia op. 44 para piano e violoncelo, na qual o compositor faz um discurso denso de sonoridades contínuas, explorando de certo modo a melodia infinita, já apregoada por R. Wagner. E, se no Poemetto Lirico Ofelia, sobre versos intensamente românticos de Solone Monti, o compositor expressou a sua sensibilidade profunda pelo texto na linha de Hugo Wolff, nas três peças de piano expôs a sua técnica virtuosística visível numa escrita exaltada, à boa maneira dos salões românticos (Estudo e Valse-Caprice), depois de mergulhar quase em obsessão sensível com a peça Il neige. E já de volta ao violoncelo, as peças Berceuse e Elegie, confirmariam o ideal onírico de uma escrita muito próxima do romantismo francês (Saint-Saëns e Fauré), que terminaria com a espectacular Sonata op. 21, numa afirmação de domínio formal no diálogo piano-violoncelo, chegando a cumes dramáticos sobretudo na parte do piano. Assim se fez justiça, na sequência do exposto na Revista Glosas, ao notável compositor brasileiro, Henrique Oswald, graças ao empenhamento e maturidade de um grande pianista, José Eduardo Martins, secundado com mérito pelos jovens Nuno Cardoso e Rita Morão Tavares que visivelmente se transcenderam”.

Em torno de Henrique Oswald. Palácio  Foz, Lisboa. O violoncelista Nuno Cardoso e JEM.

Idalete Giga escreve:

“A simplicidade  da linha melódica dos inspirados temas de Henrique Oswald encantou-me e conduziu-me, de imediato, ao universo mágico da pura linguagem poética do compositor. Quer nas obras mais complexas como as Sonatas em mi bemol maior e ré menor da integral para piano e violoncelo, quer nas peças mais breves como o belíssimo Il neige, a terna Berceuse, a despojada e quase sacra Elegia, a Valse-Caprice plena de brilhantismo e bom gosto, o virtuosismo e grande imaginação rítmica do Estudo, quer ainda no dramático Poemeto Ofelia- cinco breves canções com texto italiano, é constante o lirismo, a riqueza melódica e rítmica.

Henrique Oswald não segue clichés românticos artificiais. Rejeita-os. Foge deles a cada compasso, a cada nova ideia melódica ou rítmica que desenvolve magistralmente. Modula de forma subtil. Não é um atormentado. Mas é, sem dúvida, um romântico, no melhor sentido do termo. Criou o seu estilo próprio, sempre abraçado à Poesia, à luminosidade transparente do canto sem palavras. O piano e o violoncelo cantam e dialogam na mais perfeita harmonia. Henrique Oswald é um compositor-poeta-cantor. As suas obras falam ao coração humano.

O recital de piano e violoncelo pelo consagrado pianista brasileiro José Eduardo Martins e o jovem violoncelista de incontestável talento Nuno Cardoso, cujo programa integrou as obras de Henrique Oswald que acabei de mencionar, foi uma verdadeira revelação e conquistou, de imediato, o público lisboeta. Louve-se a participação da jovem mezzo-soprano Rita Morão Tavares. O belíssimo Salão Nobre do Palácio Foz, em Lisboa, onde teve lugar o recital, na tarde do passado dia 28 de Setembro, estava repleto congregando um público muito variado – melómanos de todas as idades, músicos e musicólogos portugueses.

Na histórica e misteriosa cidade de Évora, foi repetido o mesmo recital no dia 1 de Outubro-Dia Mundial da Música. A noite chuvosa não afastou o público que acorreu à bela Igreja barroca do Convento dos Remédios. Henrique Oswald ficou no coração de muitos lisboetas e eborenses que, certamente, jamais esquecerão os momentos de eternidade vividos através da  Beleza das obras do  genial compositor”.

Em torno de Henrique Oswald. Palácio da Foz, Lisboa. O violoncelista Nuno Cardoso e JEM.

masterclass oferecida na Academia de Amadores de Música marcou a presença de jovem pianista com carreira que se anuncia muito promissora. Marta Menezes apresentou obras virtuosísticas de Liszt e Chopin com pleno domínio, mas a sua interpretação da dificílima Sonata op. 111 de Beethoven com plena apreensão estilística, revelou a artista. Parabenizo seu competente professor e pianista, Miguel Henriques.

Finalizando a breve tournée por terras lusíadas o recital que o jovem e talentoso violoncelista Nuno Cardoso e eu apresentamos em Évora, na Igreja do Convento Nossa Senhora dos Remédios, apenas ratificou a calorosa acolhida à obra de Henrique Oswald. A Revista “Glosas” ao homenagear Henrique Oswald em seu número 9 (já disponível on line www.mpmp.pt ), dá o passo importante rumo ao entendimento musical dos povos irmãos. Nossas músicas têm de penetrar fronteiras que nos são caras desde o descobrimento. Não há mais razão para ocultamentos, silêncio e até, hélas, o famigerado chauvinismo. Compreendamo-nos sempre mais acentuadamente.


On the warm reception of the recital with Henrique Oswald’s works in Lisbon and Evora and the view of two Portuguese musicologists on the qualities of the composer’s pieces. In addition, in this post I also comment on my master class at the Academia de Amadores de Música in Lisbon.

Em Torno de Henrique Oswald

O que quero de todos os portugueses é o seguinte:
sejam curiosos; e que a organização em sociedade
possa ser de tal maneira
que eles possam satisfazer essa curiosidade completamente.
Agostinho da Silva (Entrevista)

Aterrissar no aeroporto da Portela, em Lisboa, já faz parte de meu respirar musical em terras portuguesas, berço de meu saudoso pai. A chegada, dias antes do concerto marcado para sábado, 28 de Setembro, marca a segunda récita inteiramente dedicada ao compositor romântico brasileiro Henrique Oswald, num longo espaço de 31 anos, pois o recital que ofereci no Grêmio Literário de Lisboa data de 28 de Fevereiro de 1982.

Quando Edward Luiz Ayres d’Abreu, diretor da revista quadrimestral portuguesa Glosas — que, pela qualidade e abrangência do universo lusófono, não encontra minimamente paralelo no Brasil — pensou na apresentação de obras de câmara de Oswald para o lançamento de Glosas (nº9), que homenageia em seu núcleo principal o notável compositor brasileiro, várias opções se nos apresentaram. Optamos pela apresentação bem diferenciada, a privilegiar vários períodos criativos do compositor e, igualmente, a restringir o número de instrumentistas, a fim de récitas em outras cidades após o dia 28. A integral para violoncelo e piano foi a escolhida por evidenciar transformações que se processaram na escrita oswaldiana ao longo da profícua existência. A qualidade excelsa das obras e a generosidade das linhas melódicas que encantam o ouvinte, apesar de desconhecidas para o público português, são parte da garantia de recepção à altura. O Poemetto Lirico Ofelia para mezzo-soprano e piano, assim como três peças emblemáticas para piano solo – Il Neige!, Estudo (1897) e a comunicativa Valse-Caprice op. 11 nº 1 – completam o programa.

Ensaiar com o jovem e talentoso violoncelista Nuno Cardoso (vide suas gravações no YouTube) e também com a jovem e promissora mezzo-soprano Rita Morão Tavares tem sido motivo de entendimento e de grande alegrria.O Poemetto Lirico Ofelia, sob poesias de Solone Monti, é de raríssima feitura. Estar familiarizado desde 1978 com a obra de Henrique Oswald, que resultou em cinco LPs e três CDs (estes gravados na Bélgica), apenas reencanta o velho pianista.

A entrevista na RTP para o programa Antena 2 (ao vivo, dia 25, às 9 horas) teve Glosas como centro e Henrique Oswald como agradável surpresa para o ouvinte português. O competente Paulo Guerra conduziu o programa com rara descontração. Tive a oportunidade de discorrer sobre o autor, ilustrar o programa com algumas obras dos três CDs que gravei na Bélgica e enfatizar o diálogo rigorosamente à altura que Oswald manteve com o que de mais precioso se fazia na Europa em termos dessa continuação romântica que permanecia frequentada por tantos autores de grande mérito. Ouvintes de outras cidades portuguesas me ligaram, elogiando a criação oswaldiana. Todas as mensagens telefônicas ou por e-mail enfatizaram a filiação francesa oswaldiana com o que de melhor foi produzido em França no período.

Ter participado de painel sobre “Música Portuguesa: Promoção e Divulgação” durante a 3ª edição do Festival de Jovens Músicos (dia 27, Centro Cultural de Belém) reforçou a necessidade imperiosa de a composição portuguesa percorrer terras e mares além-fronteiras. À mesa de debates, moderado pela competente jornalista Manuela Paraíso, estiveram o compositor António Pinho Vargas, Teresa Cascudo e Tozé Brito (Administrador da Sociedade Portuguesa de Autores).

No próximo post focalizarei o concerto de 28 de Setembro, a master class que será realizada no dia 30 na Academia de Amadores de Música, templo musical do grande compositor Fernando Lopes-Graça e local que me é tão caro, e a apresentação do dia 1º de Outubro em Évora (Eborae Musica), na Igreja do Convento Nª Senhora dos Remédios, espaço no qual tenho me apresentado anualmente em recitais promovidos pelo Eborae Musica, dirigido pela sempre atenta Profª Helena Zuber e pelo Centro Ward de Lisboa, sob direção da dedicada gregorianista Idalete Giga.

On my trip to Lisbon to the launch of issue nº 9 of the classical music magazine “Glosas” on 28 September, followed by a concert entirely devoted to Henrique Oswald’s work (together with the mezzo-soprano Rita Morão Tavares and the cellist Nuno Cardoso).