Navegando Posts em Impressões de Viagens

Encontro Prazeroso com Ilustre Colega

J.E.M.; Professor Doutor Emil Moroianu, Magnífico Reitor da Universitatae Constantin Brancusi; Cássio Mesquita Barros. Târgu-Jiu, Romênia, 2001. Clique para ampliar.

Descobri um novo título
E espero que o céu mo assuma
É ser Honoris Causa
Em coisa nenhuma

Agostinho da Silva

Dois fatos recentes fizeram-me rememorar o ano de 2001. Em ambos esteve em causa um título honorífico que leva o professor, que atravessou décadas em seara precisa, à alegria interior. Honrarias e titulações podem levar o outorgado a imaginá-las como tributo normal e justo a ele prestado, devido aos seus méritos reconhecidos por determinada coletividade. Será possível entender que belas homenagens levem alguns contemplados à “compulsão” por colecioná-las. Todo um mal pode desde logo estar a se produzir, se houver no de profundis a vaidade a suplantar a homenagem. Estou a me lembrar de comunicador de rádio que se orgulhava, ao mencionar dezenas de títulos de cidadão honorário recebidos por este Brasil afora, a inclusão de mais um. E, sem constrangimento, citava um outro colega que, até então, recebera mais honrarias. Observou certa vez a intenção de suplantá-lo !
Receber título ou honraria deveria pressupor sempre, em conditio sine qua non, humildade e naturalidade. O day after deve ser apenas mais um dia e se um “santo orgulho” – como bem gostava de dizer D. Henrique Trindade, arcebispo de Botucatu – invadir o homenageado, entenda-se como reação humana benigna. A emoção de momento único existe, a demonstrar a medida exata da dimensão da outorga.
Os dois recentes flashes em que esteve em causa as palavras Honoris Causa fizeram-me pensar escrever um post a respeito. No de 27 de Fevereiro, Idalete Giga menciona versos de Agostinho da Silva, epígrafe do presente. O humanismo que sempre depreendeu desse imenso poeta e pensador português está concentrado nesses excelsos versos e nos dá a noção exata da ilusão que títulos podem representar. O iluminado poeta da síntese conhecia os mistérios da elisão.
Em 2001 realizei duas tournées pela Romênia. Na primeira, em Abril, integrava a Iª Missão da Diplomacia Cultural que marcava a visita do ilustre Ministro Carlos Mário Velloso, àquela altura Presidente do Supremo Tribunal Federal, ao país. Era Embaixador do Brasil na Romênia Jerônimo Moscardo, que tem prestado imensa contribuição na difusão da cultura brasileira no Exterior. Meus irmãos Ives Gandra e João Carlos fizeram parte da comitiva, o primeiro realizando palestras e a assistir o lançamento de um livro. Com João Carlos, apresentamo-nos em várias cidades, exatamente como fazíamos nos longínquos anos 50. Bucarest, Craiova, Târgu-Jiu e Cluj-Napoca foram as cidades visitadas. Em todas elas recebemos o carinho do hospitaleiro povo romeno. Alguns dos meus CDs foram entregues para expressivas figuras culturais do país. Difundidos pela Rádio Estatal da Romênia, valeram-me uma segunda visita em circunstâncias outras.

Recital de piano de J.E.M. no Ateneul Român. Bucarest, Romênia, Setembro 2001. Clique para ampliar.

Em Setembro, viajei uma segunda vez para apresentações. No dia 7 realizei recital em uma das mais belas salas de concerto da Europa, o lendário teatro Ateneul Român em Bucarest, a convite do Embaixador Jerônimo Moscardo. No dia seguinte, Cássio Mesquita Barros, respeitado advogado trabalhista e professor titular da USP, e eu viajamos a Târgu-Jiu, a fim de receber da Universitatae “Constantin Brancusi” – uma das mais importantes instituições de ensino superior da Romênia – o título de Professor Honoris Causa. O ilustre jurista Cássio Mesquita Barros foi membro durante 16 anos – 1990-2006 – da Comissão de peritos da O.I.T., Organização Internacional do Trabalho, com sede em Genebra, cujo objetivo prioritário é acompanhar o cumprimento das Convenções Internacionais do Trabalho em todo o conjunto dos 184 países que compõem a Organização. Considere-se que apenas 20 especialistas escolhidos participam dessa importante Comissão. Lembre-se igualmente que os primórdios da Organização remontam ao período do Tratado de Versalhes ! Jorge Legmann, que realiza imenso trabalho na aproximação cultural e econômica Romênia-Brasil, recebeu igualmente o carinho da comunidade acadêmica de Târgu-Jiu.

J.E.M. na Universitatae Constantin Brancusi, Târgu-Jiu, Romênia, 2001. Clique para ampliar.

O fato não estaria convertido em post não fosse a lembrança que Cássio Mesquita Barros colocou na conversa prazerosa que tivemos durante justa homenagem que se prestava recentemente ao irmão Ives Gandra, dela a participarem diversas Associações e Academias significativas de São Paulo.
Dizia-me ele que, naquela manhã em Târgu-Jiu, um fato não foi esquecido pelo amigo. Durante a cerimônia na bela sala dos Congregados da Universidade, recebemos as vestes talares doutorais na cor preta com os respectivos capelos e fizemos nossos pronunciamentos, o jurista em inglês e eu, em francês. Verificara que havia um piano vertical na sala da cerimônia. Finalizei minhas palavras e dirigi-me ao piano, a dizer que interpretaria obras de Villa-Lobos. Não estava no protocolo. A recepção ao inusitado foi realmente algo que me emocionou e serviu para o insigne Cássio Mesquita Barros dela lembrar-se quase dez anos após. Finda a expressiva cerimônia, o amigo e eu, ciceronados pelo Magnífico Reitor Emil Moroianu e acompanhados por professores da universidade, visitamos o belíssimo parque Constantin Brancusi, no qual estão algumas esculturas do extraordinário artista romeno num contexto harmonioso.
Honoris Causa. Ficou da cerimônia oficial não apenas a honrosa titulação, como a lembrança da sensível acolhida, mormente em Instituição de Ensino respeitada na Europa. O convívio com Cássio Mesquita Barros, homem de cultura humanística e a revelar espírito de humor e de observação, enriqueceu a estadia em solo romeno. Do título resultou uma certeza. O estímulo dele advindo levou-me a entender ainda mais acentuadamente o aperfeiçoamento individual como objetivo interminável, que se materializa, no meu caso, na dedicação amorosa e diária à música.

A chance meeting with a friend I had not seen for years called up memories of the old times, in particular of our visit to Romania in 2001. In this post I recollect the ceremony in which I was awarded a Doctor Honoris Causa degree by the Constantin Brancusi University in Târgu-Jiu and the special meaning this title has to me.

Cidade que Cultua a Música

Clique para ampliar.

Goiânia nasceu para ser capital,
nasceu sem infância histórica,
sem adolescência interior,
madura demais para tão pouco tempo de criação.

Nasr Fayad Chaul

Há mais de duas décadas visito Goiânia, não com a frequência que desejaria, mas sempre com imensa alegria. Rever amigos e sentir em pleno Planalto Central uma cidade pujante em seus 76 anos de existência. Realmente uma urbe agradável. Seus belos parques causam forte impressão. Dei muitos recitais ao longo dos anos. Cursos de piano, conferências e participação em bancas integraram-me ao convívio singular goianiense. A cidade faz parte de meu universo de afeto. Muitos foram os músicos de qualidade que conheci em Goiânia e que estão a batalhar pela causa. Mencionaria, como baluarte da sólida escola pianística goianiense, a saudosa amiga Belkiss Carneiro de Mendonça, formadora de gerações de bons pianistas e professores, entre os quais Glacy Antunes de Oliveira, que se destaca com produção relevante.
Fui convidado pela dedicada Professora Gyovana Carneiro, da Universidade Federal de Goiás e uma das organizadoras da série Concertos na Cidade. Juntamente com Ana Flávia Frazão, outra competente Professora da mesma Instituição, também da nova geração, tem conduzido uma bela programação, a contar com as parcerias da Escola de Música e Artes Cênicas da UFG e do Centro Educacional SESC Cidadania. Recital, conferência e também participação como membro de júri de Concurso de Jovens Talentos da EMAC 2009 preencheram minha semana no começo de Novembro.
O recital se deu no ótimo Auditório do SESC com um público entusiasta, o que contagiou o intérprete. A conferência, no Auditório da EMAC-UFG, impressionou-me pela qualidade das perguntas de professores e alunos, quando dos debates. O Concurso fez-me pensar. Só aceitei participar como jurado por saber que não haveria qualquer pressão, tão comum em outros certames do eixo São Paulo-Rio de Janeiro. Fiquei deveras feliz ao ouvir jovens talentosos e dedicados buscando realização através da música de concerto. Juventude sadia, estudiosa. Ouvimos belas vocações. Fui incumbido de dar os resultados. Conversei em público com os candidatos. Frisei com veemência que todos eram vencedores, pois subir em um palco diante de júri e realizar provas a contento requerem não apenas esforço, como amor, dedicação, disciplina e coragem. Não há vencidos. O resultado, infelizmente, tem de proclamar os mais acurados desempenhos.
Aproveitei umas poucas horas de uma tarde que intercalava calor e chuva para correr 7,5km no exterior do belíssimo parque Areião, percurso a contemplar longas descidas e subidas. Uma felicidade. Tinha de me preparar para a Maratona de Revezamento em São Paulo.
Dois importantes jornais da cidade entrevistaram-me: Diário da Manhã (Aline Mil) e O Popular (Edson Wander). As matérias foram publicadas nos dias 3 e 4 de Novembro, respectivamente. Pedi a autorização, que me foi concedida gentilmente pelos órgãos de imprensa, e reproduzo nesse post as entrevistas na íntegra.

Clique para ampliar.

Diário da Manhã (3 de Novembro de 2009)

Pergunta: O projeto Concertos da Cidade é voltado para um público que não tem o costume de apreciar a música clássica ou nunca entrou em contato com esse nicho da arte. Como você enxerga essa inserção da música clássica no dia-a-dia do brasileiro? Nós caminhamos para uma maior difusão desse tipo de trabalho no país ou estamos cada vez mais longe disso? Resposta: É fundamental (a inserção da música erudita no dia-a-dia do brasileiro). Há um decréscimo progressivo da música clássica, dita de concerto, junto às massas. Fatores múltiplos como elitismo, propagação desmesurada da música de alto consumo, como rock e seus derivantes, sertaneja em todos os níveis e muitas outras manifestações. Diria que a música erudita, clássica ou de concerto tem a magia da perenidade – quando qualitativa – e, por não ser descartável, pode proporcionar ao homem a reflexão e a apreciação do belo, que tem tantas outras ligações com o aperfeiçoamento individual.

P:Você já viajou bastante, estudou fora e se apresentou em vários lugares. Como funciona essa difusão da música clássica lá fora? R: Há lá fora e lá fora. A gradação depende do lugar onde há a apresentação. Creio que o respeito que se tem ao cidadão em todos os níveis, desde o cuidado dos governos quanto à saúde, à educação e à segurança, tenha influência decisiva. Faz parte dos costumes de muitos países cultuar o passado, seja através da conservação dos museus e dos logradouros históricos, seja na preservação das culturas. Para a música, o intérprete é o elo que transporta a criação do compositor ao público. Divulga-se e preserva-se a tradição em tantos países. Ir a um concerto tem essa feliz rotina que se encontra em outras ações, como ir à missa, a um passeio, conviver com a família e com os amigos. Faz parte dos costumes e isso é salutar.

P: Dos visitados e conhecidos, em qual país o senhor mais admirou o tratamento e a valorização dada à música erudita. R: Todos nós elegemos nossas cidades e países. Faz parte da natureza humana. Tenho especial afeto por Portugal, Bélgica, França, Bulgária, Romênia… Diria que já visitei dezenas de vezes Portugal, sempre para recitais ou conferências. Sou um admirador incondicional da música erudita portuguesa, do barroco à contemporaneidade. Tantas outras vezes estive na Bélgica para apresentações e gravações, todas realizadas na mágica capela de São Hilário em Mullem, no coração da região flamenga. Data do século XI e, dos 20 CDs que gravei no Exterior, 15 foram naquela bela capela. A França está enraizada através de minha formação com grandes mestres. Mantenho relação profunda com Paris, mercê de meu trabalho relacionado a Claude Debussy e a Jean-Philippe Rameau, compositores extraordinários.

P: Onde o sr. se sente mais a vontade, nos grandes palcos ou nas apresentações mais reservadas e com produção mais tranquila, como essa que vai ser feita em Goiânia? R: Desde meados dos anos 90 estou mais ligado às gravações. Prefiro-as à apresentação pública. É um ledo engano pensar que microfones não captam a alma do intérprete. Tudo está lá. Aos 71 anos dirijo-me à idade da síntese e a gravação tem a magia de registrar o que realmente sinto e penso. Sim, o palco é importante, mas pode tantas vezes representar o culto ao holofote. Sob outro aspecto, desde os anos 80 me apresento em Goiânia. Faz parte de meu universo de afeto.

O Popular (4 de Novembro de 2009)

Pergunta: O que pesa mais na hora de escolher o repertório de seus concertos? Resposta: Habitualmente, o intérprete herda repertório sacralizado. Se considerarmos o amplo leque a abranger as salas de concerto em países que acatam a música denominada clássica ou erudita, verificamos que uma parte do repertório, bem menor do que a ponta de um iceberg, é apresentada em público. Ousaria dizer que não ultrapassa um dígito o percentual do qualitativo apresentado para as platéias ávidas por ouvir sempre as mesmas obras e, de preferência, os mesmos intérpretes. Até os 30 e tais anos aprendi e toquei muito o repertório super tradicional, importantíssimo para a formação de todo pianista. Mas, a uma certa altura, parei de tocar por três anos. Ao retornar, em fins dos anos 60, a escolha estava feita. Só estudaria aquilo de que gostasse e um imenso universo se abriu.

P: Há uma crítica frequente de que nossas escolas pouco estudam e executam os compositores brasileiros. O senhor comunga dessa visão? R: Não é bem assim. Toca-se sempre as mesmas obras, de Villa-Lobos, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri e tantos outros. Mas toca-se. Não há a vontade por parte de tantos professores de sondar o inusitado, e ele existe. Estou a me lembrar de Henrique Oswald, o nosso grande compositor romântico. Quando iniciei os meus estudos relativos à sua obra e à sua vida em 1978, tocava-se dele para piano duas ou três peças apenas. Isso é fato. Minha tese de doutorado foi sobre Oswald, no longínquo 1988. Gravei cinco LPs no Brasil e três CDs no Exterior contendo expressiva parcela de sua obra de câmara e para piano solo. Presentemente, mais de uma dezena de teses e gravações esparsas estão a apontar para um caminho que deu certo.

P: O senhor se aposentou na USP, mas há ainda alguma relação extemporânea com a universidade ou outras universidades? R: Tenho ainda um orientando, que defenderá sua dissertação de mestrado, e três alunos de graduação. Por motivos pessoais, após a compulsória dou as aulas em minha casa e no fim do semestre repasso as notas à secretaria. Brevemente estarei totalmente sem relação com a Universidade de São Paulo. Convites recebo, como o presente, mas raríssimos. No Exterior não houve a menor descontinuidade, e continuo a tocar e dar palestras em Universidades como em Évora, Coimbra, Minho em Portugal, Sorbonne em França e outras salas de concerto da Europa. Se tenho artigos a escrever para o Exterior para revistas e livros arbitrados, sinto-me, sob outro aspecto, liberto das amarras, tantas vezes inócuas, do jargão acadêmico. Meu blog semanal, ininterruptamente escrito desde Março de 2007, é prova.

P: Seu site é uma iniciativa que destoa da relação que os artistas do meio erudito têm com a tecnologia, não? R: Estava na antecâmara da aposentadoria. Hoje, como a música, o blog tem sido respiração. Curiosamente, os temas e desenvolvimentos surgem quando corro pelas ruas três vezes por semana. Já participei de dez provas oficiais, inclusive da São Silvestre. Deverei chegar em São Paulo no sábado à noite e já às seis da manhã estarei em Interlagos para a Maratona de Revezamento. Nossa equipe tem o sugestivo nome TA LENTOS. Já estou inscrito para a próxima São Silvestre em seu percurso de 15km.

P: O senhor mantém ainda seu programa de rádio? R: De 1993 até 2004 fui o coordenador de Tempo de Concerto, da Rádio USP-FM. Quando acometido de um câncer com prognósticos sombrios passei a coordenação ao grande violonista e professor Edelton Gloeden, dileto e fiel amigo. Continuei a apresentar contudo meu programa. Meses atrás, sentimos pressões quanto à programação, que apresentou não apenas infindável coleção de CDs inéditos como entrevistas extraordinárias durante 16 anos. Pedimos o desligamento. Foi tudo. Havia sim interação e o público escrevia-nos, o que resultava em forte estímulo. Mas há os tempos do Eclesiastes. Quanto ao público, está a haver diminuição. Diria natural, devido à estrondosa ascensão de outras manifestações “musicais”.

P: Acha que o impacto das novas tecnologias (o MP3 em especial) sobre o consumo da música de concerto é igual ao da música popular? R: Diria, outro tipo de impacto. Ajudará contudo a divulgação maior da música de concerto.

P: Em seu blog, o senhor citou o pianista Oscar Levant, dizendo que na guerra das vaidades do meio gostava mais de ser considerado segundo melhor pianista que o melhor. Quem o senhor acha o melhor “segundo pianista” brasileiro hoje? R: O drama é o holofote. Na medida que ele se torna o epicentro, nada a fazer. Pode o intérprete ser hábil virtuose, o público incensar, mas e a música, onde ficaria em sua mente? Acredito que desde que apenas o compositor a ser interpretado seja a essência, o pianista, no caso, deixa de preocupar-se com ser ou não “o melhor”. A arte pianística não pode ser julgada objetivamente, como no caso do atletismo. A mídia e os empresários podem induzir o público a entender quais os melhores. Todavia, se não houver a plena identificação com a profundidade musical, haverá sempre uma lacuna, mesmo que salas fiquem repletas e luzes iluminem mais acentuadamente determinados músicos. Sinceridade e fidelidade relacionadas à música. Poderia acrescentar que, fora desses parâmetros, vive-se na ilusão. E a ilusão é a aparência da verdade.

P: E os novos projetos? há novas gravações em vista? concertos fora do país, publicações etc.? R: Jean Philippe Rameau é um imenso compositor. Gravei na Bulgária a sua obra completa para teclado, que foi lançada em duplo CD na Bélgica, pelo selo De Rode Pomp. Dentro de alguns dias haverá o lançamento desse álbum em São Paulo pela Clássicos Editorial. Dias após será a vez de meu segundo livro de textos publicados no blog: Crônicas de um Observador (II). Até 2012 tenho apresentações, gravações e atividades musicais na Bélgica, Portugal e em França. Os projetos surgem. Aos 71 anos, tenho sempre esperanças.

The city of Goiânia, in the Central-West of Brazil, is the capital of the state of Goiás. It is only 76 years old, with plenty of green areas and intense musical life. I’ve been playing regularly in Goiânia for the last 20 years and have strong bonds of affection with the city. In this post I give an account of my last visit two weeks ago for a recital, a talk to students of the Universidade Federal de Goiás (UFG) and to take part, as member of the jury, of the New Talents Competition – 2009 of EMAC (School of Music and Performing Arts of UFG). I also transcribe the interviews I gave for two of the major newspapers of Goiânia.

Espectador Assustado

Jornal El Zonda, San Juan, 12/07/06. Clique para ampliar.

Por ejemplo en el norte, carnavalitos y bagualas se apoyan
en el suelo argilloso y el aire caliente de las provincias norteñas,
en la Región de Cuyo cambia el clima,
los frutos, la temperatura y escuchamos cuecas y valses,
que pueden decir
“ando extrañando el zonda, su viento y polvareda”
hablando de un viento que arriba a esa región con su aliento de fuego.

Susana Giraudo

Diariamente, nos intervalos de estudo, vou conversar com velhos amigos no mesmo cantinho de sempre, ou aproveito para tomar um curto. Hábitos que se enraízam. Meus companheiros tinham lido a respeito de uma espécie de ciclone ao sul do país com rajadas de até 80km por hora. Estavam a trocar ideias, pois houve destruição de casas, rede elétrica danificada e alguns feridos. Disse-lhes que não é nada agradável assistir a um espetáculo desses, pois eu mesmo presenciara na Argentina ventos de até 130km, severo na opinião de especialistas. Notei que houve certa desconfiança e prometi desde logo escrever um post a respeito do acontecido.
O fato ocorreu no inverno de 2006. Deslocara-me até San Juan, a fim de participar, juntamente com os excelentes pianistas e professores Miguel Ángel Scebba (www.miguelangelscebba.com.ar) e Dante Medina, do III Encuentro Internacional de Piano promovido pela Universidad de San Juan, que se realizou entre 10 de 15 de Julho.
Durante a master class que dei no magnífico auditório da universidade, na tarde do dia 11, por volta das cinco e meia, ouvi barulhos estranhos e breves interrupções da iluminação. Continuei, mas as portas começaram a ranger, como se pessoas quisessem entrar. No momento em que fui abrir uma delas, forte corrente de ar irrompeu, a haver de imediato corte da luz. Algo estranho acontecia. Fomos todos ao saguão e deparamo-nos com espetáculo de impressionar. Pelos vidros espessos do amplo saguão víamos galhos imensos voando, baldes, papéis, árvore a cair, uma nuvem de poeira e de terra deixando a visão do entorno totalmente prejudicada, cenário dantesco acrescido pelo ruído absoluto do El Zonda, o temível vento.
Toda a população dessa região oeste da Argentina, fronteiriça à pré-cordilheira andina, teme o El Zonda. Nasce no Oceano Pacífico e na origem está carregado de umidade. Sobe as encostas dos Andes no Chile onde, em forma de neve, despeja umidade, atingindo a essa altura temperaturas bem abaixo de zero. Ao ultrapassar a cadeia montanhosa, desce pelos vales e planícies, encontra maior ou menor frente quente e, a depender dessas intensidades, infiltra-se e ganha velocidade, aquecendo vertiginosamente a temperatura, que em pleno inverno pode passar do negativo aos 30 graus acima de zero. Uma das causas do El Zonda é a grande diferença de pressão atmosférica entre os dois lados da Cordilheira dos Andes. Geralmente tem sua maior força no fim da tarde, quando as temperaturas são mais elevadas. Segundo os meteorologistas do país vizinho, El Zonda é moderado quando sopra até 50km hora, intenso entre 50 e 100 e severo acima dessa marca.
No dia 11 já sentia um vento estranho no meio da manhã, quando fui a pé ao auditório, distante umas dez quadras do hotel, a fim de realizar a mencionada sessão de master class. O ar estava seco e a poeira, característica nessa época do ano, parecia-me intensa. As altas árvores dos parques tinham em seus topos movimentos inusitados nos galhos mais frágeis. Disseram-me, sem ênfase, que era El Zonda, que sopra todos os anos de Maio a Novembro.
À tarde, durante a master class, El Zonda já havia provocado estragos consideráveis, a causar em sua longa passagem: rompimento dos cabos de alta tensão; incêndios em várias partes de San Juan e em outras localidades, mormente Mendoza; destruição de muitos veículos atingidos pela queda de árvores ou mesmo capotados; redução da visibilidade a quase nada devido à poeira e à terra em suspensão. Colapso total. Dentro do auditório, estávamos alheios ao que se passava no exterior. Depois, ilhados no saguão da Universidade, sem luz alguma, por lá permanecemos até às 2 da manhã. Na lanchonete, à luz de velas, ficamos a dialogar, alunos e professores, sobre música, amenidades e El Zonda. Funcionários mais velhos disseram que raramente viram tão grande intensidade. Durante essa nossa conversa amistosa, soprava violentamente El Zonda pela região. Quando de lá saímos, a velocidade amainara e dirigimo-nos ao hotel. A cidade sem luz parecia ter sofrido um bombardeio, pois apresentava-se caótica. Árvores, entulho, galhos e veículos destruídos, casas destelhadas, muros caídos davam a imagem da catástrofe. Sem luz, subi com uma vela para o meu quarto. Impressionou-me o quadro à minha frente. A poeira tinha alguns milímetros, era uma secura só. A sala de banho plena dessa camada espessa. Nada a fazer, a não ser dormir e aguardar.
No dia seguinte, verifiquei que não havia iluminação. Ao descer munido da vela, um único tema no saguão do hotel e no café às escuras, o temível vento. Na saída, comprei o jornal El Zonda e constatei o resultado da catástrofe. Vento na categoria severo ao atingir de 120 a 130km por hora. O Serviço de Meteorologia da Argentina detectou velocidade de 160 nos contrafortes da Cordilheira dos Andes. Moradores acreditavam que tamanha intensidade não se registrava há décadas.

Recital de J.E.M. San Juan, Argentina, 12/07/06. Clique para ampliar.

Fui novamente a pé até ao auditório e pude observar o estado de calamidade pública, um dia após uma caminhada serena. O caos. Ao chegar, sempre sem luz, dirigi-me à sala de Miguel Ángel Scebba, que gentilmente cedeu seu espaço para que estudasse para o recital que deveria dar à noite no auditório. Durante todo o dia não tínhamos a certeza da apresentação. Ao final da tarde, com o retorno da energia elétrica, ficou definido que o recital seria dado, mercê da agenda apertada do Festival. Certamente a população estava traumatizada e os quinze corajosos ouvintes, que foram à apresentação naquele extraordinário auditório para cerca de 900 pessoas e possuidor de acústica impecável, eram na verdade os dois pianistas professores e os intérpretes inscritos para o curso. Após o recital, um jantar descontraído com todo o “público”, regado pelo generoso vinho tinto de San Juan, selava entendimentos. Nos dias posteriores, dois recitais maiúsculos foram dados por Scebba, em magnífica versão dos Quadros de uma Exposição de Moussorgsky, e por Medina, em ótimas leituras de D. Scarlatti e Mozart.

Entrevista publicada em El Zonda, San Juan, 13/07/09. Clique para ampliar.

Ter estado em San Juan, participado do Encuentro, conhecido intérpretes argentinos de raro valor e, ao mesmo tempo, ter degustado o excelente vinho da região, assim como presenciado o fenômeno mais expressivo da província, El Zonda, resultaria num avivamento da memória tão logo qualquer dos fatores acionado.
Ao regressar à minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, conversei com minha talentosa ex-aluna Beatriz Alessio que posteriormente à minha orientação, estudou por quatro anos com Miguel Ángel Scebba em San Juan. Disse-me que conhecia El Zonda, mas jamais com essa intensidade, e que eu fora premiado com essa possibilidade de observação da força da natureza. Realmente, uma experiência inusitada. Pouco sabemos desses fenômenos que acontecem periodicamente no Chile e na Argentina. Impressionam.

The Zonda wind blows from the Pacific ocean, over the Andes Mountains and into the northwest of Argentina. Sometimes reaching 130 km per hour, it is feared by the population of Mendoza and San Juan, where its effects are more impressive. In July 2006 I was in San Juan for a Meeting of Pianists and had a chance to witness in loco the ruthlessness of the Zonda wind, the destruction in its wake and its impact on the community.