Cidade que Cultua a Música

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Goiânia nasceu para ser capital,
nasceu sem infância histórica,
sem adolescência interior,
madura demais para tão pouco tempo de criação.

Nasr Fayad Chaul

Há mais de duas décadas visito Goiânia, não com a frequência que desejaria, mas sempre com imensa alegria. Rever amigos e sentir em pleno Planalto Central uma cidade pujante em seus 76 anos de existência. Realmente uma urbe agradável. Seus belos parques causam forte impressão. Dei muitos recitais ao longo dos anos. Cursos de piano, conferências e participação em bancas integraram-me ao convívio singular goianiense. A cidade faz parte de meu universo de afeto. Muitos foram os músicos de qualidade que conheci em Goiânia e que estão a batalhar pela causa. Mencionaria, como baluarte da sólida escola pianística goianiense, a saudosa amiga Belkiss Carneiro de Mendonça, formadora de gerações de bons pianistas e professores, entre os quais Glacy Antunes de Oliveira, que se destaca com produção relevante.
Fui convidado pela dedicada Professora Gyovana Carneiro, da Universidade Federal de Goiás e uma das organizadoras da série Concertos na Cidade. Juntamente com Ana Flávia Frazão, outra competente Professora da mesma Instituição, também da nova geração, tem conduzido uma bela programação, a contar com as parcerias da Escola de Música e Artes Cênicas da UFG e do Centro Educacional SESC Cidadania. Recital, conferência e também participação como membro de júri de Concurso de Jovens Talentos da EMAC 2009 preencheram minha semana no começo de Novembro.
O recital se deu no ótimo Auditório do SESC com um público entusiasta, o que contagiou o intérprete. A conferência, no Auditório da EMAC-UFG, impressionou-me pela qualidade das perguntas de professores e alunos, quando dos debates. O Concurso fez-me pensar. Só aceitei participar como jurado por saber que não haveria qualquer pressão, tão comum em outros certames do eixo São Paulo-Rio de Janeiro. Fiquei deveras feliz ao ouvir jovens talentosos e dedicados buscando realização através da música de concerto. Juventude sadia, estudiosa. Ouvimos belas vocações. Fui incumbido de dar os resultados. Conversei em público com os candidatos. Frisei com veemência que todos eram vencedores, pois subir em um palco diante de júri e realizar provas a contento requerem não apenas esforço, como amor, dedicação, disciplina e coragem. Não há vencidos. O resultado, infelizmente, tem de proclamar os mais acurados desempenhos.
Aproveitei umas poucas horas de uma tarde que intercalava calor e chuva para correr 7,5km no exterior do belíssimo parque Areião, percurso a contemplar longas descidas e subidas. Uma felicidade. Tinha de me preparar para a Maratona de Revezamento em São Paulo.
Dois importantes jornais da cidade entrevistaram-me: Diário da Manhã (Aline Mil) e O Popular (Edson Wander). As matérias foram publicadas nos dias 3 e 4 de Novembro, respectivamente. Pedi a autorização, que me foi concedida gentilmente pelos órgãos de imprensa, e reproduzo nesse post as entrevistas na íntegra.

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Diário da Manhã (3 de Novembro de 2009)

Pergunta: O projeto Concertos da Cidade é voltado para um público que não tem o costume de apreciar a música clássica ou nunca entrou em contato com esse nicho da arte. Como você enxerga essa inserção da música clássica no dia-a-dia do brasileiro? Nós caminhamos para uma maior difusão desse tipo de trabalho no país ou estamos cada vez mais longe disso? Resposta: É fundamental (a inserção da música erudita no dia-a-dia do brasileiro). Há um decréscimo progressivo da música clássica, dita de concerto, junto às massas. Fatores múltiplos como elitismo, propagação desmesurada da música de alto consumo, como rock e seus derivantes, sertaneja em todos os níveis e muitas outras manifestações. Diria que a música erudita, clássica ou de concerto tem a magia da perenidade – quando qualitativa – e, por não ser descartável, pode proporcionar ao homem a reflexão e a apreciação do belo, que tem tantas outras ligações com o aperfeiçoamento individual.

P:Você já viajou bastante, estudou fora e se apresentou em vários lugares. Como funciona essa difusão da música clássica lá fora? R: Há lá fora e lá fora. A gradação depende do lugar onde há a apresentação. Creio que o respeito que se tem ao cidadão em todos os níveis, desde o cuidado dos governos quanto à saúde, à educação e à segurança, tenha influência decisiva. Faz parte dos costumes de muitos países cultuar o passado, seja através da conservação dos museus e dos logradouros históricos, seja na preservação das culturas. Para a música, o intérprete é o elo que transporta a criação do compositor ao público. Divulga-se e preserva-se a tradição em tantos países. Ir a um concerto tem essa feliz rotina que se encontra em outras ações, como ir à missa, a um passeio, conviver com a família e com os amigos. Faz parte dos costumes e isso é salutar.

P: Dos visitados e conhecidos, em qual país o senhor mais admirou o tratamento e a valorização dada à música erudita. R: Todos nós elegemos nossas cidades e países. Faz parte da natureza humana. Tenho especial afeto por Portugal, Bélgica, França, Bulgária, Romênia… Diria que já visitei dezenas de vezes Portugal, sempre para recitais ou conferências. Sou um admirador incondicional da música erudita portuguesa, do barroco à contemporaneidade. Tantas outras vezes estive na Bélgica para apresentações e gravações, todas realizadas na mágica capela de São Hilário em Mullem, no coração da região flamenga. Data do século XI e, dos 20 CDs que gravei no Exterior, 15 foram naquela bela capela. A França está enraizada através de minha formação com grandes mestres. Mantenho relação profunda com Paris, mercê de meu trabalho relacionado a Claude Debussy e a Jean-Philippe Rameau, compositores extraordinários.

P: Onde o sr. se sente mais a vontade, nos grandes palcos ou nas apresentações mais reservadas e com produção mais tranquila, como essa que vai ser feita em Goiânia? R: Desde meados dos anos 90 estou mais ligado às gravações. Prefiro-as à apresentação pública. É um ledo engano pensar que microfones não captam a alma do intérprete. Tudo está lá. Aos 71 anos dirijo-me à idade da síntese e a gravação tem a magia de registrar o que realmente sinto e penso. Sim, o palco é importante, mas pode tantas vezes representar o culto ao holofote. Sob outro aspecto, desde os anos 80 me apresento em Goiânia. Faz parte de meu universo de afeto.

O Popular (4 de Novembro de 2009)

Pergunta: O que pesa mais na hora de escolher o repertório de seus concertos? Resposta: Habitualmente, o intérprete herda repertório sacralizado. Se considerarmos o amplo leque a abranger as salas de concerto em países que acatam a música denominada clássica ou erudita, verificamos que uma parte do repertório, bem menor do que a ponta de um iceberg, é apresentada em público. Ousaria dizer que não ultrapassa um dígito o percentual do qualitativo apresentado para as platéias ávidas por ouvir sempre as mesmas obras e, de preferência, os mesmos intérpretes. Até os 30 e tais anos aprendi e toquei muito o repertório super tradicional, importantíssimo para a formação de todo pianista. Mas, a uma certa altura, parei de tocar por três anos. Ao retornar, em fins dos anos 60, a escolha estava feita. Só estudaria aquilo de que gostasse e um imenso universo se abriu.

P: Há uma crítica frequente de que nossas escolas pouco estudam e executam os compositores brasileiros. O senhor comunga dessa visão? R: Não é bem assim. Toca-se sempre as mesmas obras, de Villa-Lobos, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri e tantos outros. Mas toca-se. Não há a vontade por parte de tantos professores de sondar o inusitado, e ele existe. Estou a me lembrar de Henrique Oswald, o nosso grande compositor romântico. Quando iniciei os meus estudos relativos à sua obra e à sua vida em 1978, tocava-se dele para piano duas ou três peças apenas. Isso é fato. Minha tese de doutorado foi sobre Oswald, no longínquo 1988. Gravei cinco LPs no Brasil e três CDs no Exterior contendo expressiva parcela de sua obra de câmara e para piano solo. Presentemente, mais de uma dezena de teses e gravações esparsas estão a apontar para um caminho que deu certo.

P: O senhor se aposentou na USP, mas há ainda alguma relação extemporânea com a universidade ou outras universidades? R: Tenho ainda um orientando, que defenderá sua dissertação de mestrado, e três alunos de graduação. Por motivos pessoais, após a compulsória dou as aulas em minha casa e no fim do semestre repasso as notas à secretaria. Brevemente estarei totalmente sem relação com a Universidade de São Paulo. Convites recebo, como o presente, mas raríssimos. No Exterior não houve a menor descontinuidade, e continuo a tocar e dar palestras em Universidades como em Évora, Coimbra, Minho em Portugal, Sorbonne em França e outras salas de concerto da Europa. Se tenho artigos a escrever para o Exterior para revistas e livros arbitrados, sinto-me, sob outro aspecto, liberto das amarras, tantas vezes inócuas, do jargão acadêmico. Meu blog semanal, ininterruptamente escrito desde Março de 2007, é prova.

P: Seu site é uma iniciativa que destoa da relação que os artistas do meio erudito têm com a tecnologia, não? R: Estava na antecâmara da aposentadoria. Hoje, como a música, o blog tem sido respiração. Curiosamente, os temas e desenvolvimentos surgem quando corro pelas ruas três vezes por semana. Já participei de dez provas oficiais, inclusive da São Silvestre. Deverei chegar em São Paulo no sábado à noite e já às seis da manhã estarei em Interlagos para a Maratona de Revezamento. Nossa equipe tem o sugestivo nome TA LENTOS. Já estou inscrito para a próxima São Silvestre em seu percurso de 15km.

P: O senhor mantém ainda seu programa de rádio? R: De 1993 até 2004 fui o coordenador de Tempo de Concerto, da Rádio USP-FM. Quando acometido de um câncer com prognósticos sombrios passei a coordenação ao grande violonista e professor Edelton Gloeden, dileto e fiel amigo. Continuei a apresentar contudo meu programa. Meses atrás, sentimos pressões quanto à programação, que apresentou não apenas infindável coleção de CDs inéditos como entrevistas extraordinárias durante 16 anos. Pedimos o desligamento. Foi tudo. Havia sim interação e o público escrevia-nos, o que resultava em forte estímulo. Mas há os tempos do Eclesiastes. Quanto ao público, está a haver diminuição. Diria natural, devido à estrondosa ascensão de outras manifestações “musicais”.

P: Acha que o impacto das novas tecnologias (o MP3 em especial) sobre o consumo da música de concerto é igual ao da música popular? R: Diria, outro tipo de impacto. Ajudará contudo a divulgação maior da música de concerto.

P: Em seu blog, o senhor citou o pianista Oscar Levant, dizendo que na guerra das vaidades do meio gostava mais de ser considerado segundo melhor pianista que o melhor. Quem o senhor acha o melhor “segundo pianista” brasileiro hoje? R: O drama é o holofote. Na medida que ele se torna o epicentro, nada a fazer. Pode o intérprete ser hábil virtuose, o público incensar, mas e a música, onde ficaria em sua mente? Acredito que desde que apenas o compositor a ser interpretado seja a essência, o pianista, no caso, deixa de preocupar-se com ser ou não “o melhor”. A arte pianística não pode ser julgada objetivamente, como no caso do atletismo. A mídia e os empresários podem induzir o público a entender quais os melhores. Todavia, se não houver a plena identificação com a profundidade musical, haverá sempre uma lacuna, mesmo que salas fiquem repletas e luzes iluminem mais acentuadamente determinados músicos. Sinceridade e fidelidade relacionadas à música. Poderia acrescentar que, fora desses parâmetros, vive-se na ilusão. E a ilusão é a aparência da verdade.

P: E os novos projetos? há novas gravações em vista? concertos fora do país, publicações etc.? R: Jean Philippe Rameau é um imenso compositor. Gravei na Bulgária a sua obra completa para teclado, que foi lançada em duplo CD na Bélgica, pelo selo De Rode Pomp. Dentro de alguns dias haverá o lançamento desse álbum em São Paulo pela Clássicos Editorial. Dias após será a vez de meu segundo livro de textos publicados no blog: Crônicas de um Observador (II). Até 2012 tenho apresentações, gravações e atividades musicais na Bélgica, Portugal e em França. Os projetos surgem. Aos 71 anos, tenho sempre esperanças.

The city of Goiânia, in the Central-West of Brazil, is the capital of the state of Goiás. It is only 76 years old, with plenty of green areas and intense musical life. I’ve been playing regularly in Goiânia for the last 20 years and have strong bonds of affection with the city. In this post I give an account of my last visit two weeks ago for a recital, a talk to students of the Universidade Federal de Goiás (UFG) and to take part, as member of the jury, of the New Talents Competition – 2009 of EMAC (School of Music and Performing Arts of UFG). I also transcribe the interviews I gave for two of the major newspapers of Goiânia.