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O prazer de tocar

Nesta semana que ora finda dei recital em Goiânia. Semana que viu meu velho computador exalar seu último suspiro e definitivamente sucumbir. No regresso a São Paulo devo imediatamente adquirir um outro, fato esse que resulta na não inclusão de imagens do recital. Porém, durante os próximos dias penso inseri-las no presente post.

Retornar a Goiânia é sempre motivo de real alegria. Foram tantas as visitas à bela cidade desde décadas atrás, sempre em atividades musicais: recitais, cursos e júris relacionados à pós-graduação. Goiânia integra meu universo de afetos e as amizades acalentadas durante decênios apenas dimensionam a admiração pela cidade como um todo.

Na programação “Concertos Didáticos para Juventude”, projeto acalentado por duas admiráveis professoras da Universidade Federal de Goiás, Gyovana Carneiro e Ana Flávia Frazão (nesse espaço já analisei o extraordinário CD no qual Ana Flávia se mostra uma pianista camerista de primeira linha), há sempre uma prévia explanação das obras a serem interpretadas. Quando realizadas com conhecimento pleno da arte musical, a transmissão mostra-se rigorosamente confiável, como no presente caso. Apresentei recital inteiramente dedicado a Claude Debussy. Selecionei obras que interpretei nos dois programas Debussy na recente turnê em Portugal. Contudo, na atual apresentação a mágica La Boîte à Joujoux teve um fator novo, pois meu dileto amigo, o notável musicólogo português José Maria Pedrosa Cardoso, encantado com a obra, surpreendeu-me ao preparar um data show contendo as frases do pintor e desenhista André Héllé, autor das aquarelas e do texto que tanto agradaram a Debussy para a concretização de sua La Boîte à Joujoux. Nesse datashow, Pedrosa Cardoso apresenta o texto em francês, traduzindo-o também para nossa língua. Ficou harmonioso, pois, como bem observou, não utilizou as aquarelas que situam momentos específicos da história delicada e pueril. Entendeu as frases que posicionam La Boîte… como excelsa criação programática – que pode ter sua sequência acompanhada por enredo -, mas podendo ficar dispersa para o ouvinte ao ter imagens acopladas. Isso se verifica pelo fato de que cada imagem capta uma parcela da história, enquanto as frases estão sempre a acompanhar o desenrolar do enredo. Debussy, ao criar La Boîte à Joujoux, pensou-a inicialmente para ter esse encantador ballet realizado por marionetes. Anteriormente Pedrosa Cardoso criara três excelentes data shows para as Sonatas Bíblicas de Johann Kuhnau, as Trente Six Histoires pour amuser les enfants d’un artiste, do compositor português Francisco de Lacerda (1869-1934), e as Viagens na Minha Terra, de Fernando Lopes-Graça (na íntegra no YouTube).

Nesse espaço inúmeras vezes já comentei que agenciadores e sociedades de concerto têm receio do novo, promovendo-o esporadicamente como ato de “benevolência”. Repertórios repetidos em excesso representam o que de mais repisado pode existir. Tem sido incrível a recepção à parcela da obra de Debussy que estou a apresentar, basicamente desconhecida do grande público. Após os recitais, tanto nas várias cidades portuguesas como em Goiânia, alunos e professores vieram pedir-me cópias das partituras, tão grande o entusiasmo pelas extraordinárias composições basicamente ignotas de Debussy. Entendo a repetição repertorial como hábito ou mesmo processo na carreira de um artista, algo que tem de ser repensado. Há a necessidade imperiosa de se abrir o leque.

Penso retornar a Goiânia. Minha ex-aluna num dos cursos que ofereci na pós-graduação na USP no início dos anos 1990, a dinâmica e competente Gyovana Carneiro mantém-se fidelíssima e traz a este velho professor periodicamente o convite para recitais em sua cidade. Bem haja.

 

 

Emoções renovadas

Vivemos quase sempre fora de nós, e a mesma vida é uma perpétua dispersão.
Porém é para nós que tendemos, como para um centro em torno do qual fazemos,
como os planetas, elipses absurdas e distantes.
Fernando Pessoa
(“Livro do Desassossego”)

De retorno à minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, comento a turnê em Portugal e apresento algumas fotos enviadas por amigos que estiveram nos eventos programados. Não poucas vezes posicionei-me em posts sobre a escolha seletiva que o acúmulo das décadas proporciona. Diria que Portugal, Bélgica e França fazem parte de meu universo de afetos perenes. No pórtico dos oitenta anos entendo também o tempo insubornável no dizer de Guerra Junqueiro e o caminho a ser trilhado inexoravelmente mais estreito. Elege-se pois a geografia, congraça-se com as amizades acalentadas durante decênios, encontra-se o verdadeiro pacto que só o longo percurso pode propiciar. Em nosso país apresento-me pouquíssimas vezes, quando convidado. A voluntária posição de jamais ter tido um empresário deu-me a independência de recusar convites para realizar expressamente determinadas obras, desde que minha consciência estivesse contrária. Se, após ter percorrido parcela do repertório sacralizado, retornando homeopaticamente a ele em momentos que me aprazem, é certo que a liberdade de escolha desde os trinta e poucos anos possibilitou-me apenas interpretar aquilo que realmente me tocava fundo, mesmo que a correr o risco da pouca divulgação. Quantas não foram as criações executadas sabendo eu previamente que a guarida poderia ser pequena, mas a entender o mérito indiscutível da composição eleita? Necessária a divulgação, mesmo que incerta a apreensão por parte de professores, alunos e intérpretes.

Durante muitos anos centrei-me preferencialmente no repertório de países eleitos, do barroco à contemporaneidade. Creio ser imperioso integrar-se a determinadas correntes da modernidade. Diversas delas, em suas “teorias”, adequam-se a cada intérprete em sua individualidade essencial. As permanentes visitas a Portugal, que já atingem cerca de 50, testemunham minha confessa admiração pela música criada por compositores nascidos em terras lusíadas, do barroco aos nossos dias. Infelizmente, mercê da supremacia econômica de países mais ao norte e do pouco interesse do governo português para que o repertório lusíada penetre outros rincões, alhures pouco se toca da produção musical erudita ou de concerto de Portugal. No hemisfério sul, o Brasil ignora solenemente o que se criou musicalmente em Portugal durante séculos. Estivesse o governo português realmente interessado na divulgação da produção do país, fomentaria com empenho a editoração composicional mantida em arquivos públicos, a facilitar a sua divulgação, estimulando músicos a interpretá-la assiduamente no Exterior. Quantas não são as riquezas do repertório português que permanecem nos arquivos em seus manuscritos? Os séculos de grande música portuguesa têm de entrar significativamente nos repertórios mundiais. Ouvi, na morada do ilustre musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso e de sua esposa Manuela, onde nos hospedamos, o monumental “Te Deum” de António Teixeira (1707-1774). Essa extraordinária criação (1734), escrita para ser interpretada no último dia do ano, destina-se a cinco coros, oito solistas e orquestra. O vídeo, gravado na Igreja de São Roque, fascina pela qualidade ímpar da criação e pelo empenho dos músicos sob a direção de Jorge Matta. Anteriormente, o celebrado Harry Christophers já o havia gravado. Pedrosa Cardoso debruça-se presentemente sobre os “Te-Déuns” de João de Souza Carvalho (1745-1798). Dever-se-ia fazer um esforço hercúleo para que se tornasse natural intérpretes portugueses tocarem a música portuguesa fora de suas fronteiras. Se pianistas destacados como Sequeira Costa e Artur Pizzarro gravaram obras referenciais portuguesas, saliente-se António Rosado, que desenvolveu projetos magníficos em torno do compositor Fernando Lopes-Graça, gravando as seis “Sonatas”, as oito suítes progressivas “In Memoriam Bela Bartók” e as 23 “Músicas Festivas”. De outro lado, a consagrada pianista portuguesa mais ventilada no Exterior, Maria João Pires, teria, durante sua trajetória de repercussão mundial, prestado contributo essencial à cultura musical lusíada se tivesse apresentado em seus recitais pelo planeta criações de seu país, mormente as do compositor conimbricense Carlos Seixas (1704-1742), cujas sonatas não são inferiores às do genial Domenico Scarlatti (1685-1757) e que certamente teriam nela uma intérprete expressiva. Não o fez e, se o fizesse, certamente Seixas estaria no repertório de tantos conservatórios espalhados pelo planeta e desses para as milhares de salas distribuídas pelos países. Seria possível supor que agentes e sociedades de concerto tenham proposto à intérprete repertórios mais atraentes ao público, que está permanentemente habituado ao repetitivo. Faz-se imperativo agudizar a divulgação das criações excelsas portuguesas au-delà de seu território.

Na turnê concentrada que ora finda não apresentei repertório português, apesar de duas efemérides relevantes em Portugal, o sesquecentenário de José Vianna da Motta (1868-1948) e o centenário do jovem compositor António Fragoso (1897-1918), falecido precocemente vítima da gripe espanhola. Celebrei o centenário de morte de Claude Debussy. Desde a década de 1980, quando realizei paulatinamente a integral da obra para piano de Debussy em Portugal, não privilegiava apresentações monolíticas a ele dedicadas. Afirmei em posts anteriores que apresentaria tão somente criações do grande compositor francês pouco interpretadas pelos pianistas, exceção a “Masques” e “L’Isle Joyeuse”, sendo que na palestra ilustrada obras reverenciadas pelo público tiveram guarida.

Comentei anteriormente as apresentações em Tomar e Guimarães nos dias 10 e 12, respectivamente. Na semana seguinte foram duas palestras diferenciadas, a primeira (15) ilustrada por interpretações de obras de Debussy no piano que pertenceu à insigne Júlia d’Almendra, fundadora do Centro Ward de Lisboa, hoje muito bem conduzido pela discípula da mestra, Idalete Giga.

A segunda (17), palestra ilustrada por gravações que realizei na Bulgária e sobretudo na Bélgica. Deu-se na Academia Senior da Cruz Vermelha da Parede. Impressionou-me o fato de que muitos presentes ouviram o consagrado programa da RTP, Antena 2, gravado um dia antes e tão bem conduzido por Paulo Guerra, o que corrobora a divulgação pelo território português de uma programação unicamente voltada à Cultura.

Chamou-me a atenção o numeroso público que compareceu ao último recital no dia 19, dia dos Museus, no qual também, a seguir a programação anunciada, apenas interpretei composições de Debussy, com exceção de Sinergia, criação de seu conterrâneo François Servenière (1961- ), dedicada in memoriam ao grande compositor homenageado.

Ainda houve tempo para uma longa visita ao Museu da Música Portuguesa juntamente com meu dileto amigo e notável musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso. Previamente solicitei à Dra. Conceição Correia, impecável coordenadora do Centro de Documentação, e que tem prestado serviço inestimável à música portuguesa, a fotocópia na coloração original de importante coletânea do grande compositor Fernando Lopes-Graça, já por mim gravada, a fim de revisão com vistas à edição. Já o fizera anteriormente quando da edição que realizei de “Canto de Amor e de Morte”, obra por mim gravada e editada.

Revisitar Portugal seguidamente durante tantas décadas tem sido uma das mais gratificantes alegrias na minha já longa existência. Desde a juventude acredito na qualidade da criação musical portuguesa. Apesar de apresentar e ter gravado pequena parcela dessa produção no Exterior (seis CDs), é com pesar que assisto à indiferença – salvo raríssimas exceções – de nosso meio musical brasileiro em relação à obra musical vinda das terras lusíadas. Há realmente um descaso quanto a ela. Repetem-se programas à exaustão, largamente dedicados aos compositores consagrados europeus, mas curiosamente abordando a extrema ponta do iceberg. O receio de se ouvir o inusitado persiste. O público responde com cautela, por vezes com indiferença. É fato. Só creio em mudanças, que poderiam ocorrer, caso houvesse uma outra mentalidade. Todavia, o Sistema teria de mudar. Quando compositores menos conhecidos são apresentados – espécie de “benevolência” por parte de agentes, sociedades de concerto e intérpretes -, autores de Portugal não figuram. Nada a fazer, pois as mentes não se abrem.

A few comments on my last tour in Portugal and also on the quality of the Portuguese classical music, which in my view deserves better promotion in Brazil and abroad.

Duas apresentações emotivas e diferenciadas

Sob a direção segura da competente educadora, gregorianista e regente coral Idalete Giga, o Centro Ward de Lisboa desenvolve um comovente trabalho de divulgação de uma das mais importantes manifestações da música, o Canto Gregoriano, apesar de todas as dificuldades nessa atualidade voltada ao efêmero. Criado em 1988 pela notável Júlia d’Almendra, figura referencial na música portuguesa e presente em vários posts anteriores, o Centro Ward de Lisboa promove inúmeras atividades educacionais voltadas ao canto coral, mormente o sacro.

Convidado para uma palestra ilustrada em torno de Claude Debussy (dia 15), foi com imensa alegria e emoção que adentrei as dependências do Centro. Aguardava-me um velho conhecido, o piano de armário de Júlia d’Almendra, de cor preta e da marca berlinense Weber. Nele, durante dez anos, sempre que vinha a Portugal para recitais (1982-1991) estudava minhas horas necessárias, abrigado que era na morada da saudosa e ilustre amiga. Debussysta respeitada, é autora de livro fundamental publicado em França em 1948 – “Les Modes Grégoriens dans l’oeuvre de Claude Debussy” -, uma profunda investigação sobre a origem de modos gregorianos na obra do mestre francês. Mantivemos, durante as visitas anuais a Portugal, extraordinários diálogos sobre processos composicionais debussynianos. Como comentei em posts precedentes, Júlia escreveu o prefácio de meu livro “O Som Pianístico de Claude Debussy” (1982) e acompanhava-me quando de meus recitais pelas terras lusíadas. Minha gratidão é eterna à diletíssima amiga.

Não esperava emoção tão intensa. Após a palestra, interpretei algumas obras importantes de Debussy que se relacionavam ao tema proposto, à qualidade do som e à busca empreendida pelo compositor direcionada a uma nova “química harmônica” a partir de “Reflets dans l’eau”, peça que apresentei. À medida que interpretava, um turbilhão de recordações não podia deixar de afluir. Lembro-me de que minhas turnês davam-se durante o inverno e inúmeras vezes estudava de madrugada no piano de Júlia. Como o instrumento não possuía o pedal que aciona o feltro para atenuar sensivelmente o som, colocava meu cachecol sobre os martelos, de tal maneira que o piano se tornava completamente mudo e, assim, podia varar a madrugada. Estou a me lembrar que, em determinado ano, apresentei em uma semana quatro recitais diferentes na cidade de Lisboa. Arroubos da juventude da idade madura.

No dia 16 fui entrevistado pelo excelente Paulo Guerra da RTP para consagrado programa da Antena 2. Discorremos sobre Debussy e a efeméride do centenário, assim como a respeito do grande, pianista, compositor e professor português, José Vianna da Motta (1868-1948). Esteve no Brasil várias vezes entre 1896 a 1926 e privou da amizade de Henrique Oswald, Alberto Nepomuceno e de outros músicos pátrios. Brevemente escreverei post sobre o extraordinário músico. Idalete Giga acompanhou-me, tecendo comentários sobre sua mestra Júlia d’Almendra e o envolvimento pleno com a obra de Debussy a partir da modalidade. A gravação da longa entrevista foi compartimentada em dois programas apresentados nos dias 17 e 18. Com ampla divulgação recebi inúmeras mensagens de ouvintes que tiveram acesso ao programa transmitido durante as manhãs pelo território português.

Dei uma palestra no dia 17 na Academia Senior da Cruz Vermelha da Parede. O tema versou sobre o intérprete na era da internet, da imagem e da mídia comprometida por tantos fatores estranhos. Convidado pelo ilustre professor José Maria Pedrosa Cardoso houve a possibilidade de considerarmos a influência dos processos mediáticos junto ao intérprete. A recepção foi muito atenta.

Como sempre, o blog entra aos sábados, cinco minutos após a meia-noite. Mercê dessa circunstância, comentarei a apresentação no Museu Nacional da Música, que se dará neste dia 19, no próximo blog. Iniciarei o recital com uma homenagem do compositor e pensador francês François Servenière ao seu insigne conterrâneo. A seguir tocarei unicamente criações de Debussy. Fotos da turnê ilustrarão o post.