Emoções renovadas

Vivemos quase sempre fora de nós, e a mesma vida é uma perpétua dispersão.
Porém é para nós que tendemos, como para um centro em torno do qual fazemos,
como os planetas, elipses absurdas e distantes.
Fernando Pessoa
(“Livro do Desassossego”)

De retorno à minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, comento a turnê em Portugal e apresento algumas fotos enviadas por amigos que estiveram nos eventos programados. Não poucas vezes posicionei-me em posts sobre a escolha seletiva que o acúmulo das décadas proporciona. Diria que Portugal, Bélgica e França fazem parte de meu universo de afetos perenes. No pórtico dos oitenta anos entendo também o tempo insubornável no dizer de Guerra Junqueiro e o caminho a ser trilhado inexoravelmente mais estreito. Elege-se pois a geografia, congraça-se com as amizades acalentadas durante decênios, encontra-se o verdadeiro pacto que só o longo percurso pode propiciar. Em nosso país apresento-me pouquíssimas vezes, quando convidado. A voluntária posição de jamais ter tido um empresário deu-me a independência de recusar convites para realizar expressamente determinadas obras, desde que minha consciência estivesse contrária. Se, após ter percorrido parcela do repertório sacralizado, retornando homeopaticamente a ele em momentos que me aprazem, é certo que a liberdade de escolha desde os trinta e poucos anos possibilitou-me apenas interpretar aquilo que realmente me tocava fundo, mesmo que a correr o risco da pouca divulgação. Quantas não foram as criações executadas sabendo eu previamente que a guarida poderia ser pequena, mas a entender o mérito indiscutível da composição eleita? Necessária a divulgação, mesmo que incerta a apreensão por parte de professores, alunos e intérpretes.

Durante muitos anos centrei-me preferencialmente no repertório de países eleitos, do barroco à contemporaneidade. Creio ser imperioso integrar-se a determinadas correntes da modernidade. Diversas delas, em suas “teorias”, adequam-se a cada intérprete em sua individualidade essencial. As permanentes visitas a Portugal, que já atingem cerca de 50, testemunham minha confessa admiração pela música criada por compositores nascidos em terras lusíadas, do barroco aos nossos dias. Infelizmente, mercê da supremacia econômica de países mais ao norte e do pouco interesse do governo português para que o repertório lusíada penetre outros rincões, alhures pouco se toca da produção musical erudita ou de concerto de Portugal. No hemisfério sul, o Brasil ignora solenemente o que se criou musicalmente em Portugal durante séculos. Estivesse o governo português realmente interessado na divulgação da produção do país, fomentaria com empenho a editoração composicional mantida em arquivos públicos, a facilitar a sua divulgação, estimulando músicos a interpretá-la assiduamente no Exterior. Quantas não são as riquezas do repertório português que permanecem nos arquivos em seus manuscritos? Os séculos de grande música portuguesa têm de entrar significativamente nos repertórios mundiais. Ouvi, na morada do ilustre musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso e de sua esposa Manuela, onde nos hospedamos, o monumental “Te Deum” de António Teixeira (1707-1774). Essa extraordinária criação (1734), escrita para ser interpretada no último dia do ano, destina-se a cinco coros, oito solistas e orquestra. O vídeo, gravado na Igreja de São Roque, fascina pela qualidade ímpar da criação e pelo empenho dos músicos sob a direção de Jorge Matta. Anteriormente, o celebrado Harry Christophers já o havia gravado. Pedrosa Cardoso debruça-se presentemente sobre os “Te-Déuns” de João de Souza Carvalho (1745-1798). Dever-se-ia fazer um esforço hercúleo para que se tornasse natural intérpretes portugueses tocarem a música portuguesa fora de suas fronteiras. Se pianistas destacados como Sequeira Costa e Artur Pizzarro gravaram obras referenciais portuguesas, saliente-se António Rosado, que desenvolveu projetos magníficos em torno do compositor Fernando Lopes-Graça, gravando as seis “Sonatas”, as oito suítes progressivas “In Memoriam Bela Bartók” e as 23 “Músicas Festivas”. De outro lado, a consagrada pianista portuguesa mais ventilada no Exterior, Maria João Pires, teria, durante sua trajetória de repercussão mundial, prestado contributo essencial à cultura musical lusíada se tivesse apresentado em seus recitais pelo planeta criações de seu país, mormente as do compositor conimbricense Carlos Seixas (1704-1742), cujas sonatas não são inferiores às do genial Domenico Scarlatti (1685-1757) e que certamente teriam nela uma intérprete expressiva. Não o fez e, se o fizesse, certamente Seixas estaria no repertório de tantos conservatórios espalhados pelo planeta e desses para as milhares de salas distribuídas pelos países. Seria possível supor que agentes e sociedades de concerto tenham proposto à intérprete repertórios mais atraentes ao público, que está permanentemente habituado ao repetitivo. Faz-se imperativo agudizar a divulgação das criações excelsas portuguesas au-delà de seu território.

Na turnê concentrada que ora finda não apresentei repertório português, apesar de duas efemérides relevantes em Portugal, o sesquecentenário de José Vianna da Motta (1868-1948) e o centenário do jovem compositor António Fragoso (1897-1918), falecido precocemente vítima da gripe espanhola. Celebrei o centenário de morte de Claude Debussy. Desde a década de 1980, quando realizei paulatinamente a integral da obra para piano de Debussy em Portugal, não privilegiava apresentações monolíticas a ele dedicadas. Afirmei em posts anteriores que apresentaria tão somente criações do grande compositor francês pouco interpretadas pelos pianistas, exceção a “Masques” e “L’Isle Joyeuse”, sendo que na palestra ilustrada obras reverenciadas pelo público tiveram guarida.

Comentei anteriormente as apresentações em Tomar e Guimarães nos dias 10 e 12, respectivamente. Na semana seguinte foram duas palestras diferenciadas, a primeira (15) ilustrada por interpretações de obras de Debussy no piano que pertenceu à insigne Júlia d’Almendra, fundadora do Centro Ward de Lisboa, hoje muito bem conduzido pela discípula da mestra, Idalete Giga.

A segunda (17), palestra ilustrada por gravações que realizei na Bulgária e sobretudo na Bélgica. Deu-se na Academia Senior da Cruz Vermelha da Parede. Impressionou-me o fato de que muitos presentes ouviram o consagrado programa da RTP, Antena 2, gravado um dia antes e tão bem conduzido por Paulo Guerra, o que corrobora a divulgação pelo território português de uma programação unicamente voltada à Cultura.

Chamou-me a atenção o numeroso público que compareceu ao último recital no dia 19, dia dos Museus, no qual também, a seguir a programação anunciada, apenas interpretei composições de Debussy, com exceção de Sinergia, criação de seu conterrâneo François Servenière (1961- ), dedicada in memoriam ao grande compositor homenageado.

Ainda houve tempo para uma longa visita ao Museu da Música Portuguesa juntamente com meu dileto amigo e notável musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso. Previamente solicitei à Dra. Conceição Correia, impecável coordenadora do Centro de Documentação, e que tem prestado serviço inestimável à música portuguesa, a fotocópia na coloração original de importante coletânea do grande compositor Fernando Lopes-Graça, já por mim gravada, a fim de revisão com vistas à edição. Já o fizera anteriormente quando da edição que realizei de “Canto de Amor e de Morte”, obra por mim gravada e editada.

Revisitar Portugal seguidamente durante tantas décadas tem sido uma das mais gratificantes alegrias na minha já longa existência. Desde a juventude acredito na qualidade da criação musical portuguesa. Apesar de apresentar e ter gravado pequena parcela dessa produção no Exterior (seis CDs), é com pesar que assisto à indiferença – salvo raríssimas exceções – de nosso meio musical brasileiro em relação à obra musical vinda das terras lusíadas. Há realmente um descaso quanto a ela. Repetem-se programas à exaustão, largamente dedicados aos compositores consagrados europeus, mas curiosamente abordando a extrema ponta do iceberg. O receio de se ouvir o inusitado persiste. O público responde com cautela, por vezes com indiferença. É fato. Só creio em mudanças, que poderiam ocorrer, caso houvesse uma outra mentalidade. Todavia, o Sistema teria de mudar. Quando compositores menos conhecidos são apresentados – espécie de “benevolência” por parte de agentes, sociedades de concerto e intérpretes -, autores de Portugal não figuram. Nada a fazer, pois as mentes não se abrem.

A few comments on my last tour in Portugal and also on the quality of the Portuguese classical music, which in my view deserves better promotion in Brazil and abroad.