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O encerramento de importante publicação

Talvez as minhas melhores coisas se devam
à existência sombria que levei até agora,
e talvez a minha vida, medíocre em termos do metal,
seja mais propícia à invenção do que
ao amolecimento dos dias despreocupados,
em que a seda adormecedora tece em torno do cérebro
pensamentos de uma vida segura.
Claude Debussy (1862-1918)
(1892)

O “Centre de Documentation Claude Debussy”, em Paris, foi certamente o mais relevante centro de pesquisas sobre o compositor francês Claude Debussy (1862-1918) em termos mundiais. Criado em 1972 pelo notável musicólogo e bibliotecário François Lesure (1923-2001), diretor do departamento de Música da Bibliothèque Nationale, o Centro foi responsável por várias atividades, entre as quais se destacam as publicações sobre Debussy. Lesure criou os Cahiers Debussy, editado desde 1977, que teve ao longo das décadas 39 números publicados.

Em conversa recente com Myriam Chimènes, ilustre musicóloga francesa, autora de extensa e indispensável bibliografia e que esteve à frente da Comissão de redação dos Cahiers Debussy, soube da desativação da publicação. Tendo, ao longo de duas décadas, colaborado com seis artigos, e havendo um número considerável de exemplos musicais neles inseridos, dedicarei os próximos cinco blogs – exceptuando um que é de ordem técnico-pianística – à síntese de cada conteúdo. A ausência compreensível de exemplos musicais neste espaço será substituída por gravações de obras referentes aos textos.

Durante meu convívio com o “Centre de Documentation Claude Debussy” desde o início dos anos 1980, quando de minhas visitas anuais à Europa, mormente para apresentações pianísticas, pesquisas e gravações, estas a partir dos anos 1990, apreendi o valor absoluto de François Lesure, que cuidou igualmente da organização de núcleos de trabalho constituídos por musicólogos de várias nacionalidades. Foi para mim um privilégio muito grande ter tido, ao longo de duas décadas, contatos permanentes com o eminente musicólogo, que me convidou para seminários sobre  pesquisas em andamento a respeito de Debussy diante do seu grupo de trabalho na “École Pratique des Hautes Études”. Esteve três vezes no Brasil para palestras, a convite da Universidade de São Paulo, tendo participado igualmente da banca examinadora de minha Livre Docência na USP, cujo tema versou sobre o “Idiomático técnico-pianístico na obra de Claude Debussy”.

Ao longo dos anos, os Cahiers Debussy publicaram pesquisas originais que estavam sendo realizadas em vários rincões do planeta. A leitura dos títulos desses artigos bem evidencia a pluralidade de temas tratados, material esse que serve de apoio às pesquisas em andamento e futuras. Realizadas por musicólogos dos vários continentes, essas contribuições enriqueceram os conhecimentos sobre a trajetória de Debussy, estimulando, sob outra égide, não só a avaliação crítica de sua obra, mas igualmente as consequências do seu legado na composição que adveio após a sua morte.

Apresentarei, nos cinco blogs seguintes, a síntese de artigos meus publicados nos Cahiers Debussy. Esses artigos ou apresentam a relação musical com compositor por ele eleito, Moussorgsky (1839-1881), ou a atmosfera musical e poética que o aproxima, em determinado período, a um compositor dele contemporâneo, Alexandre Scriabine (1872-1915), ou a relação de amizade em determinado período com Francisco de lacerda (1869-1934), ou mesmo a presença inequívoca de ideias “extraídas” de obras precedentes de Debussy nas suas duas Sonatas compostas em 1915.

A primeira colaboração focalizou as comparações da linguagem pianística de Debussy e Scriabine, na qual podem ser apreendidas diversas proximidades surgidas em períodos tardios entre os dois compositores que não se conheceram, não havendo qualquer registro escrito em cartas ou bilhetes. Todavia, detectam-se, no discurso musical dos dois, algumas ligeiras semelhanças na escrita musical, mas preferencialmente, de maneira acentuada, nos termos inseridos nas partituras e que servem de guia segura para a interpretação (Cahiers Debussy – nouvelle série nº 7 -1983).

Quanto à segunda colaboração, focalizo a nítida e confessa admiração de Debussy pela obra de Moussorgsky (1839-1881). Não poucas vezes, em artigos e cartas, o apreço do compositor francês se faz presente. A pesquisa esteve relacionada aos Quadros de uma Exposição, obra maiúscula de Moussorgsky, e La Boîte à Joujoux, ambas para piano, e não poucas vezes Debussy deve ter se lembrado do compositor russo (Cahiers Debussy – Nouvelle série nº 9 (1985).

O terceiro artigo estuda a presença de lembranças de La Boîte à Joujoux (1913) nas duas Sonatas de Debussy – para violoncelo e piano e para violino e piano (1915) ―, máxime na parte reservada ao piano, tema igualmente inédito (Cahiers Debussy – Nouvelle série, nº14 (1990).

Um quarto artigo é reservado aos poucos dedilhado inseridos por Debussy nos manuscritos. No prefácio da edição dos 12 Études, o compositor escreve: “Busquemos nossos dedilhados”. Pelo fato de ser um tema muito técnico, contendo 26 exemplos, declinarei de dedicar blog específico (Cahiers Debussy – nº19, 1995).

Clique para ouvir, de Claude Debussy, Étude nº 11, Pour les arpèges composés, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=VCAH8fYHjSo

O artigo sobre a correspondência sonora entre Debussy e Francisco de Lacerda (1869-1934) evidencia os resultados da grande admiração do compositor português nascido nos Açores pelas criações de Debussy, como bem mostram as Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste (1902-1922). Anteriormente, Debussy emprestara um tema de Lacerda para a primeira das Danças, Danse sacré et Danse profane (1904).

O sexto artigo reproduz, na íntegra e com comentários, as três últimas cartas escritas pela filha de Debussy, Chouchou, à sua última professora de piano, Ada Killick. Chouchou morreria de difteria aos 13 anos, um ano após a morte de seu notável pai. Recebi-as do filho de Ada Killick, Gérard Killick, e posteriormente doei-as ao Centre de Documentation Claude Debussy.

As gravações que devo inserir nos cinco futuros blogs possibilitam, através da imagem sonora, descortino a mais de pequena parcela da criação de Claude Debussy.

The end of “Cahiers Debussy”, published by the “Centre de Documentation Claude Debussy” in Paris, which since 1977 has issued 39 volumes with the participation of experts in the field from various continents, brings to an end the dissemination of articles ― mostly unpublished material ― on the remarkable French composer.

Uma história bem documentada

A música escapa a qualquer existência permanente
e só a interpretação pode dar-lhe vida,
uma vida deliciosamente e desesperadamente efêmera.
Marguerite Long (1874-1966)
(“Au piano avec Maurice Ravel”)

Um dos concertos para piano e orquestra mais executados no mundo é certamente o Concerto em sol maior para piano e orquestra, de Maurice Ravel (1875-1937). Após muitos anos, voltei a ouvir, agora via Youtube, uma gravação histórica do referido Concerto para piano com a dedicatária da obra, a lendária pianista Marguerite Long, ao piano e o autor Maurice Ravel a reger a orquestra sinfônica. Realmente uma interpretação excelsa. A gravação foi realizada em 1932 e a tomada de som, longe da qualidade atual, não impede que se depreenda o mérito da interpretação da solista. Em 1952, o Concerto seria regravado com outros recursos sonoros, sendo que Marguerite Long teve a orquestra Lamoureux conduzida por Georges Tzipine (1907-1987), regente da Orquestra Colonne, com quem que tive o privilégio de tocar o Concerto nº 3 de Beethoven em Março de 1960 em Paris.

Na bibliografia de Maurice Ravel, intérpretes renomadas que foram dedicatárias de obras fundamentais do compositor, a saber, a violinista Hélène Jourdan-Morhange (1888-1961), Sonata para violino nº 2, e Marguerite Long, Concerto em sol maior para piano e orquestra, deixaram testemunhos valiosos do convívio com o notável músico. O livro “Marguerite Long au piano avec Maurice Ravel” (Paris, Julliard, 1971) revela a intimidade da pianista com a obra para piano do compositor, máxime sobre o Concerto em sol maior. Marguerite Long aponta as palavras primeiras de Ravel a ela reveladas: “Uma noite, em um jantar na morada de Mme de Saint-Marceaux, cujo salão era ‘um bastão de intimidade artística’, segundo Colette, Ravel me disse à queima roupa: ‘estou no momento compondo um Concerto para você. Se importaria que eu o terminasse em pianíssimo e com trinados?’ Mas certamente, respondi-lhe, muito feliz de realizar o sonho de tantos virtuoses”.

Ravel, após compor o célebre Bolero (1928), passa longo tempo sem criar outras obras. Apesar de pensados em 1929, somente em 1931 nasceriam os dois Concertos para piano e orquestra, bem antagônicos, o Concerto em sol maior e o Concerto para a mão esquerda. Alguns traços comuns, contudo, são evidentes nos dois Concertos, entre os quais lembranças de sua estada nos Estados Unidos concernentes ao jazz e à vida mais agitada, se comparada à sua vivência em França. A um correspondente do Daily Telegraph, Ravel narra a “epopeia” de escrever os dois Concertos tão diferentes: “Foi uma experiência interessante conceber e realizar dois Concertos ao mesmo tempo. O primeiro, no qual participarei como intérprete (na realidade Marguerite Long foi a pianista), é um Concerto no sentido mais exato do termo, escrito no espírito dos Concertos de Mozart e Saint-Saëns. De fato, penso que a música de um Concerto pode ser alegre e brilhante, e que não é necessário que pretenda ter profundidade ou que vise a efeitos dramáticos. Diz-se de alguns grandes músicos clássicos que os seus Concertos são concebidos não para o piano, mas contra ele. De minha parte, considero este julgamento perfeitamente justificado. Inicialmente, tive a intenção de denominá-lo Divertimento. Então refleti que não era necessário, considerando que o título Concerto é suficientemente explícito no que diz respeito ao caráter da música que o compõe. Em certos pontos, o meu Concerto não deixa de apresentar algumas semelhanças com a minha Sonata para violino; traz alguns elementos emprestados do jazz, mas com moderação” (in Alfred Cortot, “La musique française de piano”, deuxième série, Paris, Presses Universitaires de France, 1948).

Mercê de problemas de saúde, Ravel tardou a terminar o Concerto em sol maior, declarando ao seu amigo Zogheb: “Resolvi não mais dormir um segundo sequer. Finda a obra, então repousarei neste mundo… ou em outro”. Ravel, pianista, gostaria de ser o primeiro intérprete, mas, devido às dificuldades técnico-pianísticas reais do Concerto em sol, convidou Marguerite Long para estreá-lo e ela se expressa: “compreenderão qual não foi a minha intensa emoção ao receber o telefonema de Ravel, aos 11 de novembro de 1931, a anunciar a sua vinda imediata à minha casa com o seu manuscrito do Concerto. Estava a me ajeitar quando Ravel chegou repentinamente com as preciosas folhas do Concerto. Confesso que fui diretamente à última página: o pianíssimo e os trinados foram transformados em fortíssimo e percutantes nonas! A obra é árdua, mas o movimento que me deu mais trabalho foi o segundo, aparentemente sem armadilhas”. Estudei com Mme Long o Concerto em sol maior. Disse-me ela que, graças à lenta evolução do segundo movimento e à sua métrica, a possibilidade de falha de memória do pianista ocorre com frequência.

A primeira apresentação mundial se deu em Paris, na Salle Pleyel, aos 14 de Janeiro de 1932. Nessa estreia, Ravel regeu a Pavane, o Boléro e acompanhou o Concerto. Marguerite Long afirma “que não estava tão orgulhosa pelo fato, infelizmente, da sua regência ter sido realizada com a partitura do piano, resultando em uma condução incerta”.

Mme Long escreve: “A Salle Pleyel estava completamente lotada. Tudo correu bem e o sucesso foi considerável, a ponto de termos de repetir o terceiro movimento. Tendo muitas vezes solado o Concerto em sol em França e no estrangeiro, sempre, sem exceção, tivemos de bisar o terceiro movimento”.

Clique para ouvir, de Maurice Ravel, o Concerto em sol maior para piano e orquestra sinfônica, na interpretação de Marguerite Long, sob a regência do compositor (1932):

https://www.youtube.com/watch?v=WSA_MR2Gw_s

Tem interesse o testemunho da pianista ao avaliar o Concerto em sol maior: “Obra-prima autêntica onde a fantasia, o humor, o pitoresco cravam uma das mais tocantes cantilenas que o coração humano jamais sussurrou. Talvez o seu maior encanto resida num conjunto de qualidades que fazem esta obra essencialmente nossa. Colocar as descobertas harmônicas, rítmicas e melódicas mais originais no quadro mais tradicional, despertar os múltiplos setores da nossa sensibilidade com um toque discreto e reservado, falar uma linguagem nova na sombra tutelar de Mozart e Bach, evocar e sugerir sem nunca impor, esconder sempre com pudor a sua própria personalidade e construir tudo com uma perfeição constante e surpreendente foi dar à música uma obra absolutamente francesa”.

Após a grande acolhida pública do Concerto em sol, Maurice Ravel e Marguerite Long partiram em viagem a vários países europeus e as apresentações foram inteiramente dedicadas às criações do compositor. Bélgica, Áustria, Romênia, Hungria, Checoslováquia, Polônia, Alemanha e Holanda aclamaram com o maior entusiasmo as interpretações.

Sob outra égide, no livro mencionado, Marguerite Long escreve sobre os esquecimentos de Ravel no que concerne ao cotidiano nessas viagens pela Europa. “Eu começava, então, a verdadeiramente tomar conhecimento da legendária distração de Ravel, cujo bom humor, a sua melhor característica, contrastava com as consequências às vezes catastróficas de suas imprudências. Juntamente com o cansaço das viagens de comboio, dos concertos, das recepções e das angústias que Ravel me causava frequentemente durante a regência das orquestras, esses incidentes me esgotaram e eu realmente achei que voltaria caquética dessa digressão”! São inúmeros os casos relembrados por Mme Long com boa dose de humor, como esquecer objetos em hotéis, confundir-se com cartas e bilhetes colocados nos bolsos, assim como tantos outros percalços ocasionados também pela distração.

No próximo blog focalizarei o Concerto para a mão esquerda, criação bem contrastante se comparada ao Concerto em sol maior.

After listening to a historic recording of Maurice Ravel’s Concerto in G major for piano and orchestra recorded in 1932, with Marguerite Long, the dedicatee of the work, as pianist and Ravel himself conducting the orchestra, I revisited the book “Au piano avec Maurice Ravel,” written by the legendary pianist.

Organização: Oswaldo Giacoia Junior

Com efeito, para Nietzsche, como para o nosso Machado de Assis,
alguns pensadores nascem póstumos:
a força de seu legado é privilégio dos pósteros.

Oswaldo Giacoia Junior

Sem a música a vida seria um erro
Friedrich Nietzsche

O conhecimento das figuras luminares e perenes se dá essencialmente através das suas obras. Biografias têm importância na medida em que penetram no âmago da trajetória existencial de um autor, pertença ele às mais variadas áreas. Contudo, é através da importância do legado que o personagem ilustre se pereniza.

Oswaldo Giacoia Junior (1954-) é um dos mais relevantes especialistas em filosofia, máxime concernente às obras de Nietzsche, Schopenhauer, Heidegger e Augusto Comte. Professor titular aposentado do Departamento de Filosofia (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor titular do programa de pós-graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Oswaldo Giacoia Junior é autor de várias obras referenciais em sua área de atuação. Teve a grata ideia de organizar precioso livro ao selecionar textos basilares de Friedrich Nietzsche (1844-1900) em “O leitor de Nietzsche” (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2022).

A seleção de segmentos fulcrais extraídos das obras de Nietzsche é precedida por esplêndida introdução do organizador (93 pgs) e de uma bibliografia ampla, antecedida de explicações: “Breve nota histórica sobre a edição crítica das obras completas de Friedrich Nietzsche ‘KGW’, a Edição Colli-Montinari”. A longa introdução do autor e organizador do livro é igualmente didática e conduz o leitor a entender os textos por ele selecionados de maneira clara e objetiva, tornando o percurso dos escritos de Nietzsche reveladores. Os 18 textos inclusos no livro em pauta proporcionam uma visão do pensar do filósofo alemão, a servir de estímulo ao provável aprofundamento do leitor. A salientar a tradução criteriosa realizada por Giacoia.

Mercê do espaço a que me proponho no blog, selecionei dois textos, que se relacionam mais especificamente à relação entre Nietzsche e Richard Wagner (1813-1883). O filósofo Nietzsche foi igualmente músico, pianista e compositor que, apesar de longe da notoriedade como notável pensador, compôs obras de interesse, cerca de 70 criações para piano, canto e piano, orquestra e coral. Tendo uma boa formação pianística, Nietzsche tinha em seu repertório criações de Bach, Haendel, Haydn, Mozart, Beethoven e Chopin. Gostava imenso do compositor polonês. Após a crise mental que o acometeu em 1889, e mesmo posteriormente, internado em uma clínica psiquiátrica em Iena com as atividades cerebrais comprometidas, não deixou de tocar piano e de apreciar Chopin.

Os dois textos de Nietzsche incluídos no livro em apreço, “Considerações Extemporâneas: IV. Richard Wagner em Bayreuth” e “O caso Wagner”, bem posicionam a crítica de Nietzsche a Wagner. Todavia, em dois outros, “Crepúsculo dos Ídolos” e “Ecce Homo”, os segmentos escolhidos por Giacoia não personalizam o compositor da Tetralogia, mas são fundamentais para a apreensão das duas figuras exponenciais. Outras obras filosóficas de Nietzsche também fazem referências à música.

Quando admirador da obra de Wagner, Nietzsche apresentou uma sua composição a Hans von Bülow (1830-1894), ex-marido de Cosima, filha de Liszt e doravante casada com Wagner. Bülow, pianista, professor e regente de várias óperas de Wagner, simplesmente abominou com palavras duras a composição de Nietzsche, “Manfred-Meditation”, criação gestada durante alguns anos, plena da influência de Schumann (Abertura Manfred, op. 115) e de Wagner, mas que, apesar do emprego de processos wagnerianos advindos certamente da grande admiração pela sua obra, tem interesse. O episódio teria consequências no que tange ao respeito àquele que até então era idolatrado. François Noudelmann entende que os ataques de Nietzsche contra Wagner “implicam uma crítica em três níveis: filosófico e histórico, estético e político, psicológico e fisiológico” (vide blog: “Le toucher des philosophes – Sartre, Nietzsche et Barthes au piano” 20/10/2012).

Clique para ouvir, de Nietzsche, “Manfred-Meditation” 1872) para piano a quatro mãos, na interpretação do duo John Bell Young e Thomas Coote:

https://www.youtube.com/watch?v=vcvINsq1KSw

As críticas de Nietzsche a Wagner se acentuaram com o passar do tempo. Oswaldo Giacoia comenta: “Para Nietzsche, a conclusão da tetralogia do Anel de Nibelungo com o Parsifal reconstitui a saga do próprio Wagner, que é também a rendição total da obra de arte aos ideais ascéticos, um testemunho em grande estilo da sublimação da ascese na moderna cumplicidade velada entre a ciência, a moral utilitarista, a política e a arte operística (arte da recreação), todas elas figuras espirituais do niilismo, da nostalgia pelo nada, do cansaço e da impotência ressentida”. O “Anel de Nibelungo” corresponde a quatro óperas essenciais de Wagner, gestadas de 1848 a 1874: “Ouro do Reno”, “Valquíria”, “Siegfried” e “Crepúsculo dos Deuses”.  Entendia Nietzsche um totalitarismo nas criações monumentais de Wagner e a teatralidade exacerbada. Todavia, alguns dos processos escriturais wagnerianos, como o cromatismo e as modulações “infinitas”, corroboraram o advento do atonalismo no início do século XX.

Clique para ouvir, de Wagner, “Morte de Isolda”, na transcrição de Liszt da ópera “Tristão e Isolda”, na excelsa interpretação de Antonieta Rudge (1885-1974):

https://www.youtube.com/watch?v=Je4FdUW6xpg&t=10s

Da confessa admiração ao oposto, Nietzsche se posiciona. Nas “Considerações Extemporâneas: IV. Richard Wagner em Bayreuth” há a nítida admiração de Nietzsche, potencializada pela sua presença no ato da colocação da pedra fundamental na colina de Bayreuth, em Maio de 1872, daquele que viria a ser um templo de arte voltado às representações das óperas de Wagner. Nietzsche o louva pelo “que ele é e o que ele será”. O templo de arte em Bayreuth, após inúmeras tratativas para a sua edificação, foi inaugurado em 1876 com a apresentação da Tetralogia do “Anel de Nibelungo”. O teatro construído para as apresentações de suas obras, o Festspielhaus de Bayreuth, perpetua-se até os dias atuais com afluxo intenso, a reunir cultores da música e camadas privilegiadas da sociedade.

Em “O caso Wagner” Nietzsche é impiedoso e admirador: “Em Wagner, no início encontra-se a alucinação: não de sons, mas de gestos. Para estes, ele busca então a semiótica sonora. Se queremos admirá-lo, examinemo-lo em ação aqui: como ele separa, como ele conquista pequenas unidades, como ele as anima, impele para fora, torna-as visíveis. Mas nisso se esgota a sua força: o resto não presta para nada”. Faz a crítica a determinadas criações de Wagner: “O que importa a nós a provocativa brutalidade da abertura de Tannhäuser? Ou do ciclo das Valquírias? Tudo o que se tornou popular da música de Wagner, também fora do teatro, é de gosto duvidoso e corrompe o gosto. A marcha de Tannhäuser me parece suspeita de pieguice; a abertura para o Holandês Voador é um barulho para nada; o prelúdio de Lohengrin fornece o primeiro exemplo, apenas demasiado capcioso, apenas demasiado bem-cunhado, de como também com a música se hipnotiza (-não aprecio toda música cuja ambição não vai além de convencer os nervos). Mas, deixando de lado o Wagner hipnotizador e pintor de afresco, existe ainda um Wagner que coloca ao lado pequenas preciosidades: nosso maior melancólico da música, cheio de olhares, ternuras e palavras de consolo, que ninguém lhe antecipou, o mestre nos sons de uma nostálgica e sonolenta felicidade. [...] Um léxico das mais íntimas palavras de Wagner, autênticas coisas curtas de cinco até quinze toques, autêntica música, que ninguém conhece. [...]. Wagner tinha a virtude dos décadents, a compaixão”.

Teria sido após sua estadia em várias cidades do Mediterrâneo ― Gênova, Roma e Veneza ― que a transformação se dá ao ouvir os compositores italianos. O “bel canto” o seduz. A ópera do compositor francês Georges Bizet (1838-1875), “Carmen”, as melodias do autor e toda a encenação causaram forte impressão em Nietzsche. Poderia parecer paradoxal tal escolha, se comparada for a enorme dimensão de Wagner com as composições de Bizet. As várias apresentações de “Carmen”, na Itália, Espanha e França, tiveram a presença do admirador Nietzsche.

O que reza a história, apesar da dualidade das posições de Nietzsche a respeito de Wagner, é que ambos são rigorosamente extraordinários quanto aos legados oferecidos aos pósteros em suas áreas fulcrais. A História tem exemplos de expressivas figuras em todas as áreas que tiveram sérios antagonismos com seus pares.

Recomendo vivamente “O leitor de Nietzsche” do insigne filósofo Oswaldo Giacoia Junior. Indispensável a leitura da “Introdução”, que abre as mentes para a compreensão maior do grande pensador alemão. Giacoia soube, nessa cuidadosa seleção, apreender os várias e admiráveis caminhos do pensar de Nietzsche. Se abordei os capítulos a envolver Wagner e Nietzsche, a causa principal foi assinalar igualmente a importância da música para o pianista e compositor Friedrich Nietzsche, algo extraordinário na opera omnia do pensador alemão, pois a abranger duas das mais importantes fontes do saber, a música e a filosofia. Boris de Schloezer (1881-1869), escritor e musicólogo, irmão de Tatiana de Schloezer, primeira esposa de Alexandre Scriabine (1872-1015), elencou, em sua biografia sobre o notável compositor russo, alguns dos títulos voltados à filosofia na biblioteca do seu ex-cunhado (1902-1903), destacando “Assim falou Zaratustra”, de Nietzsche. Saliente-se que o ilustre músico Richard Strauss (1864-1949) compôs um Poema Sinfônico (1896) após a leitura de “Assim falou Zaratustra”, obra maiúscula do compositor teutônico.

Wagner e Nietzsche continuam a ser cultuados. Duas figuras maiores em suas respectivas áreas. Para ambos, “sem a música a vida seria um erro”. A perenização se dá pelo legado.

Clique para ouvir, de Friedrich Nietzsche, “Hymnus an das leben” (Hino à vida), na interpretação da Orchestra do Conservatório de Como e do Coral da mesma instituição, sob a regência do Maestro Domenico Innominato:

https://www.youtube.com/watch?v=FIOIUlDB5yU&list=RDnZ-OQpgNoJs&index=2

The book “O leitor de Nietzsche” (The Reader of Nietzsche), edited by Oswaldo Giacoia Junior, retired professor of the Department of Philosophy at the State University of Campinas (Unicamp) and professor of philosophy at the (PUCPR), specialist in Nietzsche, Schopenhauer, Heidegger and Auguste Comte, is of significant importance. Of particular interest is the magnificent introduction (93 pages) and the selection of 18 texts extracted from Nietzsche’s various works. I focused on those referring to the philosopher and the composer Richard Wagner.