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A proximidade de duas visões do universo infantil

A vida, onde quer que ela se manifeste;
a verdade, por mais amarga que seja; palavras sinceras e ousadas,
dirigidas aos homens sem rodeios: eis o meu ponto de partida,
eis a que aspiro e temo falhar.
É nessa direção que sou empurrado,
é assim que permanecerei.
Modest Moussorgsky (1839-1881)
Carta ao amigo Vladimir Stassov (1824-1906)
(7 de Agosto de 1875)

Defendamos que a beleza de uma obra de arte permanecerá sempre misteriosa,
ou seja, nunca poderemos verificar exatamente «como é feita».
Preservemos, a todo o custo, essa magia peculiar à música.

Por sua essência, ela é mais suscetível de contê-la do que qualquer outra arte.
Claude Debussy (1862-1918)
(“Monsieur Croche et autres récits”)
(15 de Fevereiro de 1913)

Os Cahiers Debussy (nº 9) publicaram, em 1985, artigo a versar sobre “La vision de l’univers enfantin chez Moussorgsky et Debussy”. Nele busquei uma outra importante relação de Debussy com uma criação maiúscula para piano de Moussorgsky. Anteriormente, estudos de ilustres musicólogos apontaram comparações claras entre as óperas Boris Godounov, do compositor russo, e Pélleas et Mélisande, de Debussy, assim como do ciclo de canções Chambre d’enfants, com texto e música de Moussorgsky, com Children’s Corner para piano, de Debussy. É Moussorgsky que tardiamente escreverá: “Minha relação familiar com a niania (babá) me iniciou precocemente a todos os contos russos. Era ainda menino e esses contos russos muitas vezes me impediam de dormir”.  E as babás cantavam para os miúdos, músicas do cancioneiro voltado à infância.

Quanto a Debussy, o universo infantil terá influência em algumas das suas criações. O fato de ter continuado a viver com os seus pais, enquanto dois irmãos foram educados por uma tia; a razão de ter sido filho primogênito e o preferido; a ausência da escola primária, sendo transparente a influência materna (mãe e professora) que o iniciou no aprendizado não musical; a prisão do seu pai durante a Commune em 1871, tudo contribuiu para torná-lo, em certa dimensão, o homem da casa.  Dois momentos seriam decisivos para a compreensão da sua infância, que, saliente-se, seria mantida em segredo. Episódios fulcrais fizeram-no se amalgamar ao universo infantil: o ciclo de canções Chambre d’enfants, de Moussorgsky, e o nascimento de sua filha Claude-Emma, a sua Chouchou (1905-1919). Debussy considerava Moussorgsky “um dos mais importantes compositores contemporâneos, talvez o maior.” (René Peter, Claude Debussy, Paris, 1944). Escreveria para a Revue blanche: “Ninguém falou mais àquilo que de melhor existe em nós e com um acento mais carinhoso e profundo; ele é único e continuará a sê-lo por sua arte sem artifícios, sem fórmulas enfadonhas” (15/04/1901).

Clique para ouvir, de Moussorgsky, do ciclo Chambre d’enfants, Cavaleiro, na interpretação de Elly Ameling, tendo ao piano Rudolf Jansen:

https://www.youtube.com/watch?v=a8fRmlCmnG8&t=807s

Observa-se, em alguns títulos de obras para piano de Debussy, a visitação ao universo infantil, como em Nous n’irons plus au bois; Do,do, l’enfant dormira bientôt e Au clair de la lune, que fazem parte do repertório das canções destinadas à infância. Em 1915, Debussy comporia Noël des enfants qui n’ont plus de maisons.

Com o nascimento de Chouchou, alguns dos segredos mantidos no de profundis de Debussy relacionados à sua infância começam a aflorar. Children’s Corner et La Boîte à Joujoux (ballet pour enfants) são dedicadas à sua filha e, nessas criações, a aproximação com Moussorgsky se torna evidente.

Quanto aos Quadros de uma Exposição, obra essencial de Moussorgsky e um dos ícones da literatura pianística, foi composta em 12 dias de um só élan. Moussorgsky escreve ao seu amigo Vladimir Stassov (1824-1906) aos 12 de Junho de 1874 e menciona inicialmente a sua ópera Boris Godounov: “Hartmann ferve como ferveu Boris. Os sons e as ideias se me apresentam como pombos grelhados”. A exposição de aquarelas, de projetos e maquetes em homenagem ao seu saudoso amigo Victor Hartmann (1834-1873) suscitou um período de produção alucinante. Moussorgsky perpetua em sua obra a tradição narrativa, transmitida desde a infância pela sua niania e assimilada de maneira indelével. O compositor transforma os resultados pictóricos de Hartmann, após inúmeras visitas à mostra, em fio condutor claro, através da observação minuciosa do Promeneur, esse visitante presente em muitas variações do tema a anteceder ou integrar episódios dos Quadros de uma Exposição. “Minha fisionomia aparece nos intermédios”, escreve. Stassov relata “Ele se representa a caminhar pela exposição, lembrando-se por vezes com alegria, outras com tristeza, do grande artista que morrera”.

A visita às aquarelas de Hartmann resulta no retorno à infância do músico russo. É tão evidente essa amálgama aquarela-criação musical em quadros como Gnomus, Tuilleries (crianças a brigar enquanto brincam), Balé dos pintinhos em suas cascas, a Cabana sobre patas de galinha (Baba-Yaga), e outros mais até com certo humor, como Limoges (A praça do mercado – a grande nova ou Samuel Goldenberg e Schmuyle (o judeu rico e o judeu pobre). Quanto às Catacumbas (de Paris e Com mortuis in língua mortua, Stassov relata observação do compositor: “O espírito criador de Hartmann me conduz em direção aos crânios, endereçado a eles, e os crânios começam a brilhar docemente”.Moussorgsky, em sua plenitude russa, mas a admirar a cultura francesa (TuilleriesLimoges), não evidencia  no quadro final, A Grande porta de Kiev, lembrança, consciente ou não, da célebre canção popular francesa Frère Jacques? A semelhança dos temas, a lembrança dos sinos, nos dois casos, não têm uma clara conotação com a infância?

Insiro neste post, com um propósito definido, o tema de Frère Jacques e, após, compassos dessa canção e o início da Porta de Kiev, que ilustram o artigo em pauta.

Faço um parêntesis. Uma de nossas netas, Valentina, perguntou-me, após ficar surpresa ao saber dessa “descoberta”, se ela já era de domínio público. Acessou o meu computador e a pergunta formulada em francês teve a resposta na mesma língua, via IA:

“Não, José Eduardo Martins não demonstrou que a Porta de Kiev de Moussorgsky se inspirou em Frère Jacques no Cahiers Debussy nº 9. A afirmação é falsa. Na realidade a ligação entre essas duas obras musicais é uma ideia que circula na internet, mas ela não é sustentada por nenhuma publicação acadêmica ou musicológica séria, nem pela análise de José Eduardo Martins.

A semelhança sonora percebida entre as duas melodias, especialmente na versão orquestral de Ravel, é uma coincidência e não uma intenção do compositor. Moussorgsky utilizou sinos russos e um canto ortodoxo para a peça, e não uma canção infantil francesa.

Erro de fato: a afirmação é falsa
Nenhuma prova: Não existe nenhuma publicação acadêmica credível que sustenta essa hipótese.
Ideia errada: A ideia de uma inspiração é um rumor circulando na internet sem fundamento real.
Frère Jacques: esta canção é uma melodia francesa que não tem ligação com a obra de Moussorgsky.

Entendo como um absurdo. Quando demonstrei ao Diretor do Centre de Documentation Claude Debussy, em Paris, o notável musicólogo e bibliotecário François Lesure (1923-2001), autor de livros referenciais sobre Debussy, da catalogação de sua obra e da reunião da correspondência, comparando o tema grandioso da Grande Porta de Kiev com a canção popular francesa Frère Jacques, mormente após ter-me debruçado sobre vários livros confiáveis a respeito de Moussorgsky, máxime o fruto da sua vocação epistolar expressiva, e de ter apresentado em público a integral para piano do compositor russo e também a de Debussy; François Lesure, em sua sala no Centre de Documentation Claude Debussy, 2, rue Louvois, disse-me surpreso: “Voilà, c’est l’oeuf de Colomb”, convidando-me de imediato para escrever o artigo sintetizado neste post. A Inteligência Artificial, ao declarar que “…ela não é sustentada por nenhuma publicação acadêmica ou musicológica séria”, não apenas desconhece a importância dos “Cahiers Debussy”, a mais respeitável publicação mundial sobre Claude Debussy, como afirma ser falsa a minha constatação. Reitero a minha indignação pelas informações sem fundamentos dessa ferramenta que, bem ou mal, veio para ficar, a IA. Por acaso pesquisaram os escritos de Moussorgsky relacionados à sua infância e suas composições voltadas ao universo infantil? Independentemente de Chambre d’enfants e dos Quadros de uma Exposição, tem-se para piano:  Lembrança da infância, Brincadeira de crianças no recanto, Brincadeiras de crianças (2ª versão), A babá e eu, A primeira punição, evidenciando esse verdadeiro culto à infância potencializado no ciclo de canções Chambre d’enfants e nos Quadros de uma Exposição. Maior clareza do que a semelhança temática mencionada, parece-me impossível. Reitero as palavras do Mestre François Lesure, “Ovo de Colombo”. Após recital que dei em Gent, na Bélgica, quando do lançamento do CD Moussorgsky-Debussy pelo selo De Rode Pomp, conversei com músicos russos que estavam se apresentando na temporada da organização. Concordaram vivamente, mas ficaram atônitos pelo fato da passagem de bem mais de um século sem que alguém constatasse o fato.

Clique para ouvir, de Modest Moussorgsky, Quadros de uma Exposição, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=dDr75RcRNDw

No que se refere às lembranças dos Quadros de uma Exposição em La Boîte à Joujoux, debrucei-me em blogs anteriores sobre a temática e indico: “Centenário de La Boîte à Joujoux de Debussy (04/01/2014)”; “Concerto na Maison Natale de Claude Debussy, (12/01/2014)”; “La Boîte à Joujoux no Youtube (12/02/2022)”. Quanto à obra maiúscula para piano de Moussorgsky, há o blog “Quadros de uma Exposição” (01/06/2013).

Que Debussy, admirador confesso de Moussorgsky, apreende eflúvios de algumas de suas composições, como Boris GoudunovChambre d’enfants e os Quadros de uma Exposição, é evidente, e a vasta correspondência que deixou testemunha o apreço. Desta última obra, escreve seu amigo Robert Godet (1866-1950): “Já condenado à morte pelo mal que o atingiu, uma de suas últimas joias musicais veio-lhe dos Quadros de uma Exposição”. Um de seus biógrafos, Léon Vallas (1879-1956), observa em Chimène apreensões vindas dos Quadros… (Rodrigue et Chimène, ópera não concluída por Debussy) Outro estudioso, André Schaeffner (1895-1980), menciona parentesco de Tuilleries com o estilo de Debussy. Observa igualmente que “Yniold é o personagem mais moussorgskiano de Pélleas et Mélisande; Constantin Brailoiu (1893-1958) compara Promenade, dos Quadros…, com o Prelúdio Canope de Debussy. Seriam essas sábias afirmações negadas pela IA?

Tendo executado em público as integrais para piano dos dois compositores, o tempo foi responsável pela captação das duas linguagens distintas. Intrigaram-me determinadas intenções de Debussy, conscientes ou não, quando da criação de  La Boîte à Joujoux, que se materializaram, potencializando ainda mais a sua admiração por Moussorgsky.

A presença, em La Boîte à Joujoux, de lembranças dos Quadros de uma Exposição se dá não apenas sob o aspecto musical, mas também de apreensão outra. Debussy, tendo em mente sempre a filha Chouchou, compôs para piano La Boîte à Joujoux, proposta para um balé infantil a partir das aquarelas e roteiro de André Hellé (1871-1845). Orquestrada por André Caplet (1878-1925), só foi apresentada em 1919, um ano após a morte do compositor. Nos Quadros de uma Exposição, tem-se cenas isoladas ligadas por um leitmotiv que atravessa a criação, o tema da Promenade ― visitante da exposição ― em sua apresentação original ou modificado. Quando lembranças dos Quadros se apresentam em La Boîte à Joujoux, pelo fato de haver o texto que indica a ação (música programática), a fluidez não permite a longa duração da lembrança. Não obstante, os temas dos personagens principais do enredo, boneca, polichinelo, soldado e flor, esta representada por uma pausa de semínima em pp decrescente, povoam La Boîte

São várias as aproximações a sugerir a admiração de Debussy pelos Quadros de uma Exposição. No artigo em pauta saliento algumas relacionadas à temática, às harmonizações de segmentos, que lembram algumas realizadas por Moussorgsky, procedimentos de frases musicais quando cenas têm certas afinidades. Nesse artigo, apresento inúmeros exemplos musicais dos dois compositores, sugerindo que, na elaboração de La Boîte à Joujoux, os Quadros de uma Exposição estiveram, conscientemente ou não, gravitando no pensar de Debussy.

Na comemoração do centenário de La Boîte à Joujoux, recebi convite da  diretora da Maison Natale Claude Debussy, em Saint-Germain-en-Laye, para um recital a comemorar o centenário de La Boîte à Joujoux. Comoveu-me a escolha. Propus La Boîte à Joujoux e os Quadros de uma Exposição, apresentação precedida de comentários, nos quais evoquei meu posicionamento sobre essas duas obras.

Clique para ouvir, de Claude Debussy, La Boîte à Joujoux, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=0nGug1ZFxKU

 

No próximo blog farei a síntese do meu artigo publicado em 1990 nos Cahiers Debussy (nº 14), em que apresento ideias de La Boîte à Joujoux que seriam lembradas nas Sonatas para violoncelo e piano e para  violino e piano de 1915, dois anos após La Boîte

Mussorgsky’s Pictures at an Exhibition and Debussy’s La Boîte à Joujoux have a certain identity in their evocations from childhood. Debussy would recall Pictures at an Exhibition when composing his own work belonging to the childhood universe, a creation dedicated to his daughter Chouchou.

O encerramento de importante publicação

Talvez as minhas melhores coisas se devam
à existência sombria que levei até agora,
e talvez a minha vida, medíocre em termos do metal,
seja mais propícia à invenção do que
ao amolecimento dos dias despreocupados,
em que a seda adormecedora tece em torno do cérebro
pensamentos de uma vida segura.
Claude Debussy (1862-1918)
(1892)

O “Centre de Documentation Claude Debussy”, em Paris, foi certamente o mais relevante centro de pesquisas sobre o compositor francês Claude Debussy (1862-1918) em termos mundiais. Criado em 1972 pelo notável musicólogo e bibliotecário François Lesure (1923-2001), diretor do departamento de Música da Bibliothèque Nationale, o Centro foi responsável por várias atividades, entre as quais se destacam as publicações sobre Debussy. Lesure criou os Cahiers Debussy, editado desde 1977, que teve ao longo das décadas 39 números publicados.

Em conversa recente com Myriam Chimènes, ilustre musicóloga francesa, autora de extensa e indispensável bibliografia e que esteve à frente da Comissão de redação dos Cahiers Debussy, soube da desativação da publicação. Tendo, ao longo de duas décadas, colaborado com seis artigos, e havendo um número considerável de exemplos musicais neles inseridos, dedicarei os próximos cinco blogs – exceptuando um que é de ordem técnico-pianística – à síntese de cada conteúdo. A ausência compreensível de exemplos musicais neste espaço será substituída por gravações de obras referentes aos textos.

Durante meu convívio com o “Centre de Documentation Claude Debussy” desde o início dos anos 1980, quando de minhas visitas anuais à Europa, mormente para apresentações pianísticas, pesquisas e gravações, estas a partir dos anos 1990, apreendi o valor absoluto de François Lesure, que cuidou igualmente da organização de núcleos de trabalho constituídos por musicólogos de várias nacionalidades. Foi para mim um privilégio muito grande ter tido, ao longo de duas décadas, contatos permanentes com o eminente musicólogo, que me convidou para seminários sobre  pesquisas em andamento a respeito de Debussy diante do seu grupo de trabalho na “École Pratique des Hautes Études”. Esteve três vezes no Brasil para palestras, a convite da Universidade de São Paulo, tendo participado igualmente da banca examinadora de minha Livre Docência na USP, cujo tema versou sobre o “Idiomático técnico-pianístico na obra de Claude Debussy”.

Ao longo dos anos, os Cahiers Debussy publicaram pesquisas originais que estavam sendo realizadas em vários rincões do planeta. A leitura dos títulos desses artigos bem evidencia a pluralidade de temas tratados, material esse que serve de apoio às pesquisas em andamento e futuras. Realizadas por musicólogos dos vários continentes, essas contribuições enriqueceram os conhecimentos sobre a trajetória de Debussy, estimulando, sob outra égide, não só a avaliação crítica de sua obra, mas igualmente as consequências do seu legado na composição que adveio após a sua morte.

Apresentarei, nos cinco blogs seguintes, a síntese de artigos meus publicados nos Cahiers Debussy. Esses artigos ou apresentam a relação musical com compositor por ele eleito, Moussorgsky (1839-1881), ou a atmosfera musical e poética que o aproxima, em determinado período, a um compositor dele contemporâneo, Alexandre Scriabine (1872-1915), ou a relação de amizade em determinado período com Francisco de lacerda (1869-1934), ou mesmo a presença inequívoca de ideias “extraídas” de obras precedentes de Debussy nas suas duas Sonatas compostas em 1915.

A primeira colaboração focalizou as comparações da linguagem pianística de Debussy e Scriabine, na qual podem ser apreendidas diversas proximidades surgidas em períodos tardios entre os dois compositores que não se conheceram, não havendo qualquer registro escrito em cartas ou bilhetes. Todavia, detectam-se, no discurso musical dos dois, algumas ligeiras semelhanças na escrita musical, mas preferencialmente, de maneira acentuada, nos termos inseridos nas partituras e que servem de guia segura para a interpretação (Cahiers Debussy – nouvelle série nº 7 -1983).

Quanto à segunda colaboração, focalizo a nítida e confessa admiração de Debussy pela obra de Moussorgsky (1839-1881). Não poucas vezes, em artigos e cartas, o apreço do compositor francês se faz presente. A pesquisa esteve relacionada aos Quadros de uma Exposição, obra maiúscula de Moussorgsky, e La Boîte à Joujoux, ambas para piano, e não poucas vezes Debussy deve ter se lembrado do compositor russo (Cahiers Debussy – Nouvelle série nº 9 (1985).

O terceiro artigo estuda a presença de lembranças de La Boîte à Joujoux (1913) nas duas Sonatas de Debussy – para violoncelo e piano e para violino e piano (1915) ―, máxime na parte reservada ao piano, tema igualmente inédito (Cahiers Debussy – Nouvelle série, nº14 (1990).

Um quarto artigo é reservado aos poucos dedilhado inseridos por Debussy nos manuscritos. No prefácio da edição dos 12 Études, o compositor escreve: “Busquemos nossos dedilhados”. Pelo fato de ser um tema muito técnico, contendo 26 exemplos, declinarei de dedicar blog específico (Cahiers Debussy – nº19, 1995).

Clique para ouvir, de Claude Debussy, Étude nº 11, Pour les arpèges composés, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=VCAH8fYHjSo

O artigo sobre a correspondência sonora entre Debussy e Francisco de Lacerda (1869-1934) evidencia os resultados da grande admiração do compositor português nascido nos Açores pelas criações de Debussy, como bem mostram as Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste (1902-1922). Anteriormente, Debussy emprestara um tema de Lacerda para a primeira das Danças, Danse sacré et Danse profane (1904).

O sexto artigo reproduz, na íntegra e com comentários, as três últimas cartas escritas pela filha de Debussy, Chouchou, à sua última professora de piano, Ada Killick. Chouchou morreria de difteria aos 13 anos, um ano após a morte de seu notável pai. Recebi-as do filho de Ada Killick, Gérard Killick, e posteriormente doei-as ao Centre de Documentation Claude Debussy.

As gravações que devo inserir nos cinco futuros blogs possibilitam, através da imagem sonora, descortino a mais de pequena parcela da criação de Claude Debussy.

The end of “Cahiers Debussy”, published by the “Centre de Documentation Claude Debussy” in Paris, which since 1977 has issued 39 volumes with the participation of experts in the field from various continents, brings to an end the dissemination of articles ― mostly unpublished material ― on the remarkable French composer.

Uma história bem documentada

A música escapa a qualquer existência permanente
e só a interpretação pode dar-lhe vida,
uma vida deliciosamente e desesperadamente efêmera.
Marguerite Long (1874-1966)
(“Au piano avec Maurice Ravel”)

Um dos concertos para piano e orquestra mais executados no mundo é certamente o Concerto em sol maior para piano e orquestra, de Maurice Ravel (1875-1937). Após muitos anos, voltei a ouvir, agora via Youtube, uma gravação histórica do referido Concerto para piano com a dedicatária da obra, a lendária pianista Marguerite Long, ao piano e o autor Maurice Ravel a reger a orquestra sinfônica. Realmente uma interpretação excelsa. A gravação foi realizada em 1932 e a tomada de som, longe da qualidade atual, não impede que se depreenda o mérito da interpretação da solista. Em 1952, o Concerto seria regravado com outros recursos sonoros, sendo que Marguerite Long teve a orquestra Lamoureux conduzida por Georges Tzipine (1907-1987), regente da Orquestra Colonne, com quem que tive o privilégio de tocar o Concerto nº 3 de Beethoven em Março de 1960 em Paris.

Na bibliografia de Maurice Ravel, intérpretes renomadas que foram dedicatárias de obras fundamentais do compositor, a saber, a violinista Hélène Jourdan-Morhange (1888-1961), Sonata para violino nº 2, e Marguerite Long, Concerto em sol maior para piano e orquestra, deixaram testemunhos valiosos do convívio com o notável músico. O livro “Marguerite Long au piano avec Maurice Ravel” (Paris, Julliard, 1971) revela a intimidade da pianista com a obra para piano do compositor, máxime sobre o Concerto em sol maior. Marguerite Long aponta as palavras primeiras de Ravel a ela reveladas: “Uma noite, em um jantar na morada de Mme de Saint-Marceaux, cujo salão era ‘um bastão de intimidade artística’, segundo Colette, Ravel me disse à queima roupa: ‘estou no momento compondo um Concerto para você. Se importaria que eu o terminasse em pianíssimo e com trinados?’ Mas certamente, respondi-lhe, muito feliz de realizar o sonho de tantos virtuoses”.

Ravel, após compor o célebre Bolero (1928), passa longo tempo sem criar outras obras. Apesar de pensados em 1929, somente em 1931 nasceriam os dois Concertos para piano e orquestra, bem antagônicos, o Concerto em sol maior e o Concerto para a mão esquerda. Alguns traços comuns, contudo, são evidentes nos dois Concertos, entre os quais lembranças de sua estada nos Estados Unidos concernentes ao jazz e à vida mais agitada, se comparada à sua vivência em França. A um correspondente do Daily Telegraph, Ravel narra a “epopeia” de escrever os dois Concertos tão diferentes: “Foi uma experiência interessante conceber e realizar dois Concertos ao mesmo tempo. O primeiro, no qual participarei como intérprete (na realidade Marguerite Long foi a pianista), é um Concerto no sentido mais exato do termo, escrito no espírito dos Concertos de Mozart e Saint-Saëns. De fato, penso que a música de um Concerto pode ser alegre e brilhante, e que não é necessário que pretenda ter profundidade ou que vise a efeitos dramáticos. Diz-se de alguns grandes músicos clássicos que os seus Concertos são concebidos não para o piano, mas contra ele. De minha parte, considero este julgamento perfeitamente justificado. Inicialmente, tive a intenção de denominá-lo Divertimento. Então refleti que não era necessário, considerando que o título Concerto é suficientemente explícito no que diz respeito ao caráter da música que o compõe. Em certos pontos, o meu Concerto não deixa de apresentar algumas semelhanças com a minha Sonata para violino; traz alguns elementos emprestados do jazz, mas com moderação” (in Alfred Cortot, “La musique française de piano”, deuxième série, Paris, Presses Universitaires de France, 1948).

Mercê de problemas de saúde, Ravel tardou a terminar o Concerto em sol maior, declarando ao seu amigo Zogheb: “Resolvi não mais dormir um segundo sequer. Finda a obra, então repousarei neste mundo… ou em outro”. Ravel, pianista, gostaria de ser o primeiro intérprete, mas, devido às dificuldades técnico-pianísticas reais do Concerto em sol, convidou Marguerite Long para estreá-lo e ela se expressa: “compreenderão qual não foi a minha intensa emoção ao receber o telefonema de Ravel, aos 11 de novembro de 1931, a anunciar a sua vinda imediata à minha casa com o seu manuscrito do Concerto. Estava a me ajeitar quando Ravel chegou repentinamente com as preciosas folhas do Concerto. Confesso que fui diretamente à última página: o pianíssimo e os trinados foram transformados em fortíssimo e percutantes nonas! A obra é árdua, mas o movimento que me deu mais trabalho foi o segundo, aparentemente sem armadilhas”. Estudei com Mme Long o Concerto em sol maior. Disse-me ela que, graças à lenta evolução do segundo movimento e à sua métrica, a possibilidade de falha de memória do pianista ocorre com frequência.

A primeira apresentação mundial se deu em Paris, na Salle Pleyel, aos 14 de Janeiro de 1932. Nessa estreia, Ravel regeu a Pavane, o Boléro e acompanhou o Concerto. Marguerite Long afirma “que não estava tão orgulhosa pelo fato, infelizmente, da sua regência ter sido realizada com a partitura do piano, resultando em uma condução incerta”.

Mme Long escreve: “A Salle Pleyel estava completamente lotada. Tudo correu bem e o sucesso foi considerável, a ponto de termos de repetir o terceiro movimento. Tendo muitas vezes solado o Concerto em sol em França e no estrangeiro, sempre, sem exceção, tivemos de bisar o terceiro movimento”.

Clique para ouvir, de Maurice Ravel, o Concerto em sol maior para piano e orquestra sinfônica, na interpretação de Marguerite Long, sob a regência do compositor (1932):

https://www.youtube.com/watch?v=WSA_MR2Gw_s

Tem interesse o testemunho da pianista ao avaliar o Concerto em sol maior: “Obra-prima autêntica onde a fantasia, o humor, o pitoresco cravam uma das mais tocantes cantilenas que o coração humano jamais sussurrou. Talvez o seu maior encanto resida num conjunto de qualidades que fazem esta obra essencialmente nossa. Colocar as descobertas harmônicas, rítmicas e melódicas mais originais no quadro mais tradicional, despertar os múltiplos setores da nossa sensibilidade com um toque discreto e reservado, falar uma linguagem nova na sombra tutelar de Mozart e Bach, evocar e sugerir sem nunca impor, esconder sempre com pudor a sua própria personalidade e construir tudo com uma perfeição constante e surpreendente foi dar à música uma obra absolutamente francesa”.

Após a grande acolhida pública do Concerto em sol, Maurice Ravel e Marguerite Long partiram em viagem a vários países europeus e as apresentações foram inteiramente dedicadas às criações do compositor. Bélgica, Áustria, Romênia, Hungria, Checoslováquia, Polônia, Alemanha e Holanda aclamaram com o maior entusiasmo as interpretações.

Sob outra égide, no livro mencionado, Marguerite Long escreve sobre os esquecimentos de Ravel no que concerne ao cotidiano nessas viagens pela Europa. “Eu começava, então, a verdadeiramente tomar conhecimento da legendária distração de Ravel, cujo bom humor, a sua melhor característica, contrastava com as consequências às vezes catastróficas de suas imprudências. Juntamente com o cansaço das viagens de comboio, dos concertos, das recepções e das angústias que Ravel me causava frequentemente durante a regência das orquestras, esses incidentes me esgotaram e eu realmente achei que voltaria caquética dessa digressão”! São inúmeros os casos relembrados por Mme Long com boa dose de humor, como esquecer objetos em hotéis, confundir-se com cartas e bilhetes colocados nos bolsos, assim como tantos outros percalços ocasionados também pela distração.

No próximo blog focalizarei o Concerto para a mão esquerda, criação bem contrastante se comparada ao Concerto em sol maior.

After listening to a historic recording of Maurice Ravel’s Concerto in G major for piano and orchestra recorded in 1932, with Marguerite Long, the dedicatee of the work, as pianist and Ravel himself conducting the orchestra, I revisited the book “Au piano avec Maurice Ravel,” written by the legendary pianist.