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O legado que permanecerá e o entendimento pleno

As grandes obras são como as grandes montanhas.
De longe, veem-se melhor.
E as obras secundárias,
essas quanto maior for sendo a distância,
mais imperceptíveis se irão tornando.

Guerra Junqueiro
(Prefácio à segunda edição de “A Velhice do Padre Eterno”)

Diferentemente de todos os blogs desde Março de 2007, no presente post apresento inúmeras fotos em nome de uma amizade sem limites entre José Maria Pedrosa Cardoso e este seu amigo-irmão. Amizade que já existia, mas que tomou dimensões fraternas em torno do imenso compositor conimbricense Carlos Seixas (1704-1742).

José Maria convidou-me para dar recital e palestra Carlos Seixas durante o Colóquio Internacional “Carlos Seixas de Coimbra” na Universidade de Coimbra, em Junho de 2004, a homenagear o compositor no ano do seu tricentenário de nascimento. Meses antes gravara para o selo De Rode Pomp, na Bélgica, dois CDs contendo 23 Sonatas de Seixas. Estou a me lembrar da alegria que senti quando, conduzido por José Maria, analisamos algumas criações originais de Seixas nos arquivos da Universidade. Progressivamente nosso entendimento se estendeu por segmentos do repertório português.

Sob outra égide, acompanhei seu trabalho hercúleo, a revelar repertório adormecido em arquivos. Cada livro que vinha à luz trazia um “santo orgulho” ao musicólogo imbuído de fé cristã. Tão logo publicado, enviava-me foto ao lado de sua esposa, Maria Manuela, a empunhar a nova criação. Já a seguir, embrenhava-se em outro meritório projeto. Acompanhava seu labor, que me era transmitido em mensagens alentadoras. No blog anterior, o Professor Catedrático da Universidade de Coimbra, José d’Encarnação, enumera as realizações literário-musicais de Pedrosa Cardoso. Resenhei sete de seus livros neste espaço, como sinalizo no blog anterior, incluindo – ausente na imagem – a “Breve História da Música Ocidental”. Seu olhar arguto levou-o a perscrutar outros temas relevantes, traduzidos em artigos acadêmicos basilares, alguns apresentados em congressos específicos: “A justificação histórica do compositor Damião de Góis”, “A herança musical de D.Manuel I: novos dados para conhecimento da Capela Real no século XVI”, “Manuel Ivo Cruz – meio século de um maestro”, “O Requiem e a profissão de fé de Lopes-Graça” e “Os Cantos Sefarditas para voz e piano”, do mesmo compositor. De minha parte, fazia o mesmo ao transmitir meus avanços, mormente quando a música portuguesa estava envolvida, o que resultou em seis CDs gravados na Bélgica, Bulgária e Portugal com esse maiúsculo repertório. Recebia do amigo-irmão encorajadoras palavras, plenas de entusiasmo. Ambos admiradores incontestes da opera omnia de Fernando Lopes-Graça.

De minha parte, interessavam-me outros compositores portugueses, como Francisco de Lacerda, Jorge Peixinho e Eurico Carrapatoso, assim como, António Fragoso, Óscar da Silva e Clotilde Rosa. Tinha em José Maria o farol a iluminar parte de minhas pesquisas, sempre com absoluta disponibilidade. Pesquisamos atentos, em várias visitas, manuscritos de Lopes-Graça no Museu da Música Portuguesa – Casa Verdades de Faria, em Cascais, sempre acolhidos pela dedicada Conceição Correia.

Nas viagens a Portugal nessas duas últimas décadas, Regina e eu ficávamos hospedados na morada de José-Maria e Maria Manuela em Oeiras. O amigo-irmão vinha ao aeroporto de Lisboa e de imediato tínhamos já vários projetos em comum. De ciclos que apresentei em público ao piano em Portugal menciono nosso amálgama em torno dos audiovisuais concernentes às “Sonatas Bíblicas” de Johann Kuhnau (1666-1722), às “Viagens na Minha Terra” de Lopes-Graça (1906-1994) e às “Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste” de Francisco de Lacerda (1869-1934), presentemente no Youtube.

Pedrosa Cardoso foi o responsável pelo “redescobrimento” do magistral ciclo “Cantos Sefarditas” para canto e piano, de Lopes-Graça, apresentados na íntegra em São Paulo em primeira audição mundial e posteriormente em Portugal pela soprano Rita Mourão Tavares, comigo ao piano.

Aposentado como Professor Doutor pela Universidade de Coimbra, espontaneamente se dispôs a me acompanhar nos recitais que apresentei ao longo dos anos em Portugal e alhures: Mencionaria viagens que fizemos para essas apresentações, ele a dirigir sempre tranquilamente: Lisboa, Almada, Évora, Lagos, Monchique, Sagres, São João do Bispo, Cascais, Tomar, Pombal, Coimbra, Porto, Póvoa do Varzim, Braga e Guimarães (sua cidade natal). O casal esteve duas vezes no Brasil para nossa atividade conjunta. Ficaram em casa, para gáudio de nosso clã.

Esteve na França, com Maria Manuela, a fim de ouvir meu recital no Museu Debussy em Saint-Germain-em-Laye, quando se comemorou no local o centenário de “La Boîte à Joujoux” na casa em que nasceu o compositor.

Sempre com entusiasmo e em vários recitais tecia para o público considerações pertinentes sobre o repertório que eu estava a apresentar. Em várias oportunidades estivemos com figuras relevantes do meio musical português. Algumas fotos traduzem entendimentos:

A ruptura através da morte é sempre dolorosa. Quando envolve afetos e entendimentos absolutos em área afim, corresponde a um abrupto corte. José Maria Pedrosa Cardoso foi esse amigo-irmão, insubstituível. Sim, as minhas relações com amigos e músicos portugueses é expressiva, sem quaisquer dúvidas. Raízes são profundas. Todavia, a constância, o convívio permanente, apesar de um vasto Atlântico a nos separar, não esmoreceu a relação; ao contrário, potencializou-a.

Fica neste espaço meu tributo sentido ao grande amigo-irmão que partiu. Já comuniquei ao prezado amigo, Professor João Gouveia Monteiro, Diretor das Bibliotecas da Universidade de Coimbra, que meu recital em Abril ou Maio próximo na Biblioteca Joanina  será dedicado a José Maria Pedrosa Cardoso. Em havendo um au- delà, é possível que ele ouça os apelos finais de “Vers la Flamme”, de Scriabine, peça com que encerrarei o programa. É possível…

Clique para ouvir, de Fernando Lopes-Graça, “Viagens na Minha Terra”. A partir da minha gravação (Portugaler, 2003), José Maria Pedrosa Cardoso e sua esposa Maria Manuela Cardoso prepararam as imagens a caracterizar cada uma das 19 localidades em Portugal. Montagem, Elson Otake.

https://www.youtube.com/watch?v=n0PwLys54GU

The great musicologist José Maria Pedrosa Cardoso, my brother-like friend who passed away last week, in the present post is remembered through photos that testify to the dimension of our friendship.

Um dos nomes referenciais na história da musicologia portuguesa

Nenhuma vida tem qualquer significado ou qualquer valor
se não for por uma contínua batalha contra o que nos afasta da perfeição,
que é o nosso único dever.
Agostinho da Silva
(“As Aproximações”)

Meu amigo-irmão, José Maria Pedrosa Cardoso, partiu no dia 8, quinta-feira, após prolongada doença. Perda inestimável. O desenlace já aguardado por José Maria, na serenidade daqueles imbuídos da fé cristã, fê-lo inclusive dias antes selecionar as músicas de seu velório. Seguimos deste lado do Atlântico toda a lenta evolução do irremediável. A emoção que estou a sentir me impede de escrever de imediato sobre o amigo-irmão. Meu dileto amigo, ilustre medievalista João Gouveia Monteiro, Professor da Universidade de Coimbra, escreveu-me a dizer que apreendeu a morte de Pedrosa Cardoso “quando ouvi os sinos a repicar na cabra da Torre da UC”, em homenagem ao ex-professor Pedrosa Cardoso. Na mensagem, o Professor Gouveia Monteiro anexou um texto significativo publicado no ato pelo também ilustre Professor Catedrático jubilado da UC, da área de Arqueologia, grande especialista em Epigrafia, José d’Encarnação. Obtive a  autorização para publicá-lo. Transmito-o para que o prezado leitor conheça a abrangência da atuação de meu querido amigo-irmão, sendo que ao final, sua dedicada esposa Manuela tece pungente testemunho sobre a partida.

“Faleceu ontem, dia 8, pelas 22 horas, na Casa de Saúde de Idanha – Instituto das Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus, em Belas, onde estava internado, o Dr. José Maria Pedrosa Cardoso, Professor aposentadao da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

Natural de Guimarães (28 de Março de 1942), Pedrosa Cardoso formou-se em Filosofia e Teologia, em Valladolid e Munique (1962-1969); estudou Pedagogia e Didáctica Musical com Edgar Willems e Jos Wuytack, Direcção Coral com Michel Corboz e Pierre Salzmann; fez o curso geral de Piano pelo Conservatório de Música do Porto; foi dos primeiros licenciados em Ciências Musicais pela Universidade Nova de Lisboa.

A partir de Janeiro de 1987 e até 1989, acumulou a docência na Universidade Nova de Lisboa e no Conservatório Nacional com o cargo de assessor de João de Freitas Branco na direcção artística e de produção do Teatro Nacional de S. Carlos.

Entrou para a  Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em 1992, como assistente estagiário, para leccionar a cadeira de História da Música. Aí passou a exercer prioritariamente a docência, mais tarde alargada ao Mestrado em Ciências Musicais e ao Curso de Estudos Artísticos, que veio a dirigir na área da. Doutorou-se em Ciências Musicais Históricas e fez a agregação na mesma área científica. Integrou, como investigador, o Centro de Estudos Clássicos da sua Faculdade de Letras. Música até à sua aposentação, em 2009.

Conferencista convidado em Portugal e no estrangeiro, falava sobretudo da sua especialidade: a música sacra e a música histórica portuguesa.

Embora com incursões na música contemporânea, com estudos sobre Luiz de Freitas Branco, António Fragoso e Fernando Lopes Graça, a sua pesquisa musicológica seguiu prioritariamente a pista aberta por Mestre Santiago Kastner, um músico estrangeiro consagrado em Portugal que chamou várias vezes a atenção para uma verdadeira especificidade da música portuguesa dentro do quadro europeu. Tem pautado a sua investigação pela busca da singularidade da música histórica portuguesa, um caminho aberto na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e percorrido em todos os principais arquivos nacionais e estrangeiros.

Entre as iniciativas que tomou no âmbito musical, podem citar-se: a fundação,  em 1976, do Grupo Coral de Lagos, que dirigiu até 1981, com o qual desenvolveu vasta acção cultural através de todo o Algarve, com digressões pelo país e gravações para a RTP e RDP; a fundação, em 1977, da Escola de Música do Grupo Coral de Lagos, que dirigiu até 1981; a criação, também  em 1977, com o Coral de Lagos e com o Coral Ossónoba de Faro, do Festival de Coros do Algarve que se mantém até ao presente; a criação, em 1979, os Cursos Musicais de Férias de Lagos, com a colaboração de alguns dos melhores professores portugueses, com os quais se estabeleceu na cidade de Lagos uma dinâmica concertística rara durante seis semanas de Verão, Cursos que dirigiu até 1983.

Escreveu as seguintes obras:

  • O Teatro Nacional de S. Carlos – Guia de Visita, APEM, 1991;
  • Fundo Musical da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Lisboa, 1995;
  • Obra Litúrgica I e II (Gulbenkian – Serviço de Música, 12-2000);
  • História da Música – Manual do Aluno do 2º Ano (Sebenta, 04-2003);
  • Carlos Seixas, de Coimbra (Imprensa da Universidade de Coimbra, 12-2004) (coord. e autor);
  • Ano Seixas. Exposição Documental. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2004;
  • O Canto da Paixão nos Séculos XVI e XVII: A Singularidade Portuguesa (Imprensa da Universidade de Coimbra, 12-2006);
  • Cerimonial da Capela Real - Um manual litúrgico de D. Maria de Portugal (1538-1577) Princesa de Parma (INCM – Imprensa Nacional Casa da Moeda / Fundação Calouste Gulbenkian, 05-2008);
  • História da Música I (Sebenta, 03-2008);
  • História Breve da Música Ocidental. Coimbra: Imprensa da Universidade, 06-2010;
  • O Passionário Polifónico de Guimarães. Guimarães: SMS, 2013.

E, nesse aspecto, merece  grande realce uma obra, bilingue, que particularmente lhe agradou publicar: O Grande ‘Te Deum’ Setecentista Português, de 363 páginas, editado pelo CESEM e pela Biblioteca Nacional de Portugal, em cujo Auditório decorreu, a 9 de janeiro de 2020, a apresentação, a cargo de Manuel Pedro Ferreira e de David Cranmer. A sessão contou ainda com a demonstração musical de um trecho dos Grandes Te Deum, a cargo de David Cranmer e de Manuel Rebelo.

Continuou muito activo, mesmo após a sua aposentação. Recentemente programou, por exemplo, e foi director artístico do Festival de Música Religiosa de Guimarães, realizado no período da Semana Santa.

Foi homenageado pela Câmara Municipal de Lagos, tendo recebido a Medalha de Mérito Municipal, grau ouro, pelos serviços prestados à cidade, no âmbito da cultura musical, durante 40 anos.

Estava casado com a Professora Manuela Pedrosa Cardoso, a quem endereçamos – bem como à demais família – os nossos mais sentidos pêsames. Foi, sem dúvida, exemplar o seu acompanhamento ao marido. A 14 de Novembro escrevia ao grupo que se formara para ir sabendo da evolução do doente, então já na Unidade de Cuidados Paliativos de Idanha (Sintra): «Não pode receber visitas, apenas eu o posso ver. Está sereno, sem dores, muitíssimo cansado. Preparado para a viagem onde será recebido pela PAI CELESTIAL. Ontem escrevi a seu pedido as músicas que se vão ouvir na sua partida, no velório. Pediu que fosse feito silêncio e nada de LÁGRIMAS. […] Fiquem tranquilos, porque a PAZ está connosco. Darei notícias».

Bem haja, Dra. Manuela, por este testemunho de… vida!

Que descanse em paz quem, na verdade, logrou, ao longo de toda a sua existência, combater o bom combate!”

No menu do blog, no item “Livros – Resenhas e Comentários (lista)”, o leitor encontrará a relação dos livros de Pedrosa Cardoso resenhados ao longo em meus posts semanais. Escreverei um segundo post no próximo dia 18, a narrar nosso entendimento pleno sobre tantos planos culturais, projetos conjuntos e, a preponderar, a amizade ilimitada. Apresentarei várias fotos desse transcurso.

The recent death of the illustrious retired professor José Maria Pedrosa Cardoso from the University of Coimbra, a reference name of musicology in Portugal, has caused me a strong commotion. Pedrosa Cardoso leaves an extraordinary legacy, through an extensive literary-musical production based on the competent interpretation of musical sources since the 16th century in Portugal. I include in this post a substantial text by José d’Encarnação, retired professor from the University of Coimbra.

 

 

Narrativa do compositor e tributos a ele prestados

Gosto de gostar de tudo,
de viver a música em toda a sua plenitude de significados.
Me proibir, por razões ideológicas de grupo,
de gostar de uma coisa de que na verdade eu gosto, jamais!
Gilberto Mendes

Gilberto Mendes (1922-2016) foi um de nossos mais importantes compositores. Absolutamente aberto às tendências, percorreu-as conscientemente, mas sempre a deixar em suas composições as impressões digitais, marcas inalienáveis que evidenciam o talento autêntico e a seriedade de propósitos. Estivemos ligados por laços indestrutíveis de amizade desde os tempos de meu ingresso na Universidade de São Paulo em 1982 até sua morte em 2016. Nas fronteiras dos setenta anos, que indicariam sua aposentadoria, insisti para que escrevesse uma espécie de autobiografia musical, a resultar numa extraordinária defesa de tese de doutorado na qual tive o prazer de estar presente como membro da banca examinadora. O texto, com alguns ajustes, foi publicado e teve excelente guarida (“Uma Odisséia Musical – Dos mares do sul à elegância pop/art déco”. São Paulo,  Edusp, 1992). Vieram ao longo outros livros, nos quais Gilberto Mendes narrava suas aventuras musicais, opções estéticas, amizades conquistadas pelo mundo e Santos, sempre Santos, a sua cidade mágica.

Tardiamente penetraria nas narrativas idealizadas, pois seu espírito criador voltava-se aos personagens abstratos que povoavam sua mente, mas não desprovidos de nebulosas identidades. Seu livro “Danielle em surdina – Langsam” foi promissor impulso aos 91 anos (vide blog: “Danielle em surdina, Langsam”, 06/04/2013). Pouco antes do desenlace escreveu “Os dois amigos entraram finalmente na Rua Borges”, publicado postumamente com a elucidativa apresentação de Ademir Demarchi (Santos, Realejo, 2019).

Os curtíssimos episódios dessa última publicação revelam compartimentos essenciais da personalidade de Gilberto Mendes, a realidade e a ficção. Mesclá-las, eis o objetivo alcançado. Gilberto está presente nessa autoficção sem se nomear; capta período preocupante para um grupo de militantes do Partido Comunista e Ramiro seria seu pseudônimo. À maneira de um Dostoievsky, autor que ele tanto admirava, Gilberto observa. Esteve na militância durante cerca de 20 anos e, com o advento da “Revolução” de 1964, jogou todo o material que possuía no mar de sua Santos, seu porto seguro.

Acompanhar essas brevidades é compreender que as reuniões para discussão de temas afins ao Partidão tinham igualmente outras finalidades, pretexto para conquistas amorosas regadas, por vezes, por generoso vinho. Várias classes reunidas, aqueles pertencentes à burguesia em seus matizes, os decantados “intelectuais”, assim como os portuários seguidores das cartilhas que vinham do leste europeu. Nessas reuniões havia sempre o receio de serem flagrados, mercê da ilegalidade, mas as discussões corriam soltas sobre temas concernentes à estrutura daquele núcleo, às doutrinações marxistas, aos debates sobre arte e literatura. A certa altura os temas voltaram-se igualmente à encenação de peça teatral e vários participantes encontravam nos ensaios momentos de autovalorização.

Para os que tiveram o privilégio de conviver com Gilberto sur le tard a narrativa tem uma cativante apreensão dessa participação do autor, quase sempre como um observador irônico, por vezes com fino humor, traços inalienáveis de Gilberto. Sendo “Os dois amigos entraram finalmente na Rua Borges” uma visitação às décadas longínquas vividas sob o ímpeto de uma juventude na idade madura, inserir um caso amoroso, “paixão arrebatadora”, entre o principal articulador, Rodrigo, e uma bela e misteriosa frequentadora, traria à pena de Gilberto um frescor narrativo nos seus mais de 90 anos. Não estaria o compositor a se divertir ao recordar e também dando asas à fértil imaginação?

Clique para ouvir, de Gilberto Mendes, Sonatina à la Mozart (1951), na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=ZO0-u5kU5c4

Na nonagésima década, a ironia gilbertiana estaria implícita nesse tratamento em que, ao não penetrar no âmago da doutrinação partidária, menos voltado aos fundamentos do núcleo do Partidão que deveriam ser a essência das reuniões, confere aos vários participantes da trama interesses tão alheios, com exceções. Meio século após, apesar de sempre ser simpático às teses da esquerda, assim como foi aberto a tantas tendências composicionais, Gilberto não tinha o menor pendor para o fanatismo ideológico e nos deixou uma grande lição nesse sentido. “Os dois amigos entraram finalmente na Rua Borges” é um exemplo.

Flávio Viegas Amoreira é escritor, poeta e jornalista. Em sua profícua atividade teve a grata ideia de homenagear Gilberto Mendes com um “esboço”, como ele bem afirma, de uma biografia almejada para 2022, ano do centenário do compositor. Literato, buscou concentrar nas páginas de “Gilberto Mendes – notas biográficas” (Santos, Imaginário Coletivo, 2021) as relações intensas do músico com poetas e escritores, contemporâneos ou não. Seis “prefaciantes”, em breves e precisas palavras, testemunham a admiração pelo homenageado, apreendendo facetas características do imenso Gilberto Mendes: Charles A. Perrone, “Concertos novo-musicais!”; Luiz Zanin Orichi, “O espírito livre de Gilberto Mendes”; Carlos Conde, “Um perfil (também) humano”; Edson Amâncio, “Gilberto Mendes”; João Carlos Rocha, “Carta a Gilberto”; Madô Martins, “Cabelos Brancos”. Essas expressivas apresentações dimensionam a proposta de Flávio Viegas Amoreira e enriquecem suas “notas biográficas”. É um outro olhar sobre o compositor, a evidenciar seu direcionamento voltado igualmente à literatura, à poesia em especial e ao cinema. Gilberto me confessaria que suas idas semanais para assistir aos filmes que escolhia levavam-no ao encantamento desde o instante em que, sentado ao lado de sua esposa Eliane, “que se tornou uma segunda mãe”, segundo Gilberto, as luzes se apagavam paulatinamente e os toques sonoros criavam o clima necessário.

As “notas biográficas” de Flávio Viegas Amoreira têm significado amplo. Fixa período fulcral na formação de Gilberto Mendes: “Aquele período, entre 35 e 40, foi ápice da década ideológica e concomitante ao período de formação estética de Mendes: geração inoculada com brilho de Hollywood mesclado ao cinema alemão, ainda não contaminado pelo nazismo, o advento do mercado editorial brasileiro com traduções de Freud, Mann, Brecht, o conhecimento dado aos trópicos de Fernando Pessoa, Marcel Proust, todos experimentos tributários de James Joyce, os romances de gozo e fruição de Somerset Maugham, Charles Morgan e a prosa conceitual de Chesterton e Audous Huxley, sem falar no onipresente Joseph Conrad”.

Entendê-lo nesse labirinto literário-poético, onde há o olhar atento de um cinéfilo absoluto, é missão complexa, assim como o foi no caso de Claude Debussy, que apreendeu um universo de tantas tendências antes de pender para o simbolismo sem o qual, apesar de certamente não explicar Debussy, não se pode compreender a formação de sua linguagem. Quantos não foram os poetas por ele visitados em suas sublimes Mélodies? Gilberto percorre esse caminho a abraçar tendências outras ao concretismo por ele tão fequentado. Amoreira comenta: “Sempre senti tão gêmeos o trabalho do poeta com o do compositor: extraímos do nada, absolutamente nada mais do que qualquer outro artista, pura entrega de alma para almas laçadas por uma perícia inconsútil e invisível. No começo o compositor nasceu poeta mesmo sem o poema escrito”. No caso das Proses Lyriques (1892-1893) de Debussy, o compositor seria o autor dos poemas. Louis Laloy, primeiro biógrafo de Debussy, escreveria em 1909 que “as mais aproveitáveis lições não lhe vieram da parte dos músicos, mas de poetas e pintores”. Se Flávio Viegas Amoreira assinala até o “autodidatismo” de Gilberto Mendes, a visão aberta ao mundo, fruto em parte dessa visão marítima de sua Santos tão amada a partir do fluxo de navios com todas as bandeiras, a diversidade da escolha dos poetas de correntes tão diversas atenderia à essência essencial do compositor, voltada ao universal.

Na substanciosa narrativa de Amoreira, após mencionar frase de Gilberto “Toda a arte é boa, está acima de critérios de qualidade”, lembrar-se-ia de frase de Schoenberg, transmitida ao seu amigo Robert Gerhard após ouvir o concerto para piano e orquestra de Grieg “Esta é a espécie de música que eu realmente gostaria de escrever”. Flávio Viegas Amoreira completa: “A música de Grieg, certamente um compositor menor, para os ‘classificadores’ implacáveis”. Essa arguta observação me faz recordar de um episódio que se deu em minha sala de aula na USP. Estava a tocar o 4ª Noturno de Gabriel Fauré quando Gilberto adentra, ouve até o final e me diz serenamente: “Daria toda minha obra em troca desse Noturno”. Lição de humildade vinda de um imenso músico! Em conversa recente com Eliane Mendes, disse-me ela que mais de uma vez Gilberto mencionou esse episódio.

Clique para ouvir, de Gabriel Fauré, o 4ème Nocturne de Gabriel Fauré, na interpretação de J.E.M.:

https://embedy.cc/movies/UmMrbjZ3RFBhb24xb2VTa3NQOS8zaHpVWHFnSDErMkhEZERKZGUxODNxOD0=

Amoreira desfila em sua narrativa, nas passagens pertinentes, incontável lista de escritores, poetas, compositores, artistas plásticos e de teatro, amizades outras que trazem à luz o universo de Gilberto. Impressiona a abrangência de um músico interessado em todas as manifestações culturais e “políticas”, mantendo-se sempre solícito com todos que o procuravam. Observa: “Admirei de longe, desde sempre, Gilberto Mendes como uma celebridade artística nacional, pelas ruas de Santos em minha juventude, frequentando cinemas de mãos dadas com Eliane, caminhando pela praia… Sabia ser ele na música algo que eu gostaria de seguir na literatura: alguém entregue todo tempo ao seu ofício sagrado de criador”. Gilberto Mendes adaptou vários poemas do autor de “notas biográficas” para seu sinfônico “Alegres Trópicos, Um Baile na Mata Atlântica”.

Nesse contato permanente na cidade amada pelo músico e o poeta, uma frase de Flávio Viegas Amoreira evidencia algo não raro entre os tantos compositores sur le tard: “Mas também pude testemunhar seu desencanto com desvios da esquerda brasileira, sua preocupação ecológica crescente com destinos da Amazônia e o chorar com desastres como o de Mariana. Tinha perdido muitas  ilusões, mas ainda resistia por uma utopia muito particular de criação e motivação dos jovens”.

O centenário de Gilberto Mendes se aproxima. Certamente haverá uma série de tributos a ele prestados. Urge realizá-los.

In two recent publications, Gilberto Mendes is revealed in significant aspects of his life and work. In a short novel, Gilberto writes an autofiction depicting a tumultuous period in the 1960s, a narrative not devoid of humor. In a second book, writer, poet and journalist Flávio Viegas Amoreira provides biographical notes of great interest. As a friend of Mendes, he penetrates his poetic/literary universe, apprehending the composer’s choices. Next year we will celebrate Gilberto Mendes’ birth centennial.