O legado que permanecerá e o entendimento pleno

As grandes obras são como as grandes montanhas.
De longe, veem-se melhor.
E as obras secundárias,
essas quanto maior for sendo a distância,
mais imperceptíveis se irão tornando.

Guerra Junqueiro
(Prefácio à segunda edição de “A Velhice do Padre Eterno”)

Diferentemente de todos os blogs desde Março de 2007, no presente post apresento inúmeras fotos em nome de uma amizade sem limites entre José Maria Pedrosa Cardoso e este seu amigo-irmão. Amizade que já existia, mas que tomou dimensões fraternas em torno do imenso compositor conimbricense Carlos Seixas (1704-1742).

José Maria convidou-me para dar recital e palestra Carlos Seixas durante o Colóquio Internacional “Carlos Seixas de Coimbra” na Universidade de Coimbra, em Junho de 2004, a homenagear o compositor no ano do seu tricentenário de nascimento. Meses antes gravara para o selo De Rode Pomp, na Bélgica, dois CDs contendo 23 Sonatas de Seixas. Estou a me lembrar da alegria que senti quando, conduzido por José Maria, analisamos algumas criações originais de Seixas nos arquivos da Universidade. Progressivamente nosso entendimento se estendeu por segmentos do repertório português.

Sob outra égide, acompanhei seu trabalho hercúleo, a revelar repertório adormecido em arquivos. Cada livro que vinha à luz trazia um “santo orgulho” ao musicólogo imbuído de fé cristã. Tão logo publicado, enviava-me foto ao lado de sua esposa, Maria Manuela, a empunhar a nova criação. Já a seguir, embrenhava-se em outro meritório projeto. Acompanhava seu labor, que me era transmitido em mensagens alentadoras. No blog anterior, o Professor Catedrático da Universidade de Coimbra, José d’Encarnação, enumera as realizações literário-musicais de Pedrosa Cardoso. Resenhei sete de seus livros neste espaço, como sinalizo no blog anterior, incluindo – ausente na imagem – a “Breve História da Música Ocidental”. Seu olhar arguto levou-o a perscrutar outros temas relevantes, traduzidos em artigos acadêmicos basilares, alguns apresentados em congressos específicos: “A justificação histórica do compositor Damião de Góis”, “A herança musical de D.Manuel I: novos dados para conhecimento da Capela Real no século XVI”, “Manuel Ivo Cruz – meio século de um maestro”, “O Requiem e a profissão de fé de Lopes-Graça” e “Os Cantos Sefarditas para voz e piano”, do mesmo compositor. De minha parte, fazia o mesmo ao transmitir meus avanços, mormente quando a música portuguesa estava envolvida, o que resultou em seis CDs gravados na Bélgica, Bulgária e Portugal com esse maiúsculo repertório. Recebia do amigo-irmão encorajadoras palavras, plenas de entusiasmo. Ambos admiradores incontestes da opera omnia de Fernando Lopes-Graça.

De minha parte, interessavam-me outros compositores portugueses, como Francisco de Lacerda, Jorge Peixinho e Eurico Carrapatoso, assim como, António Fragoso, Óscar da Silva e Clotilde Rosa. Tinha em José Maria o farol a iluminar parte de minhas pesquisas, sempre com absoluta disponibilidade. Pesquisamos atentos, em várias visitas, manuscritos de Lopes-Graça no Museu da Música Portuguesa – Casa Verdades de Faria, em Cascais, sempre acolhidos pela dedicada Conceição Correia.

Nas viagens a Portugal nessas duas últimas décadas, Regina e eu ficávamos hospedados na morada de José-Maria e Maria Manuela em Oeiras. O amigo-irmão vinha ao aeroporto de Lisboa e de imediato tínhamos já vários projetos em comum. De ciclos que apresentei em público ao piano em Portugal menciono nosso amálgama em torno dos audiovisuais concernentes às “Sonatas Bíblicas” de Johann Kuhnau (1666-1722), às “Viagens na Minha Terra” de Lopes-Graça (1906-1994) e às “Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste” de Francisco de Lacerda (1869-1934), presentemente no Youtube.

Pedrosa Cardoso foi o responsável pelo “redescobrimento” do magistral ciclo “Cantos Sefarditas” para canto e piano, de Lopes-Graça, apresentados na íntegra em São Paulo em primeira audição mundial e posteriormente em Portugal pela soprano Rita Mourão Tavares, comigo ao piano.

Aposentado como Professor Doutor pela Universidade de Coimbra, espontaneamente se dispôs a me acompanhar nos recitais que apresentei ao longo dos anos em Portugal e alhures: Mencionaria viagens que fizemos para essas apresentações, ele a dirigir sempre tranquilamente: Lisboa, Almada, Évora, Lagos, Monchique, Sagres, São João do Bispo, Cascais, Tomar, Pombal, Coimbra, Porto, Póvoa do Varzim, Braga e Guimarães (sua cidade natal). O casal esteve duas vezes no Brasil para nossa atividade conjunta. Ficaram em casa, para gáudio de nosso clã.

Esteve na França, com Maria Manuela, a fim de ouvir meu recital no Museu Debussy em Saint-Germain-em-Laye, quando se comemorou no local o centenário de “La Boîte à Joujoux” na casa em que nasceu o compositor.

Sempre com entusiasmo e em vários recitais tecia para o público considerações pertinentes sobre o repertório que eu estava a apresentar. Em várias oportunidades estivemos com figuras relevantes do meio musical português. Algumas fotos traduzem entendimentos:

A ruptura através da morte é sempre dolorosa. Quando envolve afetos e entendimentos absolutos em área afim, corresponde a um abrupto corte. José Maria Pedrosa Cardoso foi esse amigo-irmão, insubstituível. Sim, as minhas relações com amigos e músicos portugueses é expressiva, sem quaisquer dúvidas. Raízes são profundas. Todavia, a constância, o convívio permanente, apesar de um vasto Atlântico a nos separar, não esmoreceu a relação; ao contrário, potencializou-a.

Fica neste espaço meu tributo sentido ao grande amigo-irmão que partiu. Já comuniquei ao prezado amigo, Professor João Gouveia Monteiro, Diretor das Bibliotecas da Universidade de Coimbra, que meu recital em Abril ou Maio próximo na Biblioteca Joanina  será dedicado a José Maria Pedrosa Cardoso. Em havendo um au- delà, é possível que ele ouça os apelos finais de “Vers la Flamme”, de Scriabine, peça com que encerrarei o programa. É possível…

Clique para ouvir, de Fernando Lopes-Graça, “Viagens na Minha Terra”. A partir da minha gravação (Portugaler, 2003), José Maria Pedrosa Cardoso e sua esposa Maria Manuela Cardoso prepararam as imagens a caracterizar cada uma das 19 localidades em Portugal. Montagem, Elson Otake.

https://www.youtube.com/watch?v=n0PwLys54GU

The great musicologist José Maria Pedrosa Cardoso, my brother-like friend who passed away last week, in the present post is remembered through photos that testify to the dimension of our friendship.