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Ives Gandra Martins em confissões sensíveis

Já disse que sem ti não sei viver,
Pois tu és, para mim, meu próprio ser.
Ives Gandra da Silva Martins
(Extraído do “Soneto lido para meu amor em seu ouvido”. 25/01/2021)

De maneira crescente assiste-se na atualidade a transformações em princípios que permaneceram basicamente inalterados, por vezes durante séculos. A vulgarização sem filtro algum de determinados conceitos voltados aos costumes e à moralidade afigura-se-me como alerta para parcela imensa das novas gerações. Banalizaram-se as culturas e também de maneira rápida elas estão sofrendo mutações. Os avanços tecnológicos que atingem incontáveis segmentos da atividade humana trazem problemas que estão longe de serem resolvidos. Poder-se-ia acrescentar que essas transformações já fazem parte da estrutura mental dos jovens, mormente dos nascidos no alvorecer deste século, que com elas convivem desconhecendo quase sempre as conquistas anteriores.

A instituição do casamento, à força das mutações acima citadas e outras mais, tem sido questionada graças igualmente à posição mais independente da mulher na sociedade atual e aos múltiplos impactos daí advindos. Essa liberdade, propalada acentuadamente nos tantos sites espalhados, propaga-se diariamente com várias nuances, nem sempre dignificantes para a mulher. Num espaço de dez anos, 2010-2020, houve um nítido abreviar quanto à duração de um casamento no Brasil, de 16 para 13 anos, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Poder-se-ia acrescentar que os casamentos à moda antiga, no que tange à duração, tornam-se mais raros. Nossos pais foram casados durante 65 anos e, na nossa geração, há muitos remanescentes que ultrapassaram a sexta década de união.

Essa premissa se faz necessária pelo fato de ter recebido o novo livro de poemas do meu dileto irmão, Ives Gandra Martins, que foi casado durante 62 anos com a saudosa Ruth, vítima de Covid em 2021 (“Sonetos de amor para Ruth ausente”, Anápolis, Chafariz, 2024). Creio que Ives deva ter escrito bem mais de 1.000 poemas à sua amada Ruth. Após o seu falecimento, confessou-me que todas as manhãs escrevia um pequeno poema a ela dedicado. Do presente livro constam 170 sonetos post-mortem de Ruth, todos inspirados nesse afeto transcendente. Às suas dezenas de livros sobre especialidades no campo do Direito, somam-se os poéticos. “Os meus 20 livros de poesias até a sua morte foram-lhe dedicados”, escreve no prefácio a homenagear Ruth.

Ives é uma figura rigorosamente impoluta e, como se diz em Portugal, irretocável. Na área jurídica uma das figuras mais respeitadas neste país de tão difícil compreensão e um homem de fé cristã inabalável.

Ao longo da existência conheci raríssimos casais que viveram em harmonia absoluta durante o casamento. Ives e Ruth formavam o modelo exemplar de afeto e de compreensão. Jamais soube de um desentendimento, tão comum entre marido e mulher. Conheceram-se na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, namoraram e noivaram durante cinco anos e o casamento se deu em 1958. Todas as imensas contribuições de Ives nas áreas do Direito Constitucional e Tributário, e reverenciadas por seus ilustres pares, tinham em Ruth, a esposa delicada, a companheira rigorosamente singular que o estimulava sempre com serenidade. Os seis filhos, genros e netos compartilhavam o entendimento do casal de exceção.

Os Sonetos de Ives são de fácil leitura. Toda a sua veia poética, um dos atributos que o levou à Academia Paulista de Letras e a outras tantas espalhadas pelo país, tem a simplicidade franciscana, pois é o transbordamento de uma alma límpida que se distancia de proselitismos.

Insiro três poemas que atestam o culto à rima, ao rigor da forma e à comunicabilidade. Ives evita elucubrações na tentativa de enunciar propósitos. Não seria a total ausência de empáfia poética uma das maiores homenagens à sua eterna Ruth, que viveu a existência cultuando o bem, a fraternidade e o despojamento?

Ruth

A dor e a paz eu sinto a cada instante,
Perdi o meu amor de toda vida,
Amei-a sempre desde que era infante,
Sem aceitar jamais a despedida.

Nos céus, Deus a recebe como santa,
De lá a todos nós protegerá.
A Virgem cobrirá com sua manta,
Mais bela que a da bela de Sabá.

A paz é que, no tempo, a reverei,
Pois ela sempre foi o meu caminho
E versos para ela escreverei,
Com Cristo, em pleno amor e com carinho.

Dê-me força, querida, nesta trilha,
Para bem conduzir nossa família.

Amo-te sempre

Eu te amo, Eu te amo, Eu te amo, amada minha
No passado escrevi, pleno de amor,
O tempo passa e sigo a mesma linha
De continuar amar-te com ardor.

A distância do eterno nos separa,
Não há, porém, no amor qualquer distância,
Talvez amar-te tanto é coisa rara,
Mas tem este querer doce fragrância.

Tu lembras quando a ti toda semana
Sonetos e poemas te compus?
Mas hoje, continuas soberana
Em meus versos, brilhando tua luz.

Consola-me saber que cada dia
Mais perto estou de ver-te, na alegria.

Meu aniversário

Ao acordar senti tua presença
Como em ouvir “Feliz Aniversário”
E teu amor lembrado, em nossa crença
Forjado no bater de um campanário.

É como se estivesses ao meu lado
Com filhos, genro, nora e com os netos,
Estes comigo estão e abandonado
Nunca me sinto em meus sonhos completos.

Eu sei que onde estás a nós bem vês,
Intercedendo sempre pelos seus
E passam-se assim mês após mês,
A família na Terra e tu com Deus.

Em meus oitenta e sete, estou, querida,
Ainda em plena luta pela vida.

No pórtico dos 90 anos, Ives continua a semear o bem e os posicionamentos precisos, libertos das ideologias que tanto têm prejudicado o país, para gáudio dos seus familiares e de todos aqueles que têm o privilégio de conhecê-lo pessoalmente ou através dos seus ensinamentos.

My dear brother Ives Gandra Martins, a notable jurist, a righteous figure with an intense Christian faith, sent me a book, “Sonetos de amor para Ruth Ausente”, in which he pays tribute to his beloved wife, who died in 2021, and to whom he was married for 62 years.

 

 

Livro do Doutor Paul Farez editado em 1928

Preventiva, eis o que se espera da medicina futura;
que se torne sem demora a medicina atual.
É na prática regular, assídua,
que reside verdadeiramente a
arte de bem administrar sua saúde.
Docteur Paul Farez (1898-1940)
(“L’Art de bien gérer sa santé”, 1928)

Da seletiva biblioteca de nosso saudoso Pai, José da Silva Martins, escritor nas últimas décadas da sua longa existência (1898-2000), herdei  parte da extensa coleção. Meses atrás folheei “L’Art de bien gérer sa santé” (L’Expansion Scientifique Française, Paris, 1928) do Docteur Paul Farez (1868-1940), médico francês autor de inúmeras obras a abordar moléstias, causas e como enfrentá-las visando a uma cura possível.

Estou a me lembrar de um outro livro, este de Paul Carton (1875-1947), cujo destino ignoro. Dele o meu Pai mencionava o método necessário para a conservação de uma boa saúde e várias vezes ouvi-o citar um dos axiomas do autor, que dizia que aos trinta anos o homem deveria ser médico e padre no que concerne à saúde, física e mental.

Após folhear o livro do médico psicopatologista Dr. Farez, veio-me o interesse de paulatinamente percorrer as suas páginas e refletir sobre a acuidade, precisão e didatismo do médico-escritor, que percorre um número expressivo de doenças com naturalidade, sem a volúpia monetária tão presente na medicina particular especializada nos dias atuais, apenas com a vontade de transmitir conceitos que podem ajudar na prevenção das moléstias. Há constantes referências às providências primeiras, mormente se regressarmos a 1928! Essa naturalidade ao expor seus conceitos e aconselhamento forçosamente fez-me pensar no modus operandi de um médico respeitado entre seus pares e que nesse livro se preocupa em diagnosticar os males e suas consequências, o que o torna enciclopédico, àquela altura distante de um século das conquistas da medicina hodierna e  tendo a prevenção como primeira barreira frente às doenças.

Os seis capítulos, após a esclarecedora introdução, “A saúde por meio da medicina preventiva”, abordam as moléstias físicas e psíquicas: As doenças, As pequenas misérias, As atitudes mentais, As emoções e as tendências, O comer, O beber. Subdivididos em vários subcapítulos, instruem o leitor, alertando-o insistentemente para que seja vigilante e aos primeiros sinais procurar inicialmente um médico de família, aliás bem mais comum em épocas passadas. Recordo-me do nosso clínico geral, Dr. Semi Sauda, que nos acompanhou com diagnósticos precisos nas primeiras duas décadas. Os capítulos do livro visam prioritariamente a esclarecer princípios elementares para a manutenção de uma boa saúde. Considera que a indiferença, a despreocupação e a inércia tantas vezes impedem o cidadão portador de um mal qualquer de procurar um médico. Frase do Dr. Paul Farez soa bem atual: “Tenho medo, diz-se correntemente, de que descubram alguma coisa, eu não quero saber”, peristilo da possível tragédia.

Fiquei a pensar na nossa realidade, comparada aos ensinamentos do Dr. Farez publicados em 1928. Em todos os capítulos o médico tece explicações claras sobre os males que afetam o humano. Enfatiza com frequência absoluta a importância da prevenção, máxime daqueles que vivem distantes das cidades ou no campo. Àquela altura as dificuldades de acesso aos centros maiores desencorajavam o cidadão a buscar tratamento. No livro em pauta, para os males menores indica tratamentos básicos. Comenta: “Sim, diante de algumas condições mórbidas, nós estamos, hélas!, quase desarmados, se não totalmente. Contrariamente, a maioria dos males são curáveis desde que diagnosticados a tempo; quase todos são evitáveis. O prático de hoje tende a ser um médico para aqueles com boa saúde. Ele exerce em seu entorno uma influência moral, esclarecendo os seus semelhantes, difundindo a higiene, profilaxia e a conservação da saúde, assim como a se distanciar das doenças. Nesses preceitos reside o verdadeiro triunfo da medicina! O médico o fará compreender que a saúde é o primeiro entre todos os bens, sem o qual todos os outros são desprovidos de charme, e também que a saúde não é um direito, mas uma recompensa: há que  merecê-la”. Em França, nos dias atuais o clínico geral é denominado médecin généraliste.

Entre tantos males que grassavam há um século atrás e que a ciência, através de pesquisas, conseguiu debelar há tempo, graças aos antibióticos, vacinas tantas, à parafernália de medicamentos, aos precisos exames laboratoriais e à evolução extraordinária da maquinaria cirúrgica, que resultam em bem maiores possibilidades para a cura, com acuidade o Docteur Paul Farez se detém nas moléstias mais comuns àquela altura, a enfatizar sempre e insistentemente a prevenção.

Merecem especial atenção aos distúrbios físicos que assolavam a França. Hemorragias cerebrais, demência, arteriosclerose, hipertensão, tuberculose… Detém-se nas práticas saudáveis, na escolha dos alimentos, na bebida moderada, na insônia, para a qual reserva subcapítulos preciosos. Todos esses temas são tratados com uma dose de afeto, poder-se-ia acrescentar, resultado de sólida cultura humanística do autor.

Determinados órgãos são pormenorizados, o fígado, o esôfago, o que faz supor a quantidade de pacientes tratados. Quanto ao primeiro, preocupa-se com a insuficiência hepática, que “evolui discreta, sorrateira, silenciosa. No início ela passa desapercebida; eis um doente que se ignora. Quando ela se manifesta, há muito tempo está instalada”. Sobre as crianças de pais com insuficiência hepática, tece interessante consideração: “Vossas crianças! Herdarão seus bens? Não é certeza. E vossos males? Não duvide, pois são herdeiros desde a infância”.  No subcapítulo sobre alimentos e bebidas, ao abordar o vinho comenta: “Na França, país dos vinhedos, o alcoolismo, hélas, não cessa de crescer. Mas o vinho não é o responsável, tenha a certeza; todo o mal vem daquilo que bebemos, melhor dizendo, dos aperitivos”. Quanto ao esôfago, preocupa-se, e muito, com problemas advindos nas refeições, em especial com espinhas de peixes ou ossos de pássaros que se instalam e que podem levar à morte, máxime dos habitantes de lugares mais ermos.

O Dr. Paul Farez dedica um capítulo sobre as emoções e os sentimentos e pormenoriza o benefício das lágrimas, os cuidados que se deve ter com a higiene mental, os afetos na terceira idade…

Contudo, um subcapítulo tem especial interesse: “O câncer tem cura?” Àquela época, morriam do mal 40.000 anualmente, só em França. Enfatiza, “… confessemos com humildade: o câncer continua a ser o grande enigma médico; nada sabemos nem da sua origem, tampouco da sua natureza – portanto, seu tratamento não existe”. À medida que o tema é desenvolvido, o Dr. Farez indica que processos como cirurgia tão logo o mal detectado, eletroterapia, radioterapia poderiam ter tênues resultados. A biopsia já existia e o autor a elogia bem, mormente como alerta. Estou a me lembrar de que em 1915, treze anos antes da edição do livro em pauta, o grande compositor Claude Debussy (1862-1918), após dois anos já com sintomas, foi operado de um câncer retal, vindo a falecer em Paris em decorrência da doença três anos após. Curiosamente, o Dr. Farez questiona: “Qual seria o agente causal do câncer? Um micróbio, um parasita, um fermento? Irritações externas, perturbações das secreções internas, perversão do crescimento celular, diátese especial, artritismo, hereditariedade? Todas as hipóteses foram invocadas; nenhuma delas apresenta a menor prova”. Um século após, apesar dos avanços da medicina nesse mister a buscar a cura do Câncer, a humanidade aguarda a tão esperada erradicação desse mal.

Foi-me de real interesse a leitura de “L’Art de bien gérer sa santé”. O espaço que reservo aos blogs semanais impossibilitam tratar de todos os palpitantes e tão bem esclarecidos temas expostos pelo Dr. Paul Farez. Contudo, para finalizar, mencionarei uma frase do autor constante do subcapítulo do quarto capítulo: “Por que e como as pessoas se tornam dependentes de drogas?”. A menção, publicada em 1928, é atualíssima e poderia ter sido escrita neste sábado, 29 de Junho de 2024: “Dificilmente passa um dia sem que a imprensa noticie a prisão ou a condenação de algum traficante, detentor ou consumidor de morfina ou cocaína. Isso prova que nossa polícia está vigilante, mas também que essas drogas continuam a causar estragos”.

I enjoyed reading “L’Art de bien gérer sa santé”, by the illustrious Dr. Paul Farez, a psychopathologist and author of several books on medicine. Written in 1928, it belonged to my late father’s library.

 

 

Leitor atento à procura de esclarecimento a respeito


Não te doas do meu silêncio:
Estou cansado de todas as palavras.
Não sabes que te amo?
Pousa a mão na minha testa:
Captarás numa palpitação inefável
O sentido da única palavra essencial

— Amor.
Manuel Bandeira (1886-1968)

Entre as muitas mensagens recebidas sobre o blog anterior, todas muito bem-vindas, a de Marcelo, amigo de longa data, chamou minha atenção. Solicitava que me estendesse sobre a associação das palavras música e inefável, objeto da epígrafe do blog anterior, de autoria do filósofo e musicólogo francês Vladimir Jankélévitch (1903-1985).

Da vasta bibliografia do ilustre professor francês, máxime sobre música e que me proporcionou escrever artigos a respeito, “La Musique et l’Ineffable” foi um dos livros que mais me causou impressão (Paris, Du Seuil, 1983). Seus debruçamentos sobre os compositores Claude Debussy, Gabriel Fauré,  Maurice Ravel e os espanhóis são referências devido à análise de suas obras, distanciando-se daquelas mormente difundidas a partir da segunda metade do século XX, dissecações alicerçadas em métodos que não captam a essência da música nos aspectos voltados às origens da criação de cada autor e dos seus porquês sob as égides psicológica, filosófica, afetiva, dramática, trágica, descontraída. São tantas as possibilidades influentes na vida de cada compositor que a história elegeu e daqueles ainda a serem redescobertos! Independentemente do estudo teórico profundo para a compreensão de uma obra, o olhar de Jankélévich sobre o maravilhamento de uma composição que permaneceu é essencial para intérpretes, compositores, estudiosos e os ouvintes que encerram o círculo, descortinando novos horizontes de percepção.

O célebre Dicionário Moraes, em uma de suas edições (1891), expõe o significado etimológico da palavra inefável: “indizível, inexplicável com palavras”. Ao abordar o tema, associando compartimentos da Música ao Inefável, Jankélevich nos convida a uma leitura de como entender a sua inefabilidade, dimensionando a obra e a escuta. Afirmaria: “O que é a música? Pergunta Gabriel Fauré à procura do ‘ponto intraduzível’ da real quimera que nos eleva acima daquilo que é…”. Creio importante citar uma conceituação de Jankélévitch que preenche conceitos sobre o inefável: “Há na música uma dupla complicação, geradora de problemas metafísicos e morais, e bem feitos para entreter a nossa perplexidade. Por um lado, a música é por sua vez expressiva e inexpressiva, séria e frívola, profunda e superficial; ela tem e não tem sentido. É a música um divertimento sem objetivo? Ou bem ela é uma linguagem cifrada e como um hieróglifo do mistério? Ou talvez as duas? Mas esse equívoco essencial tem também um aspecto moral: há um contraste confuso, uma irônica e escandalosa desproporção entre o poder encantatório da música e a inevidência fundamental do belo musical”.

Ficaria a pergunta: aplica-se a palavra inefável a qualquer gênero musical? A magia do termo se coaduna majoritariamente com a música clássica, de concerto ou erudita, a depender da sua qualidade essencial. Pode também ser aplicado a determinadas canções de índole popular de nossa terra e de alhures, distribuídas em vários gêneros. Poder-se-ia considerar determinadas melodias que adquiriram, pelo seu poder penetrante, a mente e o coração do ser humano em termos mundiais.

Compreende-se a afinidade de Jankélévich, máxime pelas obras de Fauré, Debussy e Ravel, baseada preferencialmente na presença da qualidade etérea em tantas criações dos geniais compositores. Tendo interpretado a integral para piano de Debussy e a maioria das criações de Fauré e Ravel para piano ao longo dos anos, compartilho integralmente o posicionamento do ilustre musicólogo. Jankélévitch afirma que “há o benefício da catarse musical: passar do estado do homem contestado ao do homem liberto, do estado de guerra ao de paz e da preocupação à inocência – não seria esse um efeito de sabedoria? E não somente a música torna o homem, por alguns instantes, amigo de si mesmo, mas o reconcilia com toda a natureza”.

O termo inefável tem a aura do sagrado. É a antítese de tudo que possa ter conexão com a vulgaridade, banalidade, nível inferior da arte ou então, num aspecto diametralmente oposto, com determinadas correntes da música contemporânea avessas a quaisquer manifestações da emoção. Pode-se associá-lo à obra que transcende, fato seletivo que elimina a criação apenas boa, mas sem a perpetuação da inefabilidade.

Entendo a aplicação do termo inefável na obra coral que segue:

Clique para ouvir, de Eurico Carrapatoso (1962-), Ó Meu Menino (Magnificat em talha dourada):

https://www.youtube.com/watch?v=Mdud4L0yR4U&t=79s

Não haveria a mesma sensação ao se ouvir, de François Servenière (1961-), Promenade sur la Voie Lactée? Clique para ouvi-la, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=LSfmHoqmjoo&t=3s

Nem sempre, no campo da música clássica, uma obra hiper conhecida pelos admiradores do gênero tem a chancela da inefabilidade. O fato de Jankélevitch tanto insistir no termo, em parte considerável da obra de Gabriel Fauré, tem fundamento através da expressa transcendência desprovida da busca da aceitação pública, processo este que pode gerar o aplauso, mas não a aura. É bem provável que Fauré não penetre mentes e dedos da maioria dos pianistas, justamente por não “levantar” plateias, mas aqueles cultores do belo saberão apreender essencialidades. Gabriel Fauré, um dos eleitos de Jankélévitch, tem inúmeras criações que possuem a aura própria do termo inefável, caso específico do Nocturne nº 6.

Clique para ouvir, de Gabriel Fauré, Nocturne nº6, na interpretação de JEM:

https://www.youtube.com/watch?v=JIWPoPmGrvw

Vladimir Jankélévitch observa com acuidade: “A arte dos sons é, sem metáforas, a intimidade da interioridade e do foro íntimo das outras artes: para admitir que a música traduz a alma de uma situação e torna esta alma perceptível ao ouvido da nossa alma não é necessário dar-lhe um alcance transfísico… Na realidade, a sonoridade física é algo mental, fenômeno imediatamente espiritual”.

Com insistência tenho salientado, através dos blogs, que o legado musical dos grandes mestres tem sido, ao longo dos séculos, um bálsamo neste mundo tão conturbado. Preservemos esse legado, pois a ele pertencem, felizmente, uma infinidade de obras inefáveis.

A reader’s request led me to this post about the term “ineffable”. I refer to a fundamental book by the French philosopher and musicologist Vladimir Jankélévitch, “La Musique et l’Ineffable”.