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Visões enriquecedoras sobre o livro de Dino Buzzati

Todo bom livro deve saber provocar a espera:
ler é esperar a sequência.
Frédéric Beigbeder (1965-)
(escritor e crítico francês)

A recepção ao post anterior foi expressiva, quase todos os e-mails com frases curtas louvando o instigante romance de Dino Buzzati.

Selecionei algumas mensagens de leitores que já conheciam o livro. Alguns também assistiram ao filme que leva o mesmo título. O certo é que “O Deserto dos Tártaros” é uma obra que suscita não apenas uma leitura. A tradutora Aurora Bernardini me afirmou que o notável sociólogo, crítico literário e professor Antônio Cândido (1918-2017) leu o livro reiteradas vezes, tendo escrito um ensaio crítico basilar sobre o conteúdo.

Ricardo Tacuchian, compositor e professor universitário, escreve:

“Quanta profundidade em sua resenha sobre o livro de Dino Buzzati! Estaríamos todos nós internados numa fortaleza, aguardando a invasão dos Tártaros? No entanto, um belo texto como o seu é um refrigério para todo este deserto que pode ser, também, um florescente parque.”

Carolina Ramos, escritora, poetisa, artista plástica:

“Não posso calar a  minha surpresa com relação à sua  explanação sobre o livro ‘O Deserto dos Tártaros’ que, ‘abelhudamente’, fui buscar no seu blog. Não apenas seus dedos mas também a sua pena é de ouro!”

Flávio Amoreira, escritor, poeta e crítico literário, pondera:

“José Eduardo, deve-nos mais análises desse quilate de outros autores, sua dissecação de uma obra que inaugura toda uma vertente de realismo fantástico e congêneres sugere mais e mais autores por ti lidos. Fico muito feliz por ter aproximado a imensa mestra Aurora Bernardini de você, que sucede Gilberto Mendes em minhas raras afeições associadas à interlocução intelectual que escasseia num mundo ‘frivolizado’. Saúdo o amigo e a literatura italiana na semana em que celebramos outro vate universal: Ítalo Calvino, que faria cem anos neste domingo, 15 de outubro. Enfatizo a  importância de mais literatura no teu antológico blog.”

Marcos Leite, arquiteto, comenta:

“Hoje me atrasei na leitura do seu blog, não o peguei na saída do forno aos 11 minutos, mas o devorei agora pela manhã. Esse livro, ‘O Deserto dos Tártaros’, me foi marcante, ganhei-o de presente de aniversário no início dos anos 80 de uma querida estagiária que trabalhava no meu escritório. Visto agora, passados 40 anos e com a memória rebuscada pelas suas sempre pertinentes e aguçadas considerações, me fez refletir sobre o sentido filosófico das esperanças e perspectivas humanas projetadas e a realidade que vai se descortinando na vida ao longo dos dias, dos anos e das décadas. Os acontecimentos, bons e maus, são consequências das nossas ações pretéritas e não apenas das nossas vontades. Assistir passivo ao nascer e ao por do Sol do alto da muralha não alterará a rotina e esse é um ensinamento da escola da vida que todos, em seu íntimo, percebem, mas poucos se sujeitam a por em prática, esperando que a horda dos Tártaros venha lhe dar um novo rumo. Os seres humanos deste bendito planeta ainda têm muitas fortalezas a abandonar e muitos desertos a desbravar.”

Eliane Ghigonetto Mendes, viúva do compositor Gilberto Mendes, tece ponderações sob a égide espiritualista:

“De fato, morre-se mais de cansaço de não saber por que se vive do que de cancro e do coração. O não saber do porquê da nossa existência, que é saber o que é o Amor, precisando para isso que se realize a Grande Obra de nossa Viagem Interna em direção à Perfeição pela Razão e pela Sabedoria de volta a reinar… Alma, espírito e corpo, unidos em cada segundo de nossas vidas, inseparáveis, para que a nossa Consciência Suprema possa sempre nos observar e guiar…”

Regina Maria, revisora, apresenta comentário arguto sobre a interpretação do livro frente ao filme:

“Assisti ao filme O Deserto dos Tártaros, mas nunca li o livro. Através de seu blog notei algumas diferenças entre os dois. O filme não é atemporal, por exemplo, porque logo no início define-se o ano, 1907, em que Giovanni Drogo termina a escola militar e segue para uma fortaleza numa fronteira distante. O próprio ator principal comentou numa entrevista que o filme não foi uma adaptação fiel do livro, porém manteve suas contradições e tensão dramática. Imagino que algumas situações tenham sido inventadas na passagem para a linguagem cinematográfica. A diferença maior, verdadeira surpresa, é reservada para o final. Se no livro o ataque inimigo nunca se concretiza, no filme a invasão dos tártaros realmente acontece. A meu ver, foi uma alteração bem-vinda. Drogo, que esperara toda a vida por esse momento, adoece e não comparece ao encontro que justificaria sua existência. Se, como no livro, os invasores não tivessem chegado, a espera dos militares no forte continuaria indefinidamente e o revés do personagem principal não teria tanto peso. Mas seus colegas, alguns, como ele, tendo passado anos à espera do confronto, estão a postos. Nas palavras de um dos soldados, muitos dariam tudo para ficar e aproveitar a ocasião. Para os que ficam, a expectativa de transformação se cumprirá com o combate iminente. Esse detalhe do filme, a meu ver, superdimensiona a desdita de Drogo. Ele fracassa duas vezes: não consumando seu projeto de vida e vendo seus companheiros de armas fazê-lo.”

Gildo Magalhães, professor titular de Ciência da Comunicação da FFLESCH- USP:

De ‘O Deserto dos Tártaros’ apreciei também a competente versão fílmica de Valerio Zurlini (com Jacques Perrin, Philippe Noiret, Vittorio Gassman e outros). Todavia, tem razões o caro amigo, pois não há como um filme ‘traduzir’ um livro (traduttore – tradittore….) Parece-me um pouco como as transcrições musicais – mesmo quando boas, serão algo diferentes do original?”

Depende da competência de quem transcreve uma obra musical. No caso específico das composições de J.S.Bach para órgão ou coral transcritas para piano, há resultados extraordinários, que se tornaram legado para os intérpretes, mercê das qualidades de Liszt, Busoni, Siloti, Kempff, Myra Hess e outros, pianistas excelsos.

Apraz-me saber que leitores que desconheciam o livro de Dino Buzzati propuseram-se  a adquiri-lo, levando em conta o conteúdo tão apropriado às esperas interrogativas do mundo atual.

The previous blog, focusing on Dino Buzzati’s “The Stronghold”, was the subject of many messages, all of them relevant. I’ve selected five for this post, confirming the immense quality of this great novel.

 

A espera e a existência estiolada

Morre menos gente de cancro ou de coração
do que de não saber para que vive;
e a velhice, no sentido de caducidade,
de que tantos se vão,
tem por origem exatamente isto:
o cansaço de se não saber para que se está a viver.
Agostinho da Silva
(”As Aproximações”)

A morte é a curva da estrada,
Morrer é só não ser visto.
Fernando Pessoa

Recebi semanas atrás, da minha dileta amiga Aurora Bernardini, professora titular da Universidade de São Paulo, notável tradutora, escritora e crítica literária, “O Deserto dos Tártaros”, de Dino Buzzati (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 8ª edição, 2020). Deve-se a ela e a Homero Freitas de Andrade a tradução do instigante livro. Na década de 1980 li “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco, impecavelmente traduzido por Aurora.

Dino Buzzati (1906-1972) atuou em várias áreas, pois jornalista, escritor e artista plástico. Uma das personalidades mais destacadas da literatura não apenas italiana, mas também da Europa. Entre seus livros destaca-se “O Deserto dos Tártaros” (1940), obra-prima do autor, que ganharia extraordinária repercussão nos meios literários.

Dino Buzzati não situa os palcos dos acontecimentos. O livro é ageográfico e atemporal, mas faz supor que as ações se passem ao norte da Itália, pois o autor nasceu em Belluno, comuna italiana da região do Vêneto, no norte da Itália. Montanhas abruptas, estão próximas à cidade. Esses ingredientes possibilitam o entendimento, ao menos pictórico, do cenário. O período igualmente é vago. Comunicações, armamentos, carruagens, luneta, iluminação podem sugerir o século XIX. Essas imprecisões dimensionam a concentração no essencial, a espera, através de gerações de militares, de um vir a ser que se estiola graças ao imobilismo ditado pelas incertezas.

O autor do prefácio, Ugo Giorgetti, insere em seu texto preciso um testemunho de Buzzati que possibilita antever a narrativa: “De 1933 a 1939 trabalhei no Corrieri della Sera no período noturno. Era um trabalho monótono e aborrecido, e os meses passavam, e passavam os anos, e eu me perguntava se seria sempre assim, se as esperanças, os sonhos, inevitáveis quando se é jovem, iriam se atrofiar pouco a pouco, se a grande ocasião viria ou não”.

A figura central, o jovem militar Giovani Drogo, morador da cidade, teria de cumprir estágio em uma enorme e sombria fortificação em região montanhosa que, desde épocas remotas, era anteparo à possível invasão dos tártaros. O acesso, realizado a cavalo, é longo e cansativo. Ao chegar, a descrição de segmento do forte aguça a imaginação do leitor quanto à sua dimensão, pois Drogo é guiado por um tenente da guarda: “… os dois se dirigiram para um vasto corredor, do qual não se conseguia ver o fim”. Buzzati pormenoriza ao longo do livro as tantas outras configurações da fortaleza, internas e externas. Centenas de soldados lá viviam a guarda-las. Da vontade de retornar à cidade quase imediatamente após a chegada, à espera do desenrolar dos quatro meses iniciais após “promessa” de militar superior, “…e talvez houvesse por trás disso o pensamento consolador de que estaria sempre em tempo de partir”, décadas seguiram o seu curso.

Não sem questionamentos interiores, a sedimentação de anseios e dúvidas selaria o destino de Giovani Drogo.

Dino Buzzati descreve reiteradas vezes segmentos do entorno da fortificação: “montanhas rochosas”, “despenhadeiros pontiagudos”, “penhascos escarpados” e “…adiante existe um grande deserto” Nas muitas alusões, talvez para reforçar o narrar, fica evidente a presença do sombrio a contrastar com a ausência descritiva do belo. As estações e intempéries são reiteradas vezes mencionadas com pinceladas desprovidas de emoção. Cenário adequado para complementar o enredo.

São dois os retornos de Giovani Drogo à cidade natal. Num primeiro, sente um distanciamento de sua mãe, se considerado for o convívio no mesmo espaço até a sua primeira ida ao forte aos 20 e tais anos. Encontra-se com uma amiga e laços anteriores possibilitariam um recomeço afetuoso. O som de um piano, talvez como estímulo ao clima do encontro voluntário, é várias vezes mencionado. Nesse ambiente, envolto pelas sonoridades, bastariam umas poucas palavras para que a saga de Giovani Drogo fosse outra. Elas não vieram. “No íntimo, existe até uma tímida satisfação de ter evitado bruscas mudanças de vida, de poder entrar de novo tal e qual na velha rotina”. Muitos anos após uma segunda visita, conscientiza-se de que a relação com seus conhecidos fenecera. Aqueles com quem outrora convivera tiveram suas realizações e Giovani Drogo surge quase como um estranho: a mãe não mais existia, a amiga afetuosa há tempos partira para a Holanda. Tudo a indicar o destino definitivo, a fortificação. Nele permanece, sempre a aguardar o inimigo. Sinais de luzes observados pelas sentinelas, periodicamente, antevendo a esperada chegada dos tártaros, insinuam a espera sempre adiada. Expectativa e esperanças que evaporam e o evento maior não acontece. Os tártaros não chegam. Envelhecido, doente, vive momentos angustiantes, pois há indícios de que o inimigo se aproxima.  Todavia, uma carruagem, com o fim expresso de retirar Giovani Drogo às pressas para tratamento na cidade, chega à construção militar. Em breves palavras, Buzzati sintetiza o drama, “enxotado do forte como peso importuno”. Dos novos militares, apenas “…uma despedida curtíssima, com aquela afeição genérica que é própria dos jovens para com as velhas gerações”. No retorno faz parada em uma pousada. Esvai-se a existência… Giovani Drogo fracassa ao não assistir ao único desiderato de vida, o enfrentamento. À noite, solitário e moribundo, encontra o fim. A morte como redentora.

“O Deserto dos Tártaros” é uma obra com várias interpretações, daí sua riqueza reflexiva. O homem a buscar a plena humanidade? Hesitações que o levam à estagnação não sonhada, mercê da asfixiante rotina que o impede de perceber devidamente a corrida do tempo. Para Giovani Drogo, a espera do confronto era a esperança. “No fundo teria bastado uma simples batalha, uma única batalha, mas na verdade, atacando em uniforme de gala e sendo capaz de sorrir ao precipitar-se em direção dos rostos herméticos dos inimigos”.

Aspectos fulcrais da rígida disciplina militar permeiam a saga daqueles que permaneciam na fortificação. Os personagens de “O Deserto dos Tártaros” transitam em suas diversas funções e obedecem à hierarquia. O afeto é sufocado pela visionária espera sempre adiada.

Em situação rotineira, Giovani Drogo vigia o lugar mais alto de uma parte do forte, “… o reduto inteiro e cem metros de muralha dependeriam só dele”. “Veio-lhe a mente que não ficava bem, para o oficial de guarda, dormir”. Não obstante, em outro tempo, ele não resiste e dorme ao alvorecer, após noite gélida. Faz-me lembrar do livro capital de Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944), “Citadelle”, obra igualmente atemporal e ageográfica. O narrador, senhor berbere que reinava sobre o Império, ao fiscalizar a fortificação encontra uma sentinela a dormir. Apesar de considerações serenas a respeito da responsabilidade e do apreço à sentinela, condena-a à morte, pois, ao ter adormecido em uma função essencial, colocou o império à mercê de um possível ataque inimigo. Sob outra égide, Buzzati narra a tragédia do soldado que, tentando retornar ao forte, não se lembrava da senha obrigatória e sempre renovada. Embora reconhecido pelas sentinelas, é abatido com um tiro. Obediência aos protocolos. Um segundo militar encontra a morte durante uma cavalgada investigativa com outros parceiros, “…morrera no topo de uma montanha, no cerne da tempestade, conforme ele quis, realmente com muita elegância”. São as duas vítimas fatais do romance, a anteceder a morte de Giovani Drogo.

Numerosos os personagens de “O Deserto dos Tártaros”. Atravessam a vida de Giovani Drogo com suas personalidades distintas, uns mais amistosos, outros apenas frutos da convivência cotidiana. Conversas, alguns raros passeios, refeições conjuntas, jogos de cartas, inexistência da amizade estreita. Dos superiores hierárquicos aos de menor patente, o convívio de Giovani Drogo se estabelece, em princípio, sob a égide da invasão dos tártaros. O quando do instante do acontecido? De um major, após um vislumbre falso de ataque inimigo: “Agora então, depois da última experiência, quem você quer que ainda acredite nisso seriamente?”

Por vezes Buzzati prolonga-se à exaustão sobre determinado episódio, aparentemente sem interesse. Quanto aos longos diálogos entre os personagens do forte sobre temas do cotidiano, estariam deslocados se não estivessem inseridos no contexto do ritmo sem brilho e inexpressivo da rotina. Reprises da espera, nuances interpretativas e “O tempo, inexplicavelmente, pusera-se a correr cada vez com maior velocidade, engolindo os dias uns após os outros”. Não obstante, seria possível entender que essa técnica tem significado se associada à monotonia da rotina, maiormente nas várias situações voltadas às luzes detectadas à distância pelas sentinelas. A luz como alerta, a luz como prenúncio do fim da espera? Tomado por extrema e perturbadora atonia, no peristilo da morte, “O major Giovani Drogo, consumido pela doença e pelos anos, pobre homem, forçou o imenso portal negro e deu-se conta de que os batentes caíam, abrindo espaço para a luz”. A luz como esperança da vida e da morte. Sente que “jogara fora os melhores anos, agora queria ao menos esperar até o último momento”.

“O Deserto dos Tártaros”, ao aprofundar-se na imaterialidade da espera, põe a nu a tragédia humana. Indagado, o homem de qualquer geografia aguarda algo. Mesmo que não tenha qualquer almejo na vida, sua certeza é a morte, e o preceito medieval mors certa, hora incerta é o único sem contestação.

“The Stronghold”, also translated as he “Tartar Steppe”, a work by Dino Buzzati, is an indispensable book, one of the great novels of the 20th century. The setting of the novel is undetermined, with no specific location and time.  The reader is told the story of a young soldier who is sent to a fortress and, amidst doubts and a few certainties, remains there for decades, waiting for the Tartars’ invasion, which never happens. A lifetime passes and, sick, his only certainty is a redemptive death.

 

Organizada por Laudelino Freire

Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como indizível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe
Cuja ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!

Raymundo Corrêa (1860-1911)

Livros de pequena dimensão escondem-se nas estantes por trás de outros maiores e por vezes são esquecidos. Foi o que ocorreu com a “Pequena Edição dos Sonetos Brasileiros” (Rio de Janeiro, F. Briguiet, 1929), organizada por Laudelino Freire (1873-1937), professor, jornalista, crítico literário, político e filólogo. Em 1923 entrou para a Academia Brasileira de Letras na vaga de Ruy Barbosa. Encontrei a “Pequena Edição…” adormecida, mas bem conservada em sua encadernação.

Uma primeira coletânea publicada em 1904 continha 500 Sonetos “escolhidos entre os melhores desde o primeiro soneto de Gregório de Mattos até os nossos mais jovens poetas pelo Dr. Laudelino Freire”. A mesma editora F. Briguiet ampliaria a coleção em 1913, explicando-se: “segunda edição admiravelmente ampliada e enriquecida com 500 produções e 481 retratos, lembramo-nos de, para maior vulgarização de tão notável trabalho, dela extrair a presente edição, a que intitulamos de Pequena Edição dos Sonetos Brasileiros ”.

Momentos de deleite foram os que senti ao reler os 122 Sonetos criteriosamente selecionados por Laudelino Freire, embora sombrios em grande parte, contemplando o mesmo número de poetas que em suas épocas cultuaram a forma poética que obedece a determinadas regras, sendo estruturada por catorze versos distribuídos em estrofes, dois quartetos e dois tercetos. Todos os 122 Sonetos obedecem a essa formação. Quando o escritor e poeta português Guerra Junqueiro (1850-1923) define a música como “poesia incorpórea”, poderia eventualmente ter pensado na palavra Soneto, que tem origem na Itália, sonetto, ou pequeno som, devido, é possível, ao fato da aproximação verso – som. Atribui-se a Francesco Petrarca (1304-1374) a criação da forma do Soneto.

As escolhas de Laudelino Freire para essa “Pequena Edição…” abrangem uma plêiade de poetas, que se estende de Basílio da Gama (1740-1795) a Onestaldo Pennaforf (1902-1987), considerando sucessivas escolas literárias: arcadismo ou neoclassicismo, romantismo, realismo, naturalismo, parnasianismo, simbolismo, pré-modernismo, modernismo, pós-modernismo… Todavia, o autor não contempla apenas poetas renomados, pois concentra-se nos Sonetos a partir daquilo que entende por qualidade. Assim a pensar, deu espaço àqueles que, professando outra atividade, seja na diplomacia, jornalismo, magistratura ou política, escreviam sonetos.

Escolhi seis Sonetos, entre os 122 dessa “Pequena Edição…”, guardando a ortografia, as acentuações e os retratos da edição de 1929. Quanto aos espaços em determinadas pontuações, a “Pequena Edição…” utiliza as regras adotadas em França.

Pedro de Alcantara (D. PEDRO II – 1825-1891)

“Soneto”

Não maldigo o rigor de iniquia sorte,
Por mais atroz que seja e sem piedade,
Arrancando-me o throno e a majestade,
Quando a dois passos só estou da morte !

Do jogo das paixões minh’alma forte
Conhece a fundo a triste realidade,
Pois, se agora nos dá felicidade,
Amanhã tira o bem, que nos conforte.

Mas a dôr que excrucia, a que maltrata,
A dôr cruel que o animo deplora,
Que fere o coração e quase o mata,

É ver da mão fugir, à extrema hora,
A mesma boca lisonjeira e ingrata,
Que tantos beijos nella poz outr’ora !

LUIZ GUIMARÃES JUNIOR (1844-1898)

“Visita á Casa Paterna”

Como a ave que volta ao ninho antigo,
Depois de um longo e tenebroso inverno,
Eu quis também rever o lar paterno,
O meu primeiro e virginal abrigo :

Entrei. Um gênio carinhoso e amigo,
O phantasma talvez do amor materno,
Tomou-me as mãos, – olhou-me grave e terno,
E, passo a passo, caminhou comigo.

Era esta a sala (oh! Se me lembro ! e quanto !)
Em que, da luz nocturna á claridade,
Minhas irmãs e mina Mãe… O pranto

Jorrou-me em ondas… Resistir quem há-de ?
Uma ilusão gemia em cada canto,
Chorava em cada canto uma saudade.

OLAVO BILAC (1865-1918)

“Virgens Mortas”

Quando uma virgem morre, uma estrela aparece,
Nova, no velho engaste azul do firmamento,
E a alma da que morreu, de momento em momento,
Na luz da que nasceu palpita e resplandece.

Ó vós, que, no silêncio e no recolhimento
Do campo, conversais a sós quando anoitece,
Cuidado ! – o que dizeis, como um rumor de prece,
Vai sussurrar no céu levado pelo vento…

Namorados, que andais com a boca transbordando
De beijos, perturbando o campo sossegado
E o casto coração das flores inflamando,

- Piedade ! – Ellas vêm tudo entre as moitas escuras
Piedade ! esse pudor ofende o olhar gelado
Das que viveram sós, das que morreram puras !

 

VICENTE DE CARVALHO (1866-1925)

“Velho Thema”

Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada;
Nem é mais a existência, resumida
Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz anciosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa que sonhamos,
Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim : mas nós não na alcançamos,
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.

MANUEL BANDEIRA (1886-1968)

“Inscrição”

Aqui, sob esta pedra, onde o orvalho roreja,
Repousa, embalsamado em óleos vegetais,
O alvo corpo de quem, como uma ave que adeja,
Dançava descuidosa, e hoje não dança mais…

Quem não a viu é bem provável que não veja
Outro conjunto igual de partes naturais.
Os véus tinham-lhe ciúme. Outras, tinham-lhe inveja
E ao fita-la os varões tinham pasmos sensuais.

A morte a surpreendeu um dia que sonhava.
Ao pôr do sol, desceu entre sombras fiéis
A terra, sobre a qual tão de leve pensava…

Eram as suas mãos mais lindas sem anéis…
Tinha os olhos azuis… Era loura e dançava…
Seu destino foi curto e bom… Não a choreis

 

MENOTTI DEL PICCHIA (1892-1988)

“Soneto”

Tambem, como esse bosque eu tive, outr’ora,
Na alma, um bosque cerrado de emoções.
As palmeiras das minhas ilusões
Iam levando o fuste, espaço a fora.

Seriam sonhos; era uma phetora
De crenças, de desejos, de ambições…
Não havia, por todos os sertões,
Mais luxuriante e mais violenta flora

Ai! Bosque real, é o tempo das queimadas !
É Agosto, é Agosto ! o fogo arde o que existe
Em fogachos sinistros e medonhos.

Ai de nós !… Somos almas desgraçadas,
Pois, na luz de um olhar languido e triste,
Também ardeu o bosque dos meus sonhos…

 

Laudelino Freire, ao selecionar número tão grande de “sonetistas”, deu a sentir ao leitor vindouro uma espécie de “prana” que pairava entre cultores do gênero poético. Tantos presentes na “Pequena Edição dos Sonetos Brasileiros” permaneceram na História como poetas ou escritores: Gonçalves Dias, Machado de Assis, Fagundes Varella, Castro Alves, Cruz e Souza, Augusto dos Anjos, Guilherme de Almeida, Mário de Andrade… Escreviam na excelência, pois conheciam a língua-mãe em suas entranhas. Não que as várias tendências poéticas advindas com o modernismo não cultuassem o trato das palavras. Deram novos rumos e estão sempre in progress quanto à forma e conteúdo.

A leitura desses Sonetos colhidos por Laudelino Freire evidencia, sobre outra égide, o esgarçamento que está a se acentuar relativo à nossa língua mater, no cotidiano e na escrita. Revelam esses Sonetos, num distanciamento de séculos da atualidade, o trato da língua portuguesa que não se distanciava da praticada em Portugal. Quando o bom poeta Heitor Aghá Silva (1954-), da Horta, capital da ilha Faial, uma das nove do arquipélago dos Açores, denunciou enfaticamente o perigo de contágio que era transmitido pelas novelas brasileiras em termos da vulgarização da língua mater, “… telenovelas tão pobres, tão estupidamente supérfluas, tão assustadoramente embrutecedoras…”, não previu o que adviria em nosso país (vide blogs: “A Voz e o Eco captados além mar”, 20/03/2010 e “Um trágico amalgamar”, 27/03/2010). Com o surgimento da internet, celulares e a inteligência artificial, rapidamente passou-se ao desprezo, voluntário ou não, pelos princípios linguísticos básicos. Simplificados em “formulações codificadas”, incorporaram-se aceleradamente à linguagem falada palavras e construções de frases sem a menor preocupação com o trato gramatical. Mensagens de celulares são resumidas por motivo de concisão, negligenciando o conteúdo. Textos de “importantes” periódicos e de sites estão eivados de erros gramaticais. A transição tem sido abrupta, contrariamente à natural e lenta transformação de uma língua. Quando Vargas Llosa vaticina a decadência da erudição em termos globais em “La Civilización del espectáculo”, pode-se estender essa descida a todas as ramificações da arte e da literatura. “Formulações” novas surgem e desaparecem logo após. Palavras, muitas estrangeiras, têm guarida ampla e desaparecem sucedidas por outras tantas. Neologismos vulgares nascem e morrem, deixando campo a outros com o mesmo destino. Já não mais há a fixação no tempo para que ao menos determinada tendência artística ou literária persista. Não acontece o mesmo com a tecnologia, numa aceleração que faz com que determinada conquista em pouquíssimo tempo se torne obsoleta?

“Pequena Edição de Sonetos Brasileiros”, organized by Laudelino Freire (1929 edition), contemplates 122 sonnets, a 14-line verse form. Renowned poets and sonnet cultivators, not necessarily specialists in the art of the poem-writing, have been selected by Laudelino Freire.