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Gilberto Mendes e o multidirecionamento cultural

O mar é para mim como o Céu para um crente.
Vicente de Carvalho (1866-1924)

Comparecemos, Regina e eu, à palestra do poeta, escritor e crítico literário Flávio Viegas Amoreira, que abordou “a ligação das vanguardas musicais com seus correspondentes literários, especialmente os poéticos, e os diálogos e parcerias de Gilberto Mendes com os poetas concretistas”. O evento se deu em São Paulo, no Anexo da Casa Guilherme de Almeida, no último dia 15. Após a palestra foi lançada a nova edição de “Gilberto Mendes – Notas Biográficas” (vide blog: “Gilberto Mendes em duas publicações reveladoras”. 10/04/2021). Tenho no livro pequena colaboração, a abordar as 30 peças para piano que me foram dedicadas por Gilberto Mendes ao longo das décadas.

Flávio Amoreira é possuidor de uma cultura invejável e de uma pena que alia a criatividade ao texto castiço. Sua coluna em “A Tribuna” de Santos bem atesta essas virtudes inalienáveis.

Flávio desenvolveu sua palestra a percorrer as captações de Gilberto Mendes (1922-2016), jamais preso a uma estética definida, mas sabendo sempre extrair essencialidades de determinadas tendências musicais hodiernas, assim a agir também em relação à poesia, tantas foram as correntes de poetas anteriores a ele e outros, seus contemporâneos. Ao ler uma série de poemas de vários autores, Flávio Amoreira substanciou a pluralidade gilbertiana voltada à escolha do poema que melhor se adequasse a ideia da obra musical a nascer. Outras vezes o poema levava-o a buscar a inspiração das musas e o amálgama se dava. Importa considerar que Gilberto Mendes, tendo professado inúmeras tendências, não perdeu a noção das estruturas embasadas pela tradição: “Melodia é fundamental, que me perdoem os compositores que não conseguem compor uma melodia”.

O palestrante enfatizou algo fulcral na existência do homenageado, traduzido em várias obras tendo o mar como inspiração: sua Santos, o porto seguro a abrigar aspirações musicais e anseios de vida.

A certa altura da palestra, chamou-me a atenção a explanação de Flávio Amoreira sobre o pensamento de Gilberto a respeito das músicas erudita e popular, tendo inclusive, a corroborar a sua fala, lido alguns segmentos de “Viver sua Música – com Stravinsky aos meus ouvidos rumo à Av. Nevskiy” (vide blog com o mesmo título, 04/04/2009). Creio de interesse apresentar a posição segura do compositor, a “profetizar” situação que só se deteriora com o correr dos anos. Escrevia Gilberto Mendes: “E ela (música) é a única arte que tem duas categorias, a popular e a erudita. Não existe pintura popular e pintura erudita, literatura popular e literatura erudita, conforme existe na música. A existência de uma categoria de popular para a música mostra como, em toda a sua extensão, em seu todo, ela é acessível a qualquer tipo de público. A própria música popular por vezes tem aspectos eruditos. E vice-versa. Mas, paradoxalmente, a música erudita não tem nada a ver com a popular. É totalmente outro mundo, apesar de seu alcance também popular. São mundos longe de ser a mesma coisa, como pretendem os intelectuais populistas da mídia. O mundo da alta cultura inclui a cultura popular na criação de uma obra aberta, do signo novo; enquanto que o mundo da cultura popular não inclui a alta cultura, pode somente sofrer a sua influência, mas a exclui, por ser um mundo limitado pela sua obrigação de ir ao encontro do que a audiência espera. Canções de Schubert, Fauré, jamais serão ouvidas num show de música popular. Arranjos eruditos de Jobim, Chico Buarque, Paul Mc Cartney têm figurado com frequência nos concertos eruditos, sobretudo dos corais”.

Quatorze anos se passaram da publicação de “Viver sua Música”. Mercê do crescimento vertiginoso das redes sociais, acentuadamente o nivelamento entre o erudito e o popular se pulverizou, a tornar realidade inconteste a afirmação de Mario Vargas Llhosa, que já apontava em “La Civilización del espetáculo” dois aspectos essenciais: a queda vertiginosa da cultura erudita e o fato de que, sem os holofotes e a mídia, os que prosseguem criando eruditamente não existem. Os sites mais frequentados nada dedicam às manifestações eruditas, mas propagam diariamente, na área do entretenimento e dos costumes, um besteirol interminável. Impossível ao jovem em formação ficar alheio a essa abominável divulgação.

Um aspecto se me afigura irreversível. Tanto a música erudita como a literatura referencial estão em xeque. Temporadas de música de concerto pelo mundo prosseguem suas programações, mas a expansão do público no Ocidente sequer progride aritmeticamente, enquanto que a ascensão das inúmeras variantes de uma música costumeiramente entendida como popular acontece geometricamente. Mencionei semanas atrás que em Paris houve uma passeata em favor da música erudita! Tendo estudado na capital francesa durante alguns anos, entre as décadas de 1950-60, período em que a música erudita, também denominada clássica, era apresentada diariamente em teatros e salas menores, essa notícia surge como uma triste constatação da decadência cultural.  Patrocinadores, empresários e o consórcio mediático entenderam o veio da mina. Gerações são abduzidas pela massacrante divulgação de espetáculos ruidosos que são apresentados nos chamados Allianz, anteriormente estádios só para eventos futebolísticos e, por vezes, de atletismo, hoje transformados também em arenas cuja programação tem por vezes ingressos vendidos meses antes das apresentações.

Figuras “idolatradas” se apresentam. A “música”, quando não metaleira, estonteantemente ensurdecedora, leva multidão de jovens aos espetáculos e ao delírio, “renovando-se” sempre mais agressivamente através de outros processos que envolvem iluminação, gestuais histriônicos, trajes por vezes sumaríssimos que, na realidade, encobrem uma pobreza musical sem limites. Se numa arena lotada os alto-falantes transmitirem uma pergunta simples, “quem já ouviu falar em Bach, Mozart, Beethoven, Schumann”, não será improvável que apenas umas pouquíssimas vozes se pronunciem a dizer sim, vozes essas que não provocarão qualquer eco.

Um outro aspecto é também insofismável. Largamente majoritária, a criação da música popular se extingue pouco após a diminuição fatal da frequência, renascendo através de novos sucessos, que igualmente serão meteóricos e efêmeros. Uma ou outra canção ou hit de grande alcance seguirá durante curto período, estiolando-se a seguir.

Gilberto Mendes tem toda razão. Acrescentaria que, à maneira de um país derrotado em guerra que tem que fazer concessões, a música erudita namora por vezes com a música popular, convidando os músicos que a cultuam, mesclando programas. A exemplificação da derrota vem do oposto. Nas apresentações das tantas variações da música popular, não há o mínimo espaço para a música erudita. O excelente pianista e regente Ricardo Castro, idealizador e diretor do projeto Neojiba, que visa à inclusão social através da música, teceu comentários sobre a presença da música popular em programa da Orquestra Sinfônica da Bahia, denominado “Osbrega”, ou seja, OSBA com brega! Em post no Facebook, escreveu: “quando uma orquestra sinfônica estadual, depois de conquistar milhões inéditos para seu orçamento e poder contratar músicos excelentes, escolhe esse ‘título’ para promover um concerto [...] estamos certamente entrando em um círculo do inferno nunca Dantes visto neste país”. No mesmo aplicativo, reforçaria: “no caso em questão, a orquestra é pública e os músicos são renumerados pelos impostos dos mais pobres (rico não paga imposto no Brasil). E em um estado pobre como a Bahia, uma orquestra desse porte só se justifica porque existe um repertório que ninguém mais pode defender, proteger, divulgar e que é patrimônio da humanidade”. O maestro Carlos Prazeres, da OSBA, rebateria com os termos: “Não temos preconceito elitista. Pegar uma ‘elite’ que detém o poder do conhecimento e da cultura faz ela ficar para sempre como elite e o pobre, sempre pobre. A elite precisa se abaixar um pouco para conversar com os outros”. Reescrevo as palavras de Gilberto Mendes, que sintetizam o debate: “… a música erudita não tem nada a ver com a popular. É totalmente outro mundo, apesar de seu alcance também popular. São mundos longe de ser a mesma coisa, como pretendem os intelectuais populistas da mídia”.

Ao comunicar ao Flávio Amoreira que o post da semana seria dedicado à substancial palestra por ele proferida, enviou-me posicionamento que se coaduna com as postura de Gilberto Mendes e Ricardo Castro. Salienta: “chega a ser cruel aviltamento cultural de mídias que deveriam ter função precípua de inserir, pela Arte, gerações de jovens sem acesso às grandes expressões na literatura, música, artes plásticas….a literatura nivelada pela lei do menor esforço, as artes plásticas submetidas ao depauperamento visual e às imersões que espetacularizaram o deleite interpretativo e, na música, a `tiktokização´ bestializante de Anitas e `sofrências´ estético-comportamentais…. tudo que remeta a erudito e elaborado soa elitista, quando deveria ser motivo de integração iluminada…. nem Umberto Eco imaginaria tal degradação…´´

Constata-se que o efêmero de quase toda música de alto consumo é o reflexo de sua “qualidade” questionável. Patrocinadores, empresários ávidos pelo lucro conhecem o caminho da “renovação”, sempre mais apelativa quanto à queda qualitativa.  É o novo hit musical que será promovido e assim sucessivamente. Cantores populares que cultuam repertório romântico ainda conseguem, durante toda a existência, repetir os sucessos de antanho.

Sob outra égide, como não se encantar com a música de raiz perpetrada pelos povos do planeta. Dessa fonte, inúmeros compositores que permanecem na História buscaram elementos inspiradores. Entre eles, o notável compositor português Fernando Lopes-Graça (1906-1994), criador de uma coletânea mágica, “Viagens na Minha Terra”, em que temas e atmosfera das raízes lusitanas foram fonte de inspiração para substanciar o título similar do não menos notável escritor Almeida Garrett (1799-1854). O leitor poderá ter acesso à minha gravação através do Youtube.

Divulgado pelo Instituto de Piano Brasileiro, clique para ouvir, de Paulo Costa Lima, “Imikayá”, na interpretação de J.E.M. Costa Lima, magistralmente, desenvolve a criação inspirado em tema de raiz da Bahia:

https://www.youtube.com/watch?v=qZqE63BeleQ

Fica neste espaço, a minha admiração pela atuação permanente de Flávio Viegas Amoreira que tem batalhado tenazmente pela cultura erudita, não apenas em seus artigos publicados habitualmente em “A Tribuna de Santos”, como também em seus cursos sobre literatura.

Acredito que não se pode esmorecer. Apesar da queda acentuada da cultura erudita, haverá sempre aqueles que a perpetuarão. Música,  literatura e artes consagradas através dos séculos tendem a permanecer, apesar das pressões de tantos interesses contrários.

The precious lecture given by the writer, poet and literary critic Flávio Viegas Amoreira on the remarkable composer Gilberto Mendes is the subject of this blog.

 

Quando o livro penetra em nosso de profundis

A descrença moderna, ao invés de ser um fenômeno esparso,
encontra apoio na estrutura da sociedade moderna
e na estrutura do pensamento em si.

A memória mais profunda é a memória de todo nosso destino.
Jean Guitton (1901-1999)

Foram inúmeras as mensagens sobre o blog anterior. De maneira unânime a leitura é louvada. É uma dádiva ter leitores que entendem o livro como um companheiro, por vezes de vida. Do meu amigo Marcelo, que encontro raramente na feira-livre devido a horários diferentes de frequência, ouvi, horas após a publicação, uma pergunta surpreendente: “teria o livro vida?”  Numa analogia, sim, pois um livro conservado na estante, após leitura e visitas outras, respira e “transpira” conhecimento, mas tem algo que o faz pulsar, graças à própria exalação de cada exemplar que se altera à medida que o tempo escoa. O perfume das folhas novas tem incomensurável diferença daquele de livro antigo. Fez-me lembrar, sob outra configuração, de um texto basilar de Edmondo de Amicis (1846-1908), autor do consagrado “Cuore”, e que foi tema de um blog (vide: “A voz de um livro”, 19/02/2010). No conto, o livro tem vida e narra a sua saga pelo mundo, chega a receber um tiro e, de mãos em mãos, convive com as várias camadas sociais, continua sua trajetória até se deteriorar com o passar dos anos, para finalmente estiolar-se em paz, em surdina, sôfrego. Àquela altura, atento à minha narração, meu saudoso amigo e artista plástico Luca Vitali (1940-2013) não deixou de criar um desenho para o post mencionado.

Tendo visitado algumas bibliotecas do Reino Unido, da França e de Portugal,  encantaram-me em terras lusíadas as do Convento de Mafra e, sobretudo, da Biblioteca Joanina em Coimbra, que contém milhares de manuscritos e mais de um milhão de volumes em suas salas.  Uma das minhas recordações mais expressivas durante a trajetória como pianista, que se encerra neste ano, foi o privilégio de ter me apresentado 10 vezes em recitais na magnificente Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra, de 2004 a 2022. A aura que ela emana é insuperável, a meu ver. Maravilhamento.

https://visit.uc.pt/pt/space-list/joanina

Entendo que a perenidade de um livro físico tem ainda significado mais sensível se estiver sob a guarda daquele que o visitou décadas passadas. Como são expressivas as palavras do meu dileto amigo, ilustre arquiteto português António Menéres (1930-), várias vezes citadas ao longo dos anos neste espaço: “Sempre que olho os meus livros, quer as lombadas simplesmente cartonadas, a sua cor, os títulos das obras; mesmo sem os abrir adivinho o seu conteúdo e, quando os folheio, reconheço as leituras anteriores, muitas das quais estão sublinhadas, justamente para me facilitar outros e novos convívios” (vide blog: “Crónicas contra o esquecimento”, 29/07/2007).

A formação de uma biblioteca privada merece a preservação dos livros que deixaram raízes no nosso de profundis e, mesmo se determinado exemplar não for mais consultado no decorrer da existência, sabe-se que as referências estão sempre generosamente à disposição quando aprouver. Nesse sentido, o livro adquire um outro patamar, a unir importância e afeto redobrados. Conservo a coleção de “O Thesouro da Juventude” (18 volumes) desde 1950, tendo já permanecido em casa de uma das filhas e retornado à casa paterna (vide blog O “Thesouro da Juventude”, 17/10/2009). Quantos mais livros da minha longínqua adolescência e juventude não continuam nas estantes? Alguns daquele período enriquecem estantes de filhas, netas e amigos sensíveis e prosseguem suas sagas. Assimilados nas entranhas, esses livros poderão encantar outros leitores.

Li recentemente, no Jornal da USP, texto sobre grupo criado por estudantes da USP, “Desapega”, que está a recolher doações de livros e material didático. Alvissareira notícia que, espero, não tenha cunho ideológico preciso. Corrobora o fato mensagem que recebi do ilustre amigo, Gildo Magalhães, professor titular de História da Ciência, FFLECH-USP: “Reenviei o seu último blog para outras pessoas, porque ainda acredito no poder da leitura. Apesar da facilidade eletrônica, também ainda acredito que o livro impresso não morreu. Nesta semana de reabertura (tardia!) das aulas na USP, a EDUSP enviou caixas e mais caixas de livros por ela publicados para distribuição gratuita aos calouros. Colocados numa longa banca, foram rápida e avidamente disputados, acabando logo. Entre eles vi a sua bela edição do quarteto para piano e cordas op. 26 de Oswald”.

Nosso Pai, cultor da literatura portuguesa, conservava obras capitais em sua biblioteca. Estou a me lembrar de que, ao ler ainda bem jovem alguns Cantos dos Lusíadas em edição magnífica e bilíngue da Imprensa Nacional, Lisboa, 1878, meu Pai frisou que era necessário também visitar, mesmo que com dificuldades, a tradução em francês, pois nosso progenitor era igualmente francófilo. Após a sua morte tive o privilégio de receber na partilha o histórico exemplar. Só de pensar que anos atrás havia projeto de se eliminar Camões dos currículos escolares brasileiros, tentativa que felizmente não vingou!!! Com a decadência cultural em aceleração, é possível que “mentores” retornem ao desiderato recente.

Em viagens ao Exterior, mormente em décadas bem anteriores, verificava que parcela dos usuários do metrô lia livros durante os percursos. Nas viagens recentes, basicamente só vemos leitores de celulares. Em São Paulo, a prática da leitura no celular está a se diluir (não em troca dos livros), pois o receio de roubos clama mais alto.

Por fim, menciono posicionamento de meu dileto amigo Flávio Viegas Amoreira, escritor, poeta e crítico literário, que enviou mensagem a respeito do post anterior: “uma reflexão que enriquece uma luta que travo pelo pensamento crítico através da leitura diante do processo de idiotização, esse o termo forte, que se impõe pelas mídias de massa contra o pensamento autoconstruído a partir do ser consciente como sujeito”.

Does the book have a life? This was the comment of a reader. I include in the post other messages addressing various issues of interest related to the book and its preservation

 

Está a se perder o hábito salutar?

Escrevendo ou lendo nos unimos para além do tempo e do espaço,
e os limitados braços se põem a abraçar o mundo,
a riqueza de outros nos enriquece a nós. Leia.
Agostinho da Silva
(“Notícia”)

Meses atrás, ao transitar pelos canais fechados de televisão, ouvi durante um bom momento as falas de jovens frente a um entrevistador. O tema era a leitura. A faixa etária devia variar entre os 15 e 20 anos. Às pertinentes perguntas, os jovens, descontraídos, revezavam-se nas respostas, sempre buscando justificar o fato do distanciamento da leitura, mas também realçando outras modalidades de interesse que os satisfaziam.

É fato notório que o desenvolvimento tecnológico trouxe benefícios incomensuráveis à humanidade, mas fez com que tradicionais hábitos tendessem ao olvido progressivo. A eclosão do celular e todas as derivações dele decorrentes transformaram radicalmente a sociedade. Para parcela da juventude, a brevidade das mensagens, a grande maioria delas com erros graves de redação e de “conceitos”, graças também à supressão de sílabas, fato que isenta o “autor” de um mínimo rigor linguístico; o descompromisso com a qualidade dessas comunicações escritas e tantas vezes só entendida pelos pares; os jogos eletrônicos sempre em expansão mundial; as denominadas “baladas” aos fins de semana, tudo contribui para tornar a leitura de livros ou artigos relevantes uma função jurássica e, pela lógica de tantos jovens, enfadonha.

Sabemos das últimas crises de duas das mais consagradas livrarias do Brasil, a Cultura e a Saraiva. Se de um lado tem-se de dar crédito aos sucessivos avanços das vendas online, não se deve desprezar a derrocada da cultura humanística frente ao embate desproporcional provocado pela “leitura” de textos abreviados e mal redigidos na gigantesca quantidade de celulares espalhada pelo país e pelo mundo. Verdadeiro tsunami. A distração que a parafernália internética provoca desvia, para legiões de pessoas, qualquer possibilidade de concentração na leitura de um texto propositivo em revista ou livro. Essa distração, que leva ao fatídico desconhecimento de bons textos, provoca igualmente o mau emprego das palavras nas falas – por vezes verdadeiros dialetos -, a ausência de cuidado com o linguajar que está progressivamente a caminhar para o aviltamento, no caso, da língua portuguesa. Jornais outrora de grande circulação tinham em seus quadros revisores que cuidavam com atenção das gralhas em artigos ou reportagens, tantas vezes redigidos às pressas. Presentemente, se de um lado as tiragens desses jornais diminuíram drasticamente, sob outra égide, tanto nas publicações físicas como online, a proliferação desses erros – antes fossem apenas ortográficos – invadiu as colunas.

O ilustre professor de História Medieval da Universidade de Coimbra, João Gouveia Monteiro, já apontava há mais de uma década a inobservância do jovem frente à leitura, problemática que só está a se acentuar: “Não nego que os jovens não leiam mais. Por exemplo, é seguro que leem muito mais periódicos. E também leem muito mais em suporte informático. O que eu digo é que eles, em média, leem pior, que há uma clara infantilização da leitura. E a prova é que a sua capacidade de expressão por escrito se está a degradar fortemente. Pelo menos entre os jovens que frequentam a Faculdade de Letras, disso não tenho a menor dúvidas. E se assim é nas letras…”. A acentuada visita às “telinhas” certamente é um mecanismo de aviltamento da língua mater, pois basicamente não há o menor cuidado de tantos que “escrevem” mensagens, preferencialmente voltadas ao cotidiano inócuo. Gouveia Monteiro alerta sobre situação que se deteriora, sem antídoto que possibilite a esperança: “Reconheço que hoje os nossos adolescentes têm capacidades de diversa natureza que superam em muito as da minha geração. Por exemplo, do ponto de vista técnico, do manejo de equipamentos eletrônicos essenciais para a satisfação de múltiplas necessidades. Isso é verdade. Mas devemos por isso desvalorizar a degradação de um domínio tão estruturante quanto é a capacidade de expressão oral e escrita? Em que medida é que a própria formação humanística do indivíduo, do cidadão, não se ressente da perda de qualidade nessas duas vertentes nucleares?”. E numa realidade bem próxima à da nossa neste país tropical, considera: “Entre novelas de baixa qualidade, jogos de futebol em catadupa e programas de informação convertidos em reality shows, a hipotermia cultural é certa. Mas poucos são os que resistem a um zapping sem rumo e oferecem aos filhos um bom livro, um bom programa gravado ou um bom filme. E, no entanto, é seguro que, nestas alternativas, existiria uma matéria para seduzir pela positiva e para instruir sem bocejo os nossos jovens” (João Gouveia Monteiro. “Crônicas de História, Cultura e Cidadania”, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011).

Sob outra égide, não menos preocupante quanto aos caminhos que legião de jovens está a trilhar, Idalete Giga, competente regente coral e especialista em Canto Gregoriano, tece considerações de interesse envolvendo a cultura humanística: “Mas há sempre uma lacuna que os livros da nossa adolescência não tinham – a questão da formação humanística, a formação moral dos jovens era uma preocupação constante que estava presente na literatura que nos era dirigida. Hoje confunde-se moral com religião. Ao mesmo tempo que se foi perdendo o sentido do sagrado, as sociedades contemporâneas também se esvaziaram de valores morais imprescindíveis para nos respeitarmos e amarmos uns aos outros”. Mensagem que recebi de Idalete Giga em Outubro de 2009.

Drama maior que se assevera peristilo da tragédia é a não preservação das raízes. Uma planta se estiola sem raízes sólidas. A nossa tão bela língua portuguesa corre o risco, no Brasil, de em poucas décadas estar, à força do descuido quanto à leitura de autores relevantes e da massacrante difusão de mensagens e breves textos sem quaisquer cuidados na parafernália internética, assim como no trato do cotidiano, perder a essência de sua magnificente estrutura.

Sob outra égide, diariamente determinados comentaristas televisivos ou políticos incorrem sistematicamente em erros banais da linguagem, sem acanhamento ou rubor. Há alguns que, em suas falas, repetem ad nauseam “gente”, “né” e quantidade de outros mais cacoetes. Onde estão os ombudsmen?  Essa difusão sistemática exerce influência, principalmente nos mais jovens.

Mais recentemente, grupos de estudiosos têm transmitido a jovens interessados conceitos que incluem a necessidade da leitura qualitativa – são tantas as áreas -, de disciplina, respeito aos costumes e moralidade, a fim de impedir que lampejos continuem lampejos, sem a possibilidade de um descortino cultural relevante. É uma ínfima minoria, sem dúvida. Prova de resiliência dos que se debruçam sobre a importância do livro, esperançosos por dias alvissareiros. Sem a leitura dos clássicos à contemporaneidade, esta quando qualitativa, o homem corre o risco de não mais se lembrar de toda a caminhada por ele empreendida através dos milênios.

Franz Liszt (1811-1886) compôs “Après une lecture de Dante” (Fantasia quasi Sonata), empregando o mesmo título de poema de Victor Hugo (1802-1885). Trata-se de uma Sonata com apenas um movimento e uma das criações mais significativas para piano do grande compositor húngaro. Integra o caderno “Années de pèlerinage” dedicado à Itália.

Clique para ouvir, de Franz Liszt, “Après une lecture de Dante” (Fantasia quasi Sonata ou Dante Sonata), na interpretação magnífica de Vladimir Sofronitsky (1901-1961). Gravação ao vivo captada em 1952:

https://www.youtube.com/watch?v=SNj1l7xr-9w

The vast majority of young people read little or nothing. Causes are pointed out and unfortunately there are basically no prospects of reversal.