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Gilberto Mendes e o Romance

O que interessa na vida não é prever os perigos das viagens;
é tê-las feito.
Agostinho da Silva

O nosso grande compositor Gilberto Mendes, nos seus 90 anos de idade, continua a causar impacto. A composição flui viva em sua pena clara, sem subterfugios, direta, a expor sua mensagem sonora rica e diversificada. O compositor tem suas preferências nítidas que não ficam enclausuradas unicamente na criação de seus ilustres ascendentes musicais, mas viajam para outras latitudes e o cinema, o jazz band, o mar de sua Santos eterna servem de subsídios que, transfigurados, aportam em seu vasto catálogo. É surpreendente seu interesse por tudo que o cerca. Hoje não mais viaja para o Exterior. Entende o seu tempo físico, que, apesar de não o desapontar, tem regras inexoráveis. Ideia e criação desafiando o tempo implacável. Gilberto personaliza o pulsar vulcânico controlado, mas constante. As lavas são jorradas das entranhas de seu criar, em absoluta concordância com o outro Gilberto, o do cotidiano, que merece a admiração e o carinho de todos os que têm o privilégio de com ele conviver.

Em meados do ano passado fui visitá-lo em Santos. Com regularidade estamos em contato, mormente por telefone. Durante o almoço, a saborear ostras em restaurante da maior confiança de Gilberto, confessou-nos, à minha mulher e a mim, que estava a finalizar um romance. Romance? – perguntei-lhe pasmo. Dois posts dedicados à sua obra literária, na qual Gilberto narra sua odisséia musical vivida sem alterações fantasiosas, testemunham minha sempre admiração pelo colega e amigo (vide posts de 13/10/2007 e 04/04/2009). A viagem literária do compositor, a brotar da imaginação, surgiu-me no instante como fato inédito. E é. Aos 90 anos!!! Gilberto disse-me à altura que procurou divertir-se ao criar personagens para Danielle em Surdina, Langsam (São Paulo, Algol, 2013). E como se diverte. Mas se é fim deste post o conhecimento desse talento que desabrocha, não o é, entretanto, o panegírico tout court.  Lembraria que “langsam” é palavra germânica bem utilizada na terminologia musical e tem correspondentes em outras línguas: lento, lent, slow. Enigmático en surdine… Como não pensar em Paul Verlaine  (Fêtes Galantes) ou Charles Baudelaire? 

O romance de Gilberto Mendes não tem o manejo linguístico e formal de especialistas do ofício. Nem poderia tê-lo. Seria pedir muito àquele que destinou sua vida às sonoridades, à palavra que serviria aos seus desideratos musicais e à cena teatral em função de uma adequação à mensagem musical e estética. Danielle… sintetiza muitos dos devaneios gilbertianos, que percorrem dezenas de títulos em suas composições. Nestes, Gilberto é insólito, desconcertante, divertido ou trágico. Quem neste país fez o mesmo com tanta naturalidade?  O pente de Istanbul; Ulysses em Copacabana surfando com Doroty Lamour e James Joyce; Um Estudo?  Eisler e Webern caminham nos mares do sul;  Santos Football Music; a tragédia em Cubatão, Vila Socó meu amorVers les joyeux tropiques, avec une musique vivante, théatrale! e tantos outros revelam o observador da vida em sua acepção. Dir-se-ia que o criador de imagens sempre esteve definido. Sob outra égide, sua pena firme e crítica comentou durante decênios concertos e denunciou irregularidades a contagiar a sociedade. O homem em sua convicta ideologia de esquerda não se furtaria a apontar descasos culturais e sociais de variadas origens. Mas jamais com o ranço que caracteriza tantos adeptos.

Danielle em Surdina, Langsam, passa-se em dois tempos, numa espécie de forma bipartida,  mas com alternâncias geográficas. O “tempo” de Danielle… obedece ao presente (Alemanha) e ao passado (Santos). Em todo o curto romance o personagem central,  Mathias Emmanuel, se vê frente à reminiscência. A realidade é o instante do acontecido. Fundem-se os tempos e o presente renascido encontra final surpreendente.

Impressiona a vitalidade imaginativa de Gilberto Mendes. O personagem Mathias Emmanuel é músico e o autor o acompanha dos primórdios pianísticos em Santos até o porto final,  Alemanha, no qual estaria definitivamente radicado como compositor alemão. O alerta já se apresenta no peristilo do livro. Há, no personagem criado por Mendes, um misto de alter ego e de ecos dos anos 1930-1940. Lugares caros a Gilberto em sua cidade berço, situações vividas e encontráveis nas sua “biografias” reais, mas metamorfoseadas, a depender das circunstâncias, a lembrança lúdica da infância e adolescência em que a música para Mathias Emmanuel estaria amalgamada à descoberta do perfil feminino em sutilezas por vezes sensuais,  “olhar os joelhos e pernas das colegiais”, a libido a confundir-se com amor, mas a propiciar o conhecimento. Pureza, temor, arrojo, concretude, seja nos braços de uma prostituta que se parecia com Hedy Lamarr, seja no observar  uma estudante adolescente, Danielle, paixões mensuráveis em contextos diferentes. Essas situações provocam no leitor a indagação, deixando-o estupefato, tal  é o jogo de palavras. Surpresa acompanhar a lista de sinônimos que Mathias elabora na Alemanha para termos como meretriz e casa de tolerância. Gilberto parece se divertir nessas recordações, que todo adolescente ao menos conhece em parte. Mathias Emmanuel, em noite insone em Dresden, recorda-se da quantidade de agências de vapores que adentram pela Ponta da Praia. Enumera-os, assim como o nome dos navios que aportavam, lentamente. Gilberto converte essa listagem na transcendência humana do observar. A matéria banal a volatizar-se na poética imaginação.

Danielle… encanta pelos instantes fantasiosos, trágicos, libidinosos, puros. Os personagens flutuam como névoas nessa viagem através das décadas. Desfilam pelo romance, esporadicamente, nomes que marcaram a música no século XX, tanto a erudita como a popular, e Mathias “julgava as músicas populares norte-americanas e alemãs como as duas faces de uma mesma moeda, algo de certo modo também erudito. As outras seriam músicas populares propriamente ditas”. Devaneia num universo lúdico-sonoro-sensorial.

A guardar as muito devidas contextualizações, Romain Rolland, no belo e caudaloso romance Jean-Christophe, não sacraliza Beethoven jovem? A seguir, na continuação da saga do personagem até a morte, não realiza essa simbiose música-destino, esperança e amor estiolados, sendo a música a única fiel companheira? No breve Danielle em surdina, langsam, Mathias Emmanuel ratifica a imagética de Gilberto e sonha como Jean-Christophe. Se este tem final solitário, Mathias tem surpresas.

É deliciosa a leitura do romance de Gilberto Mendes, mormente ao sabê-lo pleno de entusiasmo pela vida em história reveladora de alguns de seus segredos. Desvelados? Não diria. Há mistérios insondáveis em Gilberto Mendes. Mathias Emmanuel e “Danielles” encantam, e o desdobramento final surpreende. Leitura prazerosa. Gilberto…

Gilberto Mendes, one of the most prominent Brazilian composers, has just published a novel called “Danielle en Surdine, Langsam”. This post is about his book, a light and engaging reading in which fiction and Mendes’ own experiences are intertwined: the hero is a young musician who has spent his childhood and adolescence in Santos and later became a compositor in Germany. Now with 90 years old, instead of enjoying a quiet life in retirement the great Gilberto Mendes is still surprising us.

 

 

 

“Rôle et Responsabilités de l’interprète aujourd’hui”

Fazer justiça a uma obra,
é também conjugar  sua compreensão e liberação de suas forças.
Só uma disciplina englobando a leitura justa,
assimilação paciente, gesto circunstanciado,
pode dar ao intérprete a liberdade e permitir-lhe insuflar vida à obra
- canalizando envolvimento emocional, intelectual, energético,
sem aos quais, mesmo uma obra prima permaneceria letra morta.
Pierre-Laurent Aimard

A interpretação musical foi tema de muitos posts nestes últimos seis anos. Em sendo o elo intermediário da criação-interpretação-recepção, fica reservada ao executante a difícil tarefa da decodificação da escrita musical contida na partitura e transmissão da maneira a mais autêntica e digna. Nesse desiderato, literatura foi escrita por historiadores, musicógrafos e intérpretes ao longo do tempo, mormente a partir do século XX, quando determinados instrumentos, eleitos como solistas, e mais conjuntos orquestrais e corais, tendo à frente um regente, passaram a despertar interesses precisos.

Como sempre faço, a cada viagem ao Exterior não deixo de buscar literatura musical e de outras áreas. Percorrendo prateleira reservada a Debussy em livraria especializada, encontrei um pequeno livro que me interessou de imediato. A leitura apenas ratificou minha primeira boa impressão.

Pierre-Laurent Aimard é pianista renomado internacionalmente. Seu vasto repertório e sólida discografia estendem-se de J.S. Bach à música contemporânea, mormente a mais ventilada entre os adeptos.  Admitido no tradicional Collège de France, Instituição fundada em 1530, Aimard seria responsável pela cátedra de criação artística nos anos 2008-2009. A aula inaugural do músico seria publicada e tem profundo interesse, pois a abordar problemas tangíveis não apenas da interpretação, como repertório, cultura, apresentação pública, gravação, recepção (Pierre-Laurent Aimard. Rôle et responsabilités de l’interprète Aujour’hui. France, Collège de France/Fayard, 2009, 46 pgs.).

Apesar de destinada aos intérpretes, preferencialmente pianistas, a aula inaugural evidencia posições claras do autor, que incluem rigor repertorial, fidelidade à partitura, compromisso com a música presente e preocupação com tendências que proliferam.

A respeito do intérprete que navega em mares imensos, do barroco à contemporaneidade, o autor classifica-o como arqueólogo e explorador e é nesses vastos espaços que Aimard busca realizar suas buscas repertoriais. Sob outra égide, entende que o executante infesso, que encontra no amplo leque histórico o seu repertório, corre o risco de não se aprofundar, pois o todo necessitaria de tempo. Superespecialização e ecletismo desmesurado podem, assim, ser  obstáculos ao pleno desenvolvimento do intérprete. Este teria de ser o homem de intuição, de estudo e de transmissão que atuará no palco, no estúdio de gravação ou na pedagogia “num universo em mutação extremamente rápida”,  afirma Aimard. Tem consciência da prevalência massacrante do repertório consagrado e mais antigo frente ao contemporâneo dos últimos decênios. Observa que, se a interpretação tende a impecabilidade, sob outra égide é hoje menos inspirada.

O discurso de Aimard, ao referir-se à contemporaneidade, poderia conter determinado paradoxismo. Entende, como Serge Nigg (vide post  Serge Nigg “Captar o passado, apreender o presente, pressentir o futuro”, 04/03/2011), que quantidade de compositores na atualidade, independentes e  individualistas, “pensa ir mais longe do que nunca, sem que sintamos  efeitos na própria criação”. Nigg argumenta que só se deparava com compositores, pois “todos” almejavam esse patamar. Aimard comenta que os “criadores de peso do século XXI são os mesmos do século precedente”. Independentemente do repertório visitado pelo pianista, que se estende de J.S.Bach à música dos últimos cem anos, constata-se em sua discografia a atração preferencial por Debussy, Stravinsky, Messiaen, Berg, Bartok, Ligeti, Marco Stroppa, Elliott Carter,  sem contar suas  performances de obras de Boulez e Stockhausen. A guardar as precauções devidas, não estaríamos diante de uma “reiteração” repertorial movida pelo interesse de grandes gravadoras, no caso, que buscam nomes mais divulgados da música dos últimos decênios? Aquilo que Aimard nomeia, entre determinados criadores da música da atualidade, como “território que é ocupado por músicas comerciais ou revisionistas”, não seria a crítica às tendências não comprometidas com aquelas que são hoje consagradas e que têm seus profetas que se fazem ouvir pelos acólitos? Pierre Boulez não se teria pronunciado sobre a importância da ligação do músico à Instituição? Não estaria esta a financiar ad eternum, de preferência, friso, nomes consagrados na Europa e alhures? A mídia a dar guarida às obras musicais e o pensar incisivo desses compositores não influenciaria o todo? O certo, hélas, é que se de um lado temos “legião de jovens compositores”, grande parte sem ideias coerentes, há um número qualitativo de valores reais, jovens e nem tanto, que não conseguem penetrar num círculo fechado já sedimentado. Pareceria – a partir da discografia valiosa de Aimard – que o pianista de excelência especializou-se nesse compartimento sacralizado contemporâneo de grande importância, mas não o único, pois há outros compositores que não têm suas obras mais divulgadas, mas que mereceriam tal espaço. A pergunta de Aimard sobre o lugar reservado à  criação dos intérpretes  - para a obra contemporânea consagrada, mais precisamente  -  está a merecer, de há muito, que o leque se abra de vez, com o apoio de mídia e… gravadoras.  Subjetivamente ou não, o peso dos notáveis sobrepõem-se à realidade existente. A menção de Aimard a Elliott Carter (1908-2012) não estaria a expor o sacralizado: “não é flagrante, para citar apenas um caso, que o maior compositor americano vivo seja um dos mais europeus, e que esse criador centenário nos surpreenda por sua vitalidade criativa e seu frescor, preferencialmente a tantos jovens lobos”?

Cônscio da pluralidade de estilos composicionais do barroco aos nossos dias, Aimard entende determinadas proximidades interpretativas, no caso de Haydn idoso, Mozart e Beethoven, este na juventude. Contudo “uma das atribuições do intérprete é a caracterização das diferentes maneiras de agir para fazer jus à originalidade de cada compositor no seio de um mesmo estilo. No coração de nossa Torre de Babel, ao contrário, o intérprete é levado a descobrir constantemente estéticas e técnicas novas; torna-se um linguista experimentador… e poliglota”, afirma.

Aimard faz duras críticas à educação superior, na qual o Sistema de ensino permanece basicamente o mesmo desde o final do século XIX para instrumentos como piano, violino e canto, tomados como exemplos. Vê com preocupação os holofotes projetados sobre jovens não suficientemente maduros e o mal que o fato acarreta. Todo um sistema a dar guarida sempre aos “novos talentos” criaria situações que desestabilizam precocidades, pois substituídas logo após por nova leva de candidatos ao estrelismo. Creio que poderíamos acrescentar os concursos nacionais e internacionais, principalmente para os instrumentos mencionados por Aimard, quando meteoros tendem a desaparecer, tantas vezes para sempre, mercê do desvio sistemático do foco de luz.    

Sobre a popularização da música clássica, entende com reservas essa ascensão. O que poderia servir de alerta residiria na maneira de ela ser configurada para atender as massas: “Quando esse fenômeno se produz no coração do sistema, sem que distinção seja feita entre divertimento populista e música com outras exigências, o risco de confusão é grande”. A assertiva viria ao encontro de manifestações, que têm se acentuado atualmente, de uma mescla da chamada música clássica com várias tendências populares de intensa divulgação. Tem-se o simulacro da primeira e apenas mais uma aparição de gênero que preferencialmente, esse sim, faz concessão ao se acoplar ao erudito.

Preocupa-se Aimard com a montagem dos repertórios, que não se deve basear na cópia de modelos tradicionais que não atenderiam à atualidade multicultural. Afirma “O repertório de cada intérprete é o reflexo artístico de suas convicções profundas. Essa teia de obras é uma manifestação da sua identidade (diga-me o que tocas e eu te direi quem és), mas também o resultado de seu olhar crítico sobre o estado do mundo musical – carências a contrabalançar, atos pedagógicos… “. O contexto seria fundamental para a apresentação de uma obra e a montagem de um programa deveria atender a vários atributos nesse desiderato. Entende Aimard que “o mais nobre de um intérprete é aquele de servir aos criadores de seu tempo”. Elenca as dificuldades nessa missão, como a relacionada a  uma obra recém-composta quando fica destinado ao executante “dormir três curtas vezes por semana se o concerto estiver próximo”. Outro quesito colocado pelo pianista é aquele relacionado à importância do estudo de uma obra contemporânea com o próprio autor. Acredito ser esse um compartimento fundamental – quando possível, é claro. Se a obra tem valor, a tradição passará a ter seu curso. Insiste Pierre-Laurent Aimard na diferenciação estilística que deve ser respeitada e menciona Debussy e Ravel, que merecem tratamentos distintos.

Aimard vê com simpatia compositores atuais que tentam explicar suas criações. Lembraria o ilustre compositor cubano-norte-americano Aurelio de La Vega, que, em entrevista a mim concedida  (Aurelio de La Vega – Os musicólogos têm pouca visão. In: “Cultura” de “O Estado de São Paulo”, 18/05/1986) dizia que tantas vezes a “bula” é bem mais extensa do que a obra, o que entendia como um equívoco. Aimard compreende, entretanto, fundamental esse trabalho testemunhal, pois ajuda o intérprete a melhor captar as mensagens de um criador.

Um dos aspectos fulcrais da música é a pedagogia e Aimard dela não descuida em seu acurado texto. Aponta para a necessidade de o professor ser honesto, sem fugir das reais capacidades de um aluno, desaconselhando-o a seguir a trajetória musical, se for o caso. Compreende indispensável a transmissão dos muitos estilos através da história, mormente as várias tendências da música contemporânea, mas vê com preocupação “a resistência por vezes tenaz de certas mentalidades”.

Aimard entende a importância da tecnologia e a utilização de meios proporcionados pela internet.  A possibilidade de “estar presente” a tantos eventos ligados à atividade musical, como gravações de toda sorte, aulas, cursos, documentários, traz ao ouvinte e ao aprendiz o conhecimento imediato, a transpor geografias.

Pormenoriza-se no intérprete e na necessidade imperiosa de ele ser “proteiforme  e agir  sobre diversos fronts: criação, pesquisa e releitura do repertório, pedagogia diversificada, trabalho sobre diferentes suportes, etc.” Acrescenta que, sobretudo, deve ele ser “o conteúdo que dita a ação, e não a função social que aprisiona o conteúdo”. Para tanto, o conhecimento abrangente dos gêneros praticados por um compositor apenas enriquecerá a interpretação. Sob outra égide, deve o intérprete ter consciência da “transposição” ao apreender que obras, mormente as do passado, foram concebidas para instrumentos e espaços outros. Todo uma apreensão histórica e contextual não pode ser negligenciada.

Nessa temática, Aimard entende que “parte considerável da obra cravística  executada ao piano revela-se inoperante, ou inaceitável”. Lembro-me sempre da frase do ilustre musicólogo François Lesure, que ao referir-se à obra de Jean-Philippe Rameau para cravo executada ao piano, escrevia que “o que importa não é o instrumento, mas a qualidade do intérprete”. Não poderia parecer subjetivo, talvez paradoxal, que essa “parte considerável da obra cravística ao piano” tenha por parte de Pierre-Laurent Aimard a aplicação do livre-arbítrio quanto à escolha, pois gravaria ao piano A Arte da Fuga de J.S.Bach. Há controvérsias quanto à destinação dessa obra-prima do Kantor: para cravo ou sem especificação definida?  Critérios de escolha.

Rôle et responsabilités de l’interprète aujourd’hui  revela-se da maior importância, apesar das poucas páginas, pois se trata da tradução de um acúmulo de conhecimentos concentrados por um músico na acepção em rara obra pedagógica.

When admitted to the Collège de France in 2008, the remarkable pianist Pierre-Laurent Aimard gave an Inaugural Class that was turned into a book. This post is about this book, which I believe addresses issues of great interest for any interpreter of classical music.

 

     

Sylvain Tesson e os Oleodutos da Ásia Central 

Não li os jornais, mas vivo assim mesmo.
Vou bem, faço progressos nesse aperfeiçoamento da calma interior.
Canto, passeio cabeça descoberta a contemplar o céu, a noite.
Knut Hamsun

Escrever é condensar a vida comprimindo-a entre as camadas de papel.
A página branca me angustia:
Terei eu papel suficiente para descrever o que vejo?
Sylvain Tesson

Confesso que admiro a obra literária de Sylvain Tesson. A experiência viva, solitária, sem subterfúgios por territórios inóspitos do planeta não é apenas a aventura pela aventura, pois há sempre um motivo para as prolongadas excursões. Causaram-me curiosidade os títulos de seus livros quando numa livraria em Paris dois anos passados. Questionado por mim a respeito do autor, o livreiro nada soube informar. Adquiri três obras e gostei imenso. Na recente viagem à capital francesa, vários amigos já estavam a ler com o maior interesse a obra de Sylvain Tesson. Anteriormente já resenhara três de seus livros: Petit traité sur l’immensité du monde e L’axe du loup (28/05/2011), assim como La marche dans le ciel – 5.000 km à pied à travers l’Himalaya (25/02/2012), caminhada essa percorrida em companhia de Alexandre Poussin.

Sylvain Tesson tem a sabedoria de um “eremita” andarilho. Diferentemente do que faz o romance a partir da criação de personagem(s), Sylvain Tesson é figura que tece reflexões à medida que os espaços vão sendo transpostos. O imenso acúmulo de quilômetros percorridos a pé ou de bicicleta pelo mundo fê-lo ver in loco povos, costumes, a natureza bela ou preferencialmente inóspita e, como afirma, “a solidão é minha fiel companheira”. Preenche a realidade com rico imaginário e a metáfora parece ser seu porto seguro. Se lhe falta nessa área a poética plena de encantamento de Saint-Exupéry, que amalgama realidade e devaneio, sobra-lhe  pragmatismo.

Em Éloge de l’énergie vagabonde (France, des Équateurs, 2007), Tesson realiza possivelmente a sua mais árdua e árida aventura, ao percorrer a Ásia Central do Ubequistão à Turquia seguindo a rota da tubulação que serve para levar o petróleo e que atravessa o Azerbajão, a Geórgia e o Kurdistão. Mares internos – Aral, Cáspio e Negro – são circundados ou aflorados, e em bicicleta ou a pé Sylvain Tesson realiza o seu “périplo” terrestre até chegar ao Mediterrâneo na Turquia. Escreve: “A inspiração dessa viagem surgiu de minha paixão pelos oleodutos. Os tubos me obsecam e seus traçados  me encantam. Posso contemplar durante horas as estrias desenhadas na rede sobre as cartas de geografia. Assemelham-se aos intestinos de algum deus da energia que teria feito hara-kiri diante das ameaças da penúria dos hidrocarburetos”. Acrescenta, em outro segmento: “Um pipeline é um fantasma da cartografia, uma cicatriz no terreno tão retilínea como um traço sobre um mapa”.

Esse fascínio do autor poderia desestimular leitores devido à agrura do tema. Ledo engano, o longo trajeto percorrido “sem motor” dá a dimensão de Tesson. Observa tudo, e os mínimos pormenores de costumes, por vezes antagônicos, chamam a atenção do andarilho. Países da ex-União Soviética são transpostos durante o verão e temperaturas que chegam por vezes aos 52º, apesar de fatigarem Tesson, “a estepe cria o deserto em mim”, não o desestimulam. Segue o caminho da tubulação e fica impressionado pelo fato de que a poucos metros do solo a riqueza acumulada durante milhões de anos corre por pipelines em direção à Turquia de onde seguirá para o mundo, mormente os Estados Unidos. Tece considerações sobre pró e contra oleodutos. Os mais conscientes têm noção que finda a recolta – talvez uns 100 anos -, países terão de sobreviver com parcos recursos, mercê da aridez de territórios inóspitos da Ásia Central. Assistir àquela viagem do óleo bruto o angustia, mormente ao pensar que a profundeza da Terra está a se exaurir em prol do consumo exagerado em progressão geométrica. Seguir o pipeline, a pé ou de bicicleta, significa acompanhar o prenúncio de um caos que certamente virá, após todos os recursos de hidrocarburetos esgotados. Se considerado for que só os U.S.A, com população de 5% de pessoas existentes na Terra, consomem 25% dessa energia que vem das entranhas do planeta, há que se compreender determinadas atitudes dos povos da região.  Tesson capta as mensagens no dia a dia durante o percurso. Visita os postos e terminais, atravessa aldeias e cidades, tem de conviver com o tórrido calor, que por vezes o sufoca. Nada, contudo, tira seu estímulo. Não afirmaria que “a nostalgia é uma preguiça”?  Vem-lhe a metáfora do livro a partir do ouro negro: “Assemelha-se ao barril de óleo bruto. Nele dorme o pensamento. Ele se condensa entre as folhas, como os hidrocarburetos entre as camadas do subsolo. Para se liberar, a força das palavras espera o refino da leitura”.

Sylvain Tesson por vezes percorre dezenas de quilômetros em pleno sol causticante e irrita-se com o vento de proa que o impede de ir mais rápido, assim como bendiz o vento que o atinge no dorso. Contudo, não deixa de observar pormenores, que retém com rara acuidade: “O frescor da Anatólia reaviva minhas forças. Meu corpo se descontrai e recorda, pois possui a memória da felicidade”. Esse rememorar, segundo Tesson, nos faz retornar ou provar novamente aquilo que em algum dia do passado, deu-nos prazer. Escreve: “Essa energia da lembrança dos momentos felizes nos dinamiza e nos leva a querer recriá-los”.

A trajetória empreendida pela Ásia Central propicia ao autor observar costumes dos povos da vasta região. Dos muçulmanos tece comentários sobre a valoração masculina e o papel reservado às mulheres, em seus trajes típicos cobrindo por vezes todo o corpo, assim como o chamamento à oração pelo muezzim do alto do minarete. Presenciou em lugares diferentes e não fica alheio ao fato, comenta-o: “Somando-se ao espesso visco atmosférico, às dezesseis horas ecoa o chamado do muezzim. Elevo o olhar em direção ao minarete, esse mirador destinado a vigiar o caminho da fé em direção aos corações de fiéis que se encaminham sob as cúpulas. Um primeiro canto cai do céu, logo seguido por outras encantações que nascem uma a uma de cada ponto cardeal”.

A longa travessia leva Tesson à uma conclusão drástica sobre o planeta em perigo. A metáfora que elabora fá-lo refletir sobre a febre: “Ninguém pensou até agora que o aquecimento climático assemelha-se a uma febre gripal. Quando um organismo vivo sofre o ataque de um vírus, a reação inflamatória aumenta a temperatura interna e a febre se declara como uma das aliadas da luta contra o mal. O corpo combate, aquecendo. Responderá a Terra à febre causada pelo vírus que seria constituído pela humanidade?” Continua: “Não são mais as ideologias que agitam a humanidade superpovoada, tampouco o entusiasmo messiânico que a levanta, nem a agressividade dos governos que a sacode, nem os nacionalismos que a atravessam, mas a imensa pressão das necessidades crescentes e a exasperação de ter esperado tanto para satisfazê-la… A Terra assemelha-se a uma bola em chamas”. Nesse quadro pessimista, Tesson acredita que a teoria do decrescimento encontra um impasse. Ninguém está interessado em iniciar o grande caminho em direção à desaceleração. Comenta: “Na teoria, cada um está de acordo em baixar a temperatura dos motores de nossas existências, viver sem petróleo, banir o plástico. Todavia, com a condição de não ser o único. Decrescer sim, mas não de maneira individual. E ninguém começará”.

Éloge de l’Énergie Vagabonde é livro de grande interesse, mormente pelo fato de o “profeta” andarilho ter percorrido lentamente essa imensa teia que leva o ouro negro ao consumo crescente e desmesurado. Há profunda coerência em toda a narrativa e o final bem poderia ser uma das frases de Sylvain Tesson no início do livro: ” O capitalismo é a redução do intervalo entre o momento em que compramos um objeto e o trocamos”.

This post is an appreciation of the book “Éloge de l’Énergie Vagabonde”, in which the French geographer and world traveler Sylvain Tesson tells about his long march through the harsh steppes of Central Asia, following the route of the pipelines that convey oil to the rest of the world, while musing on different cultures, human condition and the future of civilization.