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Caminhos do Eterno Desafio

Quando escalo uma montanha
me sinto mais próximo de Deus.
Vitor Negrete

Vitor me avisou que não tinha medo da morte.
Ficava triste por ser filho único justamente por causa disso:
se ele morresse, o que aceitava como natural
dado o esporte que praticava e seu grau de envolvimento com ele,
causaria muita tristeza aos seus pais.
Marina Soler Jorge

Continua desde a adolescência meu fascínio pelos intrépidos aventureiros que neste planeta deparam-se com os mais difíceis desafios no mar, na terra e no ar. A ideia que leva à concretização de feitos heróicos por parte dessa parcela infinitesimal de visionários teria origem em exemplos familiares, reais, literários ou, presentemente, através da multiplicidade de documentários estimulantes. O homem a buscar seus limites físico-mentais. Desde o livro que meus pais me ofereceram nos meus 10 anos (Wilhelm Treue. A Conquista da Terra, Rio de Janeiro, Globo, 1945), o tema da aventura passou a ser recorrente e, desde então, em períodos especiais, não deixo de me “aventurar” nessas histórias vividas por tantos corajosos sonhadores, muitas vencedoras, outras trágicas. É também uma maneira de intermediar outras leituras de minha área, e esses interregnos sempre foram prazerosos.

Escrevi  diversos  posts sobre tentativas e conquistas na cadeia montanhosa do Himalaia, desde a heróica e trágica missão de George Mallory e Andrew Irvine (1924) ao buscarem o cume do Everest à chegada de Edmund Hillary e Tensay Norgay (1953), assim como outros êxitos e infortúnios. Contam-se às muitas dezenas aqueles que deixaram a vida indo ao encontro dessas moradas dos deuses. Em termos brasileiros, dediquei um post a Waldemar Nicklevicz que, tendo atingido mais de uma vez o Everest, conseguiu subir ao topo do K2, possivelmente a mais temida montanha do planeta. Minha filha Maria Beatriz, sabedora de meu encanto pela leitura das narrativas dramáticas nas montanhas, entre as quais a de Maurice Herzog (Annapurna, São Paulo, Companhia das Letras 2001), Jon Krakauer (No Ar Rarefeito, São Paulo, Companhia das Letras, 2002), Thomaz Brandolin, (Everest: Viagem à Montanha Abençoada, Floresta, L&PM, 2002) e outros tantos relatos, presenteou-me há alguns anos com livro que me interessava, a história de Vitor Negrete, excepcional esportista voltado às aventuras desafiadoras. Somente nessas últimas semanas tive o imenso prazer de ler Espírito Livre – Da Transamazônica ao Everest, escrito por sua esposa, Marina Soler Jorge (São Paulo, Editora Três, 2008).

Vitor Negrete é o exemplo típico do herói idealizado desde a antiguidade. Sua vida justificou plenamente, através da aventura com riscos acentuados e da ação generosa como homem, a figura do herói cujo destino já estaria traçado. A leitura de Espírito Livre, apesar do relato não desprovido de intensa emoção da autora, revela Vitor Negrete nas mais variadas atividades. Ei-lo  realizando com dois amigos a travessia da Transamazônica de bicicleta; a participar da Ecomotion Pro na Costa do Dendê; disputando o Mundial de corrida de aventura na Nova Zelândia, assim como em tantos outros desafios. Como bem assinala Marina Soler, ” a escalada era apenas uma das paixões de Vitor Negrete”.

A vida do grande montanhista Vitor Negrete, paradigma para tantos esportistas que buscam na aventura a motivação maior, poderia ficar circunscrita à própria atividade desafiadora. Contudo, o que tornou singular a sua existência extrapolou as altitudes e direcionou-se às ações humanitárias relevantes, entre as quais o projeto pela preservação digna dos quilombolas no Vale do Ribeira. No relato de Marina não faltam alusões à generosidade do esportista de absoluta vocação, que entendia “involuntariamente” sua passagem pelo planeta como um maravilhamento, pois tudo que o cercava ganhava a aura fraterna. Amizades, projetos, sonhos pareceriam ser acalentados por Vitor Negrete como algo natural, sem traumas possíveis.

A atividade como montanhista foi notável. As diversas subidas a outros picos ficariam minimizadas pela relação que teve com duas das mais temidas montanhas: Aconcágua (6959m) e Everest (8848m). Escalou o mais alto cume das Américas, ascendendo-o pelo maior número de vias, sendo que a mais perigosa delas, a Face Sul, juntamente com seu amigo de tantas aventuras, o também notável Rodrigo Raineri. O relato de Marina Soler não deixa dúvidas quanto às difíceis condições enfrentradas. Em um dos paredões da Face Sul encontraria os corpos de alpinistas brasileiros que pereceram após avalanche…. Igualmente guiou Ana Elisa Boscarioli em sua primeira tentativa ao cume do Aconcágua e dessa experiência a montanhista, que atingiria posteriormente tantos outros cumes, inclusive o Everest, não se esqueceria.

Se o relato de Marina Soler menciona as duas subidas ao teto do planeta, em 2005 e 2006, a primeira com tubos de oxigênio e a segunda a pleno pulmões, o encontro da morte durante a descida, aos 19 de Maio de 2006, bem evidencia esse “namoro”, consciente ou não, com o trágico, ingrediente característico de tantos heróis.

Vitor Negrete, ao atingir o topo do Everest, deixaria gravado em vídeo depoimentos pungentes. Algumas de suas frases: “Eu tô no ponto mais alto do planeta… Eu acabo de me tornar o primeiro brasileiro a pisar neste lugar sem utilizar oxigênio suplementar sem a ajuda de sherpa neste dia da escalada. Eu escalei sozinho, e foi animal. É muito difícil. Eu tô muito, muito cansado. Inclusive eu preciso descer logo, mas eu queria dedicar esta escalada ao Rodrigo Raineri, meu parceiro… Hoje o clima tá ruim, tá ventando e é prudente eu sair daqui logo porque mais de 80% dos acidentes ocorrem na descida. Hoje, enquanto eu subia, eu vi vários corpos desta temporada… Aí Caco (amigo dileto)! Consegui mais uma vez cara! … Então eu subi aqui, cara, esta montanha, muito por você, pela Marina, pelos meus filhos”.

Na descida, Vitor Negrete encontraria a morte. Pareceria estar contrário ao mors certa hora incerta. Seu companheiro Raineri escreve: “Dawa encontrou o Vitor a 8.500 metros, debilitado, com dor no peito, sem as luvas e bastante confuso. Começou a descer, mas estava difícil carregá-lo. Então Dawa acionou Pechumbi, nosso outro sherpa que havia subido do ABC para o acampamento 3 para tentar ajudar. Os dois conseguiram chegar com o Vitor na barraca do 3 à meia noite do dia 18 e continuaram a tentar reanimá-lo, hidratando-o com suco morno, que ele conseguiu beber, e ministrando oxigênio. Porém, ele não resistiu e, às duas horas da madrugada do dia 19 de maio (horário do Nepal), Vitor faleceu”. O pungente depoimento de Raineri ratifica o sentido épico da tragédia. O que o fez ascender as últimas dezenas de metros, solitário e sem tubos de oxigênio, verdadeira temeridade? A leitura do inconsciente será sempre um mistério. Tantos sinais a apontarem  cautela, entre eles o roubo de equipamentos e mantimentos seus e de Raineri da barraca dos alpinistas nesse caminho em direção ao topo, já não seriam suficientes para abortar a investida? A intrepidez fê-lo não desistir. Todos os riscos estavam traçados, faltando apenas a possibilidade da infausta estatística aumentar. Disso Negrete tinha consciência, mas a vontade de ser o primeiro brasileiro a subir ao cume do Everest sem tubo de oxigênio falou mais alto do que o teto do planeta. Atingiu o objetivo, mas o Poder Maior veio buscá-lo.  Em Espírito Livre, os depoimentos finais dos pais de Vitor Negrete, Roma Pytowski e Sílvio Negrete, não seriam a certeza de que o filho cumpriu uma missão, a dimensionar em plano transcendente as inéditas escaladas? São palavras simples, despojadas, que retratam Vitor na essencialidade dos escolhidos.

Tantos sucumbiram na escalada rumo ao Everest, mormente na descida. Contudo, permanecem na memória os poucos que pereceram como ato inédito. Vitor Negrete será sempre lembrado, e sua morte redentora após missão cumprida é o símbolo do heroísmo autêntico, imaculado. A pedido dos familiares e amigos, os sherpas cobriram seu corpo com  pedras. Permanece nas alturas. Fim supremo para um herói das montanhas.

This post is about the book Espírito Livre (Free Spirit), written by Marina Soler, wife of Vitor Negrete, the Brazilian mountain climber who died on the Everest in 2006. The book tells us about some of his adventures: reaching the top of Mount Aconcagua, the highest peak in South America; summiting the Everest twice; crossing the Trans-Amazonian highway on a bicycle, competing in the Adventure Racing World Championship in New Zealand. As Marina puts it, “climbing was just one of Vitor Negrete’s passions”. In 2006 he reached the summit of Everest without supplementary oxygen, but could not make his way down and died on 19 May at Camp 3. The book is the story of a man endowed with great courage and a generous heart, a hero for his special achievements.

 

 

 


Extraordinária Travessia pelo Himalaia

Je ne connais qu’une manière de voyager
plus agréable que d’aller à cheval:
c’est d’aller à pied.
Jean Jacques Rousseau
(“Émile ou De l’éducation”)

Ao longo destes anos estou sempre a salientar meu fascínio pela região himalaia, não apenas pela extraordinária situação geográfica imersa em mistérios, como pelo pensamento budista em parte expressiva do entorno. Tenho inusitado prazer ao ler livros sobre essas duas características essenciais encontráveis nessa extensa cadeia montanhosa. O maravilhamento vem da adolescência e estou a me lembrar de uma primeira leitura de curtos textos, plenos de ilustrações, em O Mundo Pitoresco, essa fascinante coleção que encantou meus primeiros anos, assim como da revolta que senti ao ler, nos idos dos anos 50, um livro do Dalai Lama, já no exílio, sobre o massacre do povo tibetano empreendido sistematicamente  a partir da invasão chinesa. As décadas se passaram e milhões de tibetanos tiveram de fugir ou foram exterminados. O Ocidente diplomaticamente sempre se manteve silencioso.

Se de um lado essa admiração romântica pelo Himalaia faz parte de meu pensar em momentos de serenidade, mantive sempre uma recôndita vontade de um dia pisar essa região. Quem sabe no próximo ano, acompanhado de minha filha Maria Beatriz, possamos realizar esse sonho e visitar o Nepal e o Butão, empreender caminhadas albergando em monastérios e durante umas semanas ser “romanos em Roma”, como reza o ditado.

Em Janeiro de 2011 adquiri em Paris alguns livros do aventureiro solitário e corajoso Sylvain Tesson, tendo comentado em um post dois livros que me encantaram (vide As Incríveis Aventuras de um “Vagabond” – Sylvain Tesson. 28/05/2011) ). Nestes dois últimos meses tive como companhia, nessa leitura antes do sono reparador, a longa narrativa de Alexandre Poussin e Sylvain Tesson, que realizaram em 1997 uma extraordinária caminhada de 5.000km através da região do Himalaia. Toda a vasta área foi percorrida a pé pelos dois intrépidos andarilhos, numa aventura não sem grandes riscos e um tanto quanto visionária (La Marche dans le Ciel – 5.000km à Pied à travers l’Himalaya. Paris, Robert Laffont, 1998, 398 pgs.). O percurso pela Transhimaláia durou seis meses, exatos 174 dias, e os 5.000km sofreram desníveis de altitude inimagináveis, que corresponderam a 121.000 metros!!! Dezenas de vistos, clandestinidades por vezes, prisões breves em determinadas fronteiras, mas a travessia iniciada no Butão, a passar por tantos países montanhosos até a chegada ao Tadjikistão, bem demonstra a intrepidez e a determinação desses jovens andarilhos franceses. Os dois moços tiveram, inclusive, o destemor de atravessar o Tibete, hoje a pertencer lamentavelmente à República Popular da China, sem vistos, “driblando” pois todos os caminhos e atalhos que pudessem colocá-los frente a frente com autoridades chinesas!

Alexandre Poussin e Sylvain Tesson têm um passado marcado por incríveis travessias. Em 1994 os dois percorreram de bicicleta 25.000km pelo mundo e atravessaram 35 países. Desenvolveram separadamente, Alexandre com sua mulher Sonia e Sylvain sozinho, outros tantos percursos memoráveis a pé. Seus livros têm a maior acolhida entre aqueles que gostam desse gênero de literatura.

Essa longa travessia abrangeu as regiões do Butão, Sikkin – Estado ao norte da Índia -, Nepal, China (Tibete), Índia, Paquistão, Afeganistão e Tadjekistão. Minuciosamente, o prolongado percurso teve cálculos prévios, como o peso da mochila pensada a não conter nem um grama a mais dos cinco quilos. Essa sábia atitude teve seu tributo a pagar, pois tiveram de se contentar com alimentos que porventura pudessem encontrar nos seus – circa – 50km de caminhada diária.

Seguir as narrativas de Alexandre Poussin e Sylvain Tesson, que alternam a autoria dos textos em La Marche au Ciel, é agradável, pois o primeiro é mais dionisíaco. Não poucas vezes, metáforas e observações quanto às mudanças das incontáveis paisagens encantam Poussin num estilo a lembrar por vezes Saint-Exupéry, enquanto o segundo é mais pragmático em suas observações, apolíneo diria, e a extraordinária façanha solitária, a reviver epopéia a partir de um gulag na Sibéria ao golfo de Bengala, comentada no post mencionado, é exemplo típico. Essa alternância propicia uma harmonia no todo devido aos olhares diferenciados de cada percurso realizado. Sempre, a anteceder cada narrativa, local, data e altitudes flutuantes.

Um dos interesses do livro reside na resistência humana frente a tantas adversidades. Os desníveis da altimetria nesse incessante sobe-desce, das poucas centenas de metros, quando nos vales, aos 5.000 e tantos metros, adaptações rápidas; alimentação quase sempre precária à base de sopa de massa, biscoitos, chocolate e tsampa, comida característica do Nepal, Tibete e no entorno dessa vasta região; muita água. Por vezes dois ou três dias sem nada comer, mas sempre a caminhar. Poussin e Tesson revelam dados, até de ordem sociológica, ao comentar a hospitalidade dos habitantes encontrados, que nunca recusavam oferecer chá, dividiam as parcas refeições, propiciavam algum espaço para o descanso. Tão logo se apresentavam para budistas (Butão, Sikkin, Nepal, Tibete) ou muçulmanos, no caso nas regiões do Paquistão, Afeganistão ou Tadjikistão, havia a acolhida, pois sabiam-nos peregrinos. No isolamento dos grandes desfiladeiros ou ao percorrerem vales profundos, um só pensamento estava a pairar, ou seja, completar a longa marcha. Como bem escreve Poussin: “A cada terreno corresponde um caminhar diferente, uma abordagem nova”. Inúmeros rios e corredeiras foram transpostos, gelados ou menos gelados, encostas abruptas contornadas, gelo, neve, chuvas torrenciais, o andar à noite quando a lua poderia auxiliar com sua luminosidade artificial.

A comparação que Tesson faz entre Nepal e Tibete é digna de registro. “O Tibete se revela como tal: um planalto de vento. Caminhamos dez a doze horas diárias com vento pela frente e por trás. Por vezes 70km, não sabemos outra coisa que andar”. Continua: “O que nos droga é o horizonte sem limites. A imutabilidade dos panoramas. A fuga do espaço, à medida que avançamos. O caminhar no Nepal nos habituou, contrariamente, às perspectivas do sous bois. Víamos raramente mais do que dois ou  três quilômetros, exceção às encostas. Aqui, no Tibete, os espaços são consideráveis. Temos a impressão  de caminhar em um quadro. Cada horizonte instala-se como uma decoração petrificada, a ser necessário percorrer 50 a 60km para modificá-la”. Será Tesson que na Cachemira terá uma sensível observação sobre os seus sapatos de todos os dias. Digna do filósofo alemão Martin Heidegger ao estudar os de um camponês, eternizados em quadro de Van Gogh.  Escreve o aventureiro: “Como um convite para partir, um sapateiro flutuante nos traz em seu barco, uma manhã, os sapatos estourados que lhe confiamos há dias. Ele os deixou novos. Os reparos efetuados desde o Nepal se sobrepuseram: há peças de couro tibetano, costuras chinesas, ligaduras com fio de nylon – os patchs do norte da Índia – e, presentemente, os consertos da Cachemira. Não são mais sapatos, são cartas geográficas impressas em palimpsesto”.

Ambos os caminhantes, à la manière de pigmaleões, são budistas nas regiões onde a religião é majoritária e “seguidores” do Islã ao atravessarem territórios predominantemente sunitas. Fazem-se passar por muçulmanos bósnios, mas são sempre bem acolhidos, sentindo a imediata relação afetiva tão logo adentram quaisquer lares. Tesson tece interessante observação ao abordar in loco a problemática do conflito Índia-Paquistão: “Os muçulmanos indianos recusam, no caso de um conflito aberto contra o Paquistão, enfrentar outros muçulmanos e, para certos combatentes, a subordinação à nação se apaga diante do sentimento de uma disputa religiosa comum com o adversário”.

Chega mesmo a ser jocosa a narrativa dos inúmeros problemas que tiveram nas fronteiras do Tibete, da India – sempre receosa de uma incursão chinesa, segundo eles -, do Afeganistão e do Tadjequistão, país este com forte controle dos russos nos limites geográficos. Como não lutam com o tempo, “deixam-se” aprisionar e, após serem levados a algum centro distante das fronteiras, mas onde uma autoridade maior decide, são julgados, “presos” por dias ou horas e libertos. Contudo, preferem retornar ao ponto onde foram interceptados, a fim de realizar o trajeto, antes percorrido por jipe ou caminhão, a pé. Daí a satisfação da conclusão em Horog, no Pamir, dos 5.000km à pé.

Uma narrativa da pena de Alexandre Poussin ao narrar um aclive acentuado: “A elevação é fulgurante; o anfiteatro montanhoso, azulado pela luz do luar, nos invade pela grandeza e serenidade. O silêncio é espacial, o vazio, um mar de tranquilidade”. A descrição do vale do Wakhan, no Afeganistão é também plena de lirismo e emoção, ao lembrar-se Poussin de Alexandre,  Marco Polo, um vale “que pela primeira vez não se apresenta anônimo, pois nos fala da história, do choque das armas, lutas e conquistas. Estão tão longe nossos pequenos vales nepaleses!”

O não compromisso com veículo de comunicação dá-me a liberdade de resenhar e comentar. Se as resenhas surgem na medida em que obras novas chegam às minhas mãos, nem por isso deixo de ter a alegria ao comentar livros publicados bem anteriormente. Proporcionam-me o equilíbrio? Talvez. Agradam-me? Sempre.

An appreciation of the book “La Marche dans le Ciel”, written by the French adventurers and travel writers Alexandre Poussin and Sylvain Tesson. Both trekked across the whole length of the Himalayas, from Bhutan all the way to Tajikistan. The epic adventure – that even involved being arrested – was recorded in this book, describing the perils of the wilderness, their encounters with different cultures and characters and the beauty of remote lands.

Patrimônio Musical Português em Pauta

Reiteradas vezes escrevi sobre a importância de uma revista de qualidade sobre Música escrita por experts como fator imprescindível para a ventilação de conceitos que devem permanecer. Sem bairrismos ou apadrinhamentos, todas as publicações isentas desses vícios podem conter fontes raras para a pesquisa. Foi o que buscamos fazer durante cerca de 17 anos como editor responsável da “Revista Música” da Universidade de São Paulo, desaparecida após minha aposentadoria em 2008. Ao longo dos anos tenho acompanhado a publicação de inúmeras revistas sobre música do Exterior, umas centradas em um único compositor excelso, outras analíticas estritas e outras mais que, ao proporem o multidirecionamento temático ou a precisão geográfica, cumprem objetivos relevantes.

“Glosas”, publicação do Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa – MPMP, tem periodicidade semestral e já está em seu quarto número. Tem cumprido com determinação, em tempos econômico-sociais críticos em Portugal, a missão de não apenas resgatar valores expressivos ou mesmo olvidados da música portuguesa, como criar um rico depositário de opiniões, geralmente inéditas, através dos resultados de entrevistas e artigos específicos sobre determinado autor.

Anteriormente já abordara “Glosas” 2 (vide Revista de Mérito – “Glosas” – O Respeito à Música pouco Frequentada. 14/01/2011). Daquele número ao presente, independentemente do visual aperfeiçoado, “Glosas” focaliza na abrangência personalidades de relevo da música em Portugal, assim como apresenta interessantíssimas contribuições não pertencentes a um núcleo temático.

A homenagem prestada a António Victorino de Almeida (1940- ) é mais do que oportuna. Compositor de mérito, pianista, escritor, comunicador nato nos meios da mídia, realizador televisivo e cinematográfico, musicógrafo, Victorino de Almeida surpreende sempre através de seus conceitos, tantos deles polêmicos. Preliminarmente, o estudo sobre ele, que ocupa 26 páginas de “Glosas”, tem a clarificação de vários músicos e competentes articulistas que buscam desvendar segmentos secretos dessa figura singular na música portuguesa. Eurico Carrapatoso, Sérgio Azevedo, Mário Zambujal, Fernando Rocha, Carla Seixa e José Fortes, diversificadamente, penetram nesse multidirecionamento humano e Victoriono de Almeida pode ser apreendido em parte. A recuperação de entrevista realizada por Francine Benoît com o talento emergente em 1948 corrobora o entendimento de algumas tendências atávicas do ilustre músico. A rica entrevista que segue esses depoimentos, concedida a Duarte Pereira Martins, se de um lado faz-nos lembrar conteúdos já expressos em livro de raro interesse (António Victorino de Almeida conta 50 anos na Música a Paulo Sérgio dos Santos. Portugal, Quimera, 2005), sob aspecto outro revela-nos o compositor curioso, mas cônscio de sua empreitada. Victorino de Almeida não expressaria nesse depoimento que “realmente eu lutei a vida inteira por salvar um conceito de música. Música! E não um conceito de experiência”? Confissão que se casa com a opinião de outro compositor de alto quilate, Eurico Carrapatoso, ao abordar a extensa criação do homenageado: “A música de António Victorino de Almeida aparenta ser conservadora, muitos dirão. Vá-se lá saber se não é por isso mesmo que a melodia victoriniana é tão generosa, tendo a harmonia, de tamanho aplomb, o rasgo próprio da química dos fluídos? E o ritmo, que é tão vivido e vivido! E a orquestração (verdadeiro motivo de inveja), que refulge como o oirinho reluzente da Ceuta quatrocentista (citando Borges Coelho, o historiador). E a forma de sua música, entrocada como o bucéfalo, que respira profundamente como o roncopata: das depressões de Morfeu aos picos de nos fazerem ranger os dentes. Não é esta a função original da música, afinal? O poder de alterar estados de consciência?”

A qualidade encontrada em todo esse tributo a António Victorino de Almeida se expande em tantas outras preciosas contribuições que particularizam temas de interesse. Relevante a entrevista que o compositor e diretor artístico Jorge Salgueiro (1969- ) concede à Mónica Brito. Salientemos duas observações contundentes de Jorge Salgueiro, autor de aproximadamente 180 obras. Perguntado a quem ofereceria a revista “Glosas”, afirmaria: “Ofereceria a uma dessas pessoas que tomam decisões e que afastam os portugueses de seu país”, e à questão de um novo Jorge Salgueiro, acrescentaria: “Ainda sou novo, tenho esperança. Posso vir a mudar o pensamento do século XXI, porque não? Senão tivesse sonhos, e permanecesse apenas o lado lúcido e consciente, suicidava-me. Eu e os outros. Se não fôssemos inconscientes, no sentido de ainda sonhar, não havia criação. É esse sonho que nos faz criar a todos, a cada pessoa, não só o artista. Somos o centro do nosso mundo. Ainda que as tenha perdido, continua a ser o centro do universo. É como nós, os artistas. No sonho tudo é possível”.

Como se não bastasse o material rico para a cultura portuguesa contido em “Glosas” 4 e esboçado acima, artigos outros mostrariam o debruçar de pesquisadores sobre temas, muitos deles de total ineditismo. Destacaria a contribuição de Manuel Pedro Ferreira: “A propósito dos 750 anos do nascimento de Dom Dinis, trovador”; de João Paulo Janeiro, acurado estudo sobre o compositor napolitano David Perez (1711-1778), que, a partir de 1752, tanta contribuição prestou à música portuguesa; de Piedade Braga Santos, filha do compositor Joly Braga Santos (1924-1988), um comovente testemunho a respeito da amizade deste com Jorge Peixinho (1940-1995). A gregorianista e professora Idalete Giga faz levantamento precioso em “A música nos Salões Particulares de Lisboa no fim do século XX e na primeira década do século XX”, tecendo profícuos comentários e a enumerar salões do período e seus promotores. Considere-se igualmente o arguto artigo de Luís C.F. Henriques, em que focaliza o “Cosmopolitismo Musical na Cidade da Horta no Final do Século XIX”. Dentro da linha editorial da revista, que se propõe sempre evidenciar um músico não devidamente estudado, coube a André Vaz Pereira traçar perfil específico em “A obra para piano de Manuel Faria – uma primeira abordagem”. Tem-se ainda, na secção “Compositores a Descobrir”, um merecido estudo sobre a figura impecável na música portuguesa, o Padre Tomás Borba (1867-1950), professor do Conservatório Nacional e imortalizado através de sua atuação, durante décadas, como Diretor Artístico da Academia de Amadores de Música. Teve como seu mais ilustre aluno o grande compositor Fernando Lopes-Graça (1906-1994).

Contribuí para o nº 4 com artigo a abordar “Canto…” Primeiro de Fernando Lopes-Graça. Publicado no mesmo período em meu livro “Impressões sobre a Música Portuguesa”, editado pela Imprensa da Universidade de Coimbra em Novembro último, o texto aborda “Canto de Amor e de Morte” do compositor em seu original, pois conheciam-se apenas as duas versões realizadas pelo músico, para quarteto de cordas com piano e orquestral, respectivamente.

A ausência de interferências, que tantas vezes afeta a homogeneidade de textos diversos de uma determinada área em revistas espalhadas geograficamente, está a ser preservada na revista portuguesa. Sente-se em “Glosas” um propósito, uma identidade. Que assim persista

A few comments on issue nº 4 of Glosas, the music magazine with news, interviews and articles covering the world of classical music in Portugal.