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A Valoração que se Faz Necessária

“Women have served all these centuries
as looking glasses possessing the magic and delicious power
of reflecting the figure of man at twice its natural size.”
Virginia Woolf (A Room of One’s Own)

A mulher está muito perto da Natureza;
Há nela os mesmos encantos e os mesmos perigos.
Agostinho da Silva

Em 2010 escrevia a respeito de tese de doutorado defendida junto à USP pela professora Susana Igayara, na qual a pesquisadora abordava obras teórico-musicais escritas no Brasil na primeira metade do século XX por professoras e educadoras musicais. Tendo integrado o júri, impressionou-me a quantidade de trabalhos publicados em período em que a mulher não alcançara patamares sequer à base de igualdade com os homens (vide Uma Tese Diferenciada – A Mulher Brasileira e seus Textos sobre Música. 14/05/2011).
Considerando-se o período a partir da segunda metade do século XIX, é possível observar leves tentativas de emancipação da mulher nas mais variadas atividades. Se George Sand (1804-1876) foi exemplo em França, há que se considerar que sempre houve, ao longo da história, a presença de mulheres que se destacaram, apesar de não aparecerem publicamente, como educadoras, heroínas, artistas, intelectuais e empreendedoras. O nítido domínio dos homens era fator preponderante para uma verdadeira “imersão” da criatividade feminina. Se Berthe Morisot (1841-1895), Mme Curie (1867-1934), Clara Schumann (1819-1896) e tantas outras tiveram reconhecimento em  vida, a grande maioria ficaria no ostracismo e outras tanto tiveram valoração post mortem. Era a regra do jogo. Camille Claudel (1864-1943) tornar-se-ia o símbolo do talento artístico que, premido pela sociedade, sucumbiu em vida. E o que dizer de Anita Malfatti (1889-1964), que ao sofrer pressões estéticas, renunciaria a um estágio na pintura que certamente faria dela uma expressão a nível mundial?

É, pois, alvissareira a publicação de um  pequeno livro a destacar mulheres que tiveram brilhantismo em Portugal em período em que imperava o “machismo”, atitude ainda tão majoritária no planeta como um  todo (Mulheres do Alentejo na República. Textos de Anastásia Mestrinho Salgado, Carlos Emílio Carapinha e Idalete Giga. Chaves, Tartaruga, 2011).

Já na Introdução há referência a essa “mulher filha da burguesia mais instruída, diplomada pelas escolas politécnicas, escolas de medicina e veterinária, etc. (médicas, professoras, artistas)” que captavam determinados ventos ideológicos que começavam a soprar em Portugal. Essa mulher, graças ao comboio, iniciava através das viagens uma nova percepção da vida e de sua posição junto à sociedade, a ter, pois, papel fundamental na emancipação feminina, não sem duros percalços. Tem-se, ainda na Introdução, que “a transversalidade entre estes grupos de mulheres acontecia em vésperas da 1ª República. Era como se todas as mulheres portuguesas sonhassem o mesmo sonho – SER MULHER”.

O espaço a que me proponho tornar-se-ia pequeno para esboçar o perfil das dezessete mulheres estudadas, que abrange as mais diversas áreas. Todas tiveram destacada atividade e lutaram nas mais variadas frentes, no intuito de dignificarem a figura feminina na sociedade. Selecionei as três breves biografias traçadas com muita competência pela professora Idalete Giga, natural de Ciborro (Montemor-o Novo), portanto, alentejana da gema: Virgínia Quaresma (1882-1973), pioneira do jornalismo moderno em Portugal, segundo a estudiosa, Eunice Muñoz (1928- ), atriz relevante, e a célebre poetisa Florbela Espanca (1894-1930).

Virgínia Quaresma, licenciada em Letras e diplomada pela Escola Normal de Lisboa, foi notável jornalista, a preferenciar em sua atividade a reportagem e a entrevista política. Atuou em alguns dos mais importantes veículos de comunicação em Portugal. Esteve várias vezes no Brasil a partir de 1912 e, durante um bom período, residiu no Rio de Janeiro, a exercer sua profissão colaborando para o Correio da Manhã, A Época e a Gazeta de Notícias. Referencial um pronunciamento junto à Sociedade Promotora do Ensino Popular em Portugal: “Ser feminista é a minha única carta de recomendação, o meu único título de glória  no mundo intelectual. E não me dispensam dessa honra em parte nenhuma, embora eu saiba muito bem que o nosso meio social, ainda em grande parte, não compreende todo o orgulho, toda a altivez, toda a satisfação de razão e de consciência que me podem advir dela”.

Eunice Muñoz é possivelmente a mais importante atriz portuguesa e foi impecavelmente “retratada” desde as primeiros passos “hereditários”, empreendidos em companhia de seus pais. Aprendeu cedo o métier e o talento desabrochou com naturalidade. Idalete Giga tem o esmero de indicar a relação de todas as peças do repertório de Eunice Muñoz, nomeando-as e a oferecer, como suporte, a cronologia e os locais das apresentações. Impressiona a quantidade de peças de teatro que Eunice apresentou e continua a oferecer aos mais variados públicos. Cinema e televisão também fazem parte de seu universo. Seu repertório é imenso. É a atriz mais premiada em toda a história da dramaturgia em Portugal.

Ao se debruçar sobre Florbela Espanca, Idalete o faz com o respeito devido à grande poetisa alentejana que legou aos pósteros uma produção tão pequena, inversamente proporcional à qualidade. Florbela viveu em choque permanente, não apenas familiar, mas também com o meio social. Desde jovem quebraria regras de conduta,  graças à sua vida amorosa tão distante da rígida concepção moral de sua época e de suas irreverentes atitudes frente ao establishment. Casamentos, relacionamentos prolongados ou efêmeros motivando, sob o aspecto da criação, mesmo em temáticas outras, a presença do relacionamento amoroso, da esperança ou da desilusão e os enfrentamentos da mulher voltada à escrita. Tem ela a consciência da apreensão pública de suas obras. Esses permanentes conflitos, acrescidos de hereditariedade, levariam ao fim trágico aos 36 anos, quando a porta do suicídio tornou-se a única viável. De Charneca em Flor tem-se: “Queria encontrar Deus! Tanto o procuro!” Contestada ou mesmo rejeitada por setores mais puritanos da sociedade de seu tempo, Florbela Espanca tem sido, sur le tard, cada vez mais estudada pela expressividade de seus poemas. Idalete Giga sintetiza bem o perfil humano e criativo da artista: “Quando alguém nasce para além de seu tempo, como foi o caso desta extraordinária poetisa alentejana, tal facto suscita o mais vivo interesse. Florbela Espanca estava, sem dúvida, avançada em relação à sua época em que as mulheres viviam completamente subjugadas e dependentes dos homens, fossem pais, maridos ou irmãos. Não tinham quaisquer direito, mas apenas deveres. Florbela Espanca era a antítese da mulher dependente e subjugada. Artista de rara sensibilidade poética, independente e livre pensadora, mostrou-se sempre tal como era, sem máscaras, sem preconceitos. Por isso, a sua vida foi uma luta constante, cheia de sofrimento, dificuldades, desilusões e a sua obra incompreendida pela sociedade de seu tempo”.

Ao leitor transcrevo um dos poemas de Florbela Espanca:

Mistério

Gosto de ti, ó chuva, nos beirados,
Dizendo coisas que ninguém entende!
Da tua cantilena se desprende
Um sonho de magia e de pecados.

Dos teus pálidos dedos delicados
Uma alada canção palpita e ascende,
Frases que a nossa boca não aprende,
Murmúrios por caminhos desolados.

Pelo meu rosto branco, sempre frio,
Fazes passar o lúgubre arrepio
Das sensações estranhas, dolorosas…

Talvez um dia entenda o teu mistério…
Quando, inerte, na paz do cemitério,
O meu corpo matar a fome às rosas!  

 Mulheres do Alentejo na República é livro a ser visitado. Oxalá a temática, a abranger o perfil da mulher em períodos onde a emancipação mostrava-se uma heresia, surgisse mais acentuadamente. Se de um lado essas desbravadoras em busca da igualdade e do reconhecimento do valor da mulher são paulatinamente reconhecidas numa sociedade ocidental aparentemente igualitária, sob aspecto outro a mulher objeto, que se oferece aos amplos meios de comunicação, mormente na condição de desnudamento, apenas retarda a inserção feminina plena, sem restrições, em todas as áreas da atividade humana.

This post is an appreciation of the book “Mulheres do Alentejo na República” (Women from Alentejo during the Republic), written by Anastásia Mestrinho Salgado, Carlos Emílio Carapinha and Idalete Giga.  It portrays 17 women from the region of Alentejo in Portugal that have been outstanding in their specific fields of activity. For space reasons, I’m unable to mention the 17 women, thus selecting only 3 of them: Virginia Quaresma (journalist), Eunice Muñoz (actress) and Florbela Espanca (poetess). But all the personalities depicted are strong women who transcended the limits imposed to their gender, going where few women dared to go.

João Gouveia Monteiro

Não nego que os nossos jovens não leiam mais.
Por exemplo, é seguro que lêem muito mais periódicos.
E também lêem muito mais em suporte informático.
O que eu digo é que eles, em média, lêem pior,
que há uma infantilização da leitura.
E a prova é que a sua capacidade de expressão por escrito
se está a degradar fortemente.
Pelo menos entre os jovens que frequentam a Faculdade de Letras,
disso não tenho a menor dúvida.
E se é assim em Letras…
João Gouveia Monteiro

Ao longo da existência deste espaço tenho-me referido, não poucas vezes, à aptidão de quem escreve sobre determinada área. Mais me causa admiração quando um autor competente penetra no campo da síntese. Delicia-me verificar verdadeiras viagens ao miniaturismo de certos temas. Abordei recentemente o magnífico estudo de síntese de José Maria Pedrosa Cardoso ao traçar, com ímpar competência, uma História Breve da Música Ocidental (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010). Faço-o novamente não sem razões. A leitura das Crônicas de João Gouveia Monteiro, Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde leciona sobretudo história europeia da Idade Média e história militar antiga e medieval, leva-me à certeza de que o espírito de síntese quando natural, sem empáfia, faz com que todos possam compreender conteúdos aparentemente intransponíveis para o leigo (Crônicas de História, Cultura e Cidadania, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011).

O notável medievalista aceitou escrever quinzenalmente, durante cerca de dois anos, pequenas crônicas para o “Diário de Coimbra”. Reunidas em livro, tem-se três categorias de textos, que se concentram nas Viagens pela História, O Olhar da Cultura e Coimbra e Cidadania. A dimensão de cada texto estaria a obedecer estritamente aos espaços do jornal, duas páginas ou pouco mais na formatação em livro. E é nessa permanência da mensagem a ser transmitida por inteiro que reside a magia de Crônicas de História, Cultura e Cidadania.

Percebe-se, nas três categorias de textos, a preocupação de João Gouveia Monteiro em não deixar dúvidas quanto às suas intenções. Quando na primeira parte, Viagens pela História, dá-nos em poucas palavras verdadeiras aulas, mormente do período medieval, e rememora em datas históricas feitos militares, tratados que marcaram, uniões matrimoniais movidas por nítidos interesses, fatos heroicos. Não apenas transparece a competência inequívoca do autor, como está-se diante da História real, sem tergiversações. Seria lógico supor que tais condensações, destinadas a um público leigo, pudessem conter uma visão exegética excessiva, o que daria ao texto a certeza da informação, mas o desestímulo ao leitor ávido por notícias do cotidiano. É exatamente nesse pormenor que reside a magia do texto de João Gouveia Monteiro. O autor dá a mão ao leitor, caminha com ele, brevemente, pelo fato histórico e interpreta-o como se estivesse presente aos atos que construíram o desenrolar desse pulsar, que sempre esteve a nos conduzir.

Abre a sequência dos episódios das narrativas, Viagens pela História, com crônica que não deixa dúvidas sobre o que vai ser desenrolado: “Varo: devolve as minhas legiões!”, e o acontecimento histórico evocado, traz-nos “ao vivo” Públio Quintílio Varo, legado provincial da Germânia e antigo governador da Síria, que foi protagonista de uma das maiores humilhações do exército de Roma, quando o Império perderia três legiões, delas constando aproximadamente 15.000 homens. Deu-se a batalha a noroeste da Alemanha, próximo da Holanda. Grande tragédia no século 9 da era cristã e que levaria o Imperador Augusto a dizer, enfurecido em pleno delírio: “Quintilo Varo, devolve as minhas legiões”.

De agradabilíssima leitura os textos sobre episódios passados em Portugal e alhures na Idade Média. Detém-se em Fernão Lopes com admiração, a evidenciar as qualidades desse que foi o grande cronista da nobreza portuguesa no século XV. Denomina-o, inclusive, “cronista do povo”. Essa participação descontraída diante da História se faz sentir em tantos títulos das crônicas: “Nós iremos a Jerusalém…”, história que se passa no Egito e na Tunísia no século XIII; “O Infante D. Henrique faz anos!”; “A India com que o Gama não contava!”; “A boda que deu em revolução”, referindo-se à celebração matrimonial de D. Beatriz (filha única de D. Fernando e D. Leonor Teles) com D. Juan (rei de Castela). Feitos pela Europa são revisitados pelo autor que, nessas pílulas literárias, transmite-os ao leitor, mormente quando efeméride está a aguçar a sua memória.

No segmento a abordar “O Olhar da Cultura”, torna-se evidente o fascínio de Gouveia Monteiro pelos livros. Cerca de metade dos textos os tem como fulcro central. Insiste no tema, assistindo com certo estupor à diminuição, entre os jovens, dessa frequência indispensável ao livro: “Ter o livro como um companheiro insubstituível e que não se troca por (quase) nada”. Teme pelo futuro, pois sente o resultado através da escrita pobre dos estudantes. Em “O lugar do estudo na vida universitária” apresenta um certo ceticismo quanto ao estado atual ao qual a docência está a ser conduzida “… os investigadores são agora massacrados com pequenas tarefas burocráticas (questionários, relatórios, reuniões, formulários, fichas, etc.) em que despendem um tempo precioso. O resultado destes dois factores é inevitável: estudam muito menos e a escola a que pertencem caminha a passos largos para se tornar uma espécie de liceu superior”.

Em “Coimbra e Cidadania”, terceiro segmento do livro, Gouveia Monteiro revela seu amor inquestionável pela cidade, a apontar sua destinação cultural, problemas existentes nos espaços públicos; história: “Pedro e Inês: frias memórias de Janeiro”, ao se referir ao trágico romance entre Inês de Castro e D.Pedro I em pleno século XIV, e à valoração que se faz necessária da figura de El-Rei, ainda não devidamente realizada.

Quando criei meu blog, fi-lo a pensar em fugir de meus textos acadêmicos em determinados momentos. Mas, acima de tudo, senti-me livre das por vezes enfadonhas notas de rodapé e das avaliações, nem sempre confiáveis, de colegas com as mais variadas intenções. Hoje aposentado, se frequento o texto acadêmico após aprofundamentos, faço-o liberto de entraves burocráticos. Folga-me verificar nessas crônicas do ilustre medievalista João Gouveia Monteiro, a liberdade que não apaga a competência. Deliciosa a incursão do autor no cinema “histórico”. Ei-lo a comentar “Robin Hood: a história por trás da lenda” de Ridley Scott, tendo Russell Crowe como ator principal, assim como “Bannockburn: uma batalha a lembrar Mel Gibson”. Essa aparente fuga da exegese apenas dimensiona o lado humano e polifacetado de Gouveia Monteiro.

Deixei para o fim  temas relacionados ao Natal, trazendo-nos o espírito de confraternização. Em duas crônicas a efeméride aflora. Na primeira, “O Natal de 800 e a magia da História”, a lembrar que no dia 25 de Dezembro de 800 Carlos Magno era aclamado: “Naquele dia santíssimo da Natividade do Senhor, quando o rei se ergueu depois de orar na missa em frente ao túmulo do bem-aventurado Pedro apóstolo, o papa Leão colocou-lhe uma coroa na cabeça e todo o povo dos Romanos o aclamou: Vida e Vitória para Carlos Augusto, coroado por Deus grande e pacífico Imperador dos Romanos”, conforme consta nos Anais Laurissenses. Concretizava-se a aliança entre a Igreja Católica e a mais forte potência do Ocidente europeu. Em uma segunda, “Os Reis Magos e o incenso dos pagãos”, o autor se pormenoriza nas oferendas dos Três Reis Magos – Baltazar, Melchior e Gaspar – e na simbologia pagã dos presentes ofertados: ouro, mirra e incenso, explicando-as. João Gouveia Monteiro escreve: “Quanto às oferendas, se o ouro se compreende bem, por ser riqueza própria de um rei, já a exótica mirra (usada nos embalsamamentos) e, sobretudo, o incenso (uma resina que produz fumos odoríferos, provenientes de árvores da África e da Arábia), são mais intrigantes. É certo que o uso do incenso está bem atestado entre os Egípcios, os Fenícios, os Persas, os Hebreus, os Romanos e os Árabes, tendo a sua queima alastrado à China. O curioso é que só no séc. IV d.C. o incenso parece ter entrado nos hábitos dos cristãos. Até lá, ele era utilizado pelos ‘pagãos’ romanos, os ‘sacrificados’ e ‘incensados’ que, perseguidos, renunciavam a ser cristãos queimando incenso em honra dos imperadores e dos deuses do panteão romano”!

Crônicas de História, Cultura e Cidadania é obra a ser lida. Trará imenso prazer a quem tiver o exemplar, que pode ser adquirido diretamente de Coimbra: http://livrariadaimprensa.com .

Desejo a todos os meus generosos leitores um Natal pleno de alegria interior. Para os cristãos, que o significado da data penetre nos corações e nas mentes. Para os não cristãos, que a paz seja duradoura.

The post of this week is an appreciation of the book “Crónicas de História Cultura e Cidadania” (Chronicles of History, Culture and Citizenship), written by João Gouveia Monteiro, a medievalist who teaches Middle Age History and Ancient Military History at the University of Coimbra.

 

 

Apresentação do Dr. César Nogueira

Crê com todo o teu ser;
só assim terás atingido o máximo da dúvida.
Agostinho da Silva

A apresentação de meu livro “Impressões sobre a Música Portuguesa” deu-se em Coimbra aos 3 de Novembro último. Entre os ilustres professores doutores que se pronunciaram a respeito durante a cerimônia de lançamento, César Nogueira, musicólogo e regente coral em Coimbra, leu seu texto e acaba de envià-lo via internet.  À gentileza do gesto do pesquisador, soma-se a sua anuência, a meu pedido, para que inserisse a arguta apresentação em meu blog. Publico-a pois,  pelo fato, in adendo, de que durante vários meses, mercê da indicação dos competentes Professores Doutores João Gouveia Monteiro e José Maria Pedrosa Cardoso, o Dr. César Nogueira esteve à testa das revisões de um livro que tem cerca de 60 exemplos musicais, mormente em dois artigos analíticos. Se o prefácio do notável musicólogo e Professor Catedrático Mário Vieira de Carvalho sobrevoa a engajada literatura contida, analisando-a impecavelmente sob a égide de uma realidade que existe, hélas, nas culturas luso-brasileiras, o Dr. César Nogueira penetra em campo hermenêutico mais pragmático e pormenoriza determinados textos. É com prazer, pois, que partilho com meus leitores o texto de apresentação do competente  músico.

“Começo por agradecer à IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA, pela oportunidade e a honra que me concedem de, aqui, hoje, participar na apresentação de IMPRESSÕES SOBRE A MÚSICA PORTUGUESA, Panorama, Criação, Interpretação, Esperanças.

Permita-me o autor, Sr. Professor José Eduardo Martins, pianista e musicólogo, iniciar a minha exposição, com uma primeira impressão, que ficou da leitura atenta do seu livro. Assim, não na forma, mas na substância, a obra parece-me claramente organizada segundo duas posturas distintas assumidas pelo autor. Numa, o Senhor Professor fala de si, como homem que também é músico. Na outra, respeita a atitude do músico que também é homem. Não se trata de enquadrar os textos destas duas classes distintas em partes físicas diferentes na organização textual já que estas duas posturas manifestam-se, entrecruzadas, em toda sua a narrativa. Na primeira, José Eduardo Martins deixa transparecer os traços fundamentais das raízes familiares, da formação e as linhas de conduta da sua personalidade no convívio com as múltiplas individualidades que se foram cruzando consigo. Apresenta-nos, aí, passagens plenas de afecto e de sensibilidade que vão construindo, no leitor, uma espécie de lastro onde se instala a ideia da vontade de conhecer, também, este brasileiro tão aportuguesado ou, vice-versa, este português – com a sua licença – tão abrasileirado. Dos testemunhos de José Eduardo Martins, fica-nos a ideia que, este homem, conheceu todo o meio musical português dos últimos 50 anos. Júlia d’Almendra, João de Freitas Branco, Sequeira Costa, Tânia Achot, Ivo Cruz (pai e filho), Lopes-Graça, Jorge Peixinho, Vieira Nery, Mário Vieira de Carvalho e Pedrosa Cardoso são alguns dos nomes que perpassam nos seus escritos, detendo-se mais nuns do que noutros, evidentemente. Destaco, neste registo – diria eu – assumidamente intimista, o texto: ‘A transparência através das cartas’, onde se evidencia a amizade, ‘em Debussy’, com a pedagoga e ‘debussysta’, Júlia d’Almendra.

De todo modo, em qualquer das duas posturas, é tanto o respeito e, mesmo, o amor pela música portuguesa e pelos seus cultores locais, que, em José Eduardo Martins, de facto, cumpre-se – não só neste seu livro mas, especialmente, na sua vida – um pouco da, sempre adiada, aliança cultural permanente entre Portugal e o Brasil. É bem sabido que todos temos desaproveitado, sistematicamente, esse património intangível mas muito real, que radica na circunstância de dois povos partilharem uma mesma língua, e tudo o mais, de comum, que esta condição comporta. José Eduardo Martins e a sua vida são a excepção a esta regra determinista e implacável que teima em separar o que é junto por nascimento e natureza. A este desígnio refere-se Mário Vieira de Carvalho, no prefácio a ‘Impressões Sobre a Música Portuguesa’, quando afirma, cito: ‘É neste contexto que a singularidade de José Eduardo Martins se agiganta. Ao longo de mais de cinquenta anos, não se limitou a manter e expandir contactos, a promover intercâmbios, como já o tinham feito Lopes-Graça e Jorge Peixinho ou, por exemplo, Gilberto Mendes. Foi muito mais além. Dedicou-se de uma forma continuada à investigação da música portuguesa’. E mais adiante, acrescenta, relativamente à postura de alguns intérpretes portugueses, mais alheios à produção composicional nacional: ‘Poucos ousam escapar ao cânone hegemónico nas salas de concerto ou na produção fonográfica: como se o intérprete precisasse do prestígio do cânone para se sentir ele próprio prestigiado enquanto intérprete, e a música portuguesa fosse um sacrifício, um ónus, que não valesse a pena’.

Ora, para José Eduardo Martins, a música portuguesa vale a pena e, é sobre a sua postura enquanto músico e sobre a maneira como esse músico intérprete se manifesta e reflecte sobre as suas opções estéticas e técnicas pianísticas que aqui me vou deter. E, posto este ponto prévio, que me ajuda a melhor encontrar o caminho desta intervenção, tomo a liberdade de destacar – pelo conteúdo eminentemente musicológico, na área da interpretação, da estética e da análise musical, diria eu, pura e dura – os textos sobre Carlos Seixas, Francisco de Lacerda e sobre Fernando Lopes Graça. Evidencio, ainda, um rico e bem fundamentado ensaio académico sobre interpretação: ‘Interpretação Musical frente à Tradição – Piano como Modelo’, embora, sobre ele, dada a escassez de tempo, não possa deter-me mais do que afirmar que é uma excelente peça de reflexão estética sobre a arte de interpretar reportório pianístico. Quando, atrás usei a expressão ‘pura e dura’, pretendi deixar claro que a linguagem usada, em alguns destes textos é marcadamente técnica, e a ela não terá fácil acesso o leitor menos informado nas coisas da música e, até, em concreto, se não existir alguma experiência e conhecimento básico no campo do que especificamente respeita às questões do que poderíamos chamar ‘pianismo’ ou, mais genericamente, como o próprio autor diz, ‘tecladismo’.

Assim, a título de exemplo, quando o autor alude à ‘técnica consagrada dos cinco dedos’ para, com isso, fazer valer a tese de que o piano herdou e desenvolveu aspectos técnicos e estilísticos do cravo – instrumento praticamente esquecido durante o século XIX – vale aqui lembrar que o uso do polegar foi uma conquista evolutiva da técnica do teclado e que, em 1716, em L’ART DE TOUCHER LE CLAVECIN, François Couperin defendia, ainda, o uso de se passar o 3º dedo por cima do 2º ou do 4º evitando, assim, utilizar o polegar! A generalização do uso do 1º dedo teria ainda de esperar. Em França, citando Patrick Montan, terá sido Jean-Philipe Rameau o primeiro a defender o uso deste dedo, tratando-o ainda, inicialmente, pelo seu nome anatómico e não pelo número ‘1’ com que mais tarde se rotulou. De igual modo, quando José Eduardo Martins compara Seixas com o Scarlatti, é preciso ter noções de leitura musical e perceber tipos distintos de textura. Diz o autor, e parece-me bem, que o discurso do compositor de Coimbra apresenta traços de uma certa irregularidade técnica e musical, sendo difícil, ao executante, antever, como em Scarlatti, o percurso do fraseado. Reside aí, também, parte do encanto e da qualidade do compositor – não é previsível, numa época em que, paradoxalmente, a previsibilidade era a componente estética do conforto mental. Digamos que Carlos Seixas ‘não vai’ para onde, naturalmente, as nossas mãos e dedos acham que ‘deveria ou poderia ir’. Ora, não é fácil fazer sentir isto a quem não conheça um teclado! Contudo, o modo como o discurso é organizado – simples e sem excessos estilísticos supérfluos – e porque as ideias são claras e, note-se, bem sustentadas pela experiência prática, o difícil revela-se fácil de explicar e de entender.

Mas José Eduardo Martins não se fica por estas observações meticulosas, naturalmente mais caras a pianistas e cravistas. Aventura-se, sem receios nem preconceitos, na defesa e fundamentação das teses que sustentam o uso de instrumentos modernos na performance da música antiga. E fá-lo com propriedade dando exemplos felizes da consagração desta ideia – grandes pianistas, de sempre, não tiveram pejo em ler Scarlatti, Rameau ou Bach e só um certo fundamentalismo conservador é que não vê, não só a ausência de desvantagens como os benefícios que esta prática pode conquistar. Sobre Seixas, José Eduardo Martins mostra-nos as suas primeiras impressões através do contacto com a pianista polaca Felicja Blumental cujas gravações dos cravistas portugueses impressionaram muito positivamente Santiago Kastner, primeiro estudioso do compositor conimbricense. Esse contacto precoce com o compositor barroco português parece ter representado uma marca indelével de tal modo forte que José Eduardo Martins jamais deixaria de tocar, gravar e a estudar Carlos Seixas e toda a envolvente que a interpretação pianística de um barroco convoca, como muito bem se evidencia em ‘As Sonatas para Teclado de Carlos Seixas Interpretadas ao Piano’.

Francisco de Lacerda – uma espécie de ‘Um Açoriano em Paris’ à portuguesa e, segundo Bettencourt da Câmara, o primeiro compositor impressionista português – em boa hora abandonou os estudos preparatórios de Medicina, no Porto, para estudar música e abraçar uma carreira de nível internacional, principalmente como regente de orquestra. José Eduardo Martins, nos capítulos: ‘Francisco de Lacerda – O Açorianismo Universal’ e ‘Claude Debussy e Francisco de Lacerda: correspondências sonoras’, enquadra as opções estéticas do compositor da Fajã da Fagueira no contexto dos ousados ventos de mudança da Paris de fins de oitocentos e princípios de novecentos. As abissais diferenças sociais e culturais entre S. Jorge e Paris podem comparar-se aos radicais antagonismos entre os ensinamentos conservadores da Schola Cantorum que frequentou na cidade das luzes e os atrevimentos radicais da estética do tempo protagonizadas por um Satie, um Debussy ou um Ravel. Imagine-se o choque para quem, nos dizeres de Bettencourt da Câmara ‘O murmúrio das vagas e o soprar da brisa fresca foram os seus primeiros mestres de música’! Mas esse choque foi muito bem resolvido por Lacerda. Do concerto de hoje ficámos, (ou) ficaremos, com essa mesma impressão! Sem dúvida marcado pela presença de Debussy, José Eduardo Martins lembra-nos, não só mas também, da opção de Lacerda pelo miniaturismo nas suas ‘Trente-six Histoires Pour amuser les enfants d’un artiste’, sem dúvida, uma das marcas de estilo do compositor francês. Particularmente no artigo dedicado à comparação entre Debussy e Lacerda, José Eduardo Martins desce ao pormenor músico-interpretativo mais recôndito só possível ao grande especialista que é, também, neste campo, como intérprete e como musicólogo.

Lopes-Graça aparece referenciado neste livro em nove capítulos. Cinco desses capítulos são dedicados especificamente ao compositor de Tomar e à sua obra. O autor mostra um conhecimento profundo da obra de Lopes-Graça e lança pistas, mais uma vez muito endereçadas a um público especialista, sobre critérios interpretativos na obra pianística, assim como descreve aspectos analíticos do maior interesse e oportunidade sobre o compositor e pianista, introdutor do modernismo em Portugal. Em ‘Alguns Aspectos do Idiomático Técnico Pianístico e da Escritura Composicional em Quatro Obras Essenciais de Fernando Lopes-Graça’, a profusão de citações musicais, com a colagem no texto de excertos de partituras da obra de Lopes-Graça, requer, por parte do leitor, mesmo daquele mais familiarizado com arte da música, grande concentração e empenho. Diria que é um texto não para se ler, mas para se estudar.

Não poderia terminar sem mencionar o artigo onde José Eduardo Martins evoca a publicação recente, também pela Imprensa da Universidade de Coimbra, de ‘História Breve da Música Ocidental’. Trata-se de fazer a justiça merecida à obra, de investigador, musicólogo e professor, de José Maria Pedrosa Cardoso que, no resumidíssimo volume, consegue traçar as linhas mestras da história da música ocidental, tarefa apenas possível a quem pode, pelo profundo conhecimento, separar o essencial do acessório sem cair, ainda assim, nas malhas do banal fácil e já mais do que suficientemente repetido até à exaustão. Mas a proposta literária de Pedrosa Cardoso não é, neste livro, a de um resumo condensado. A escolha dos títulos dos capítulos revela, por si só, estar-se, realmente, perante uma outra maneira de ver e de classificar os tempos da música no tempo e, desse modo, revela-se aqui uma nova história já que história não é só a verdade mas sim, e principalmente, a interpretação da verdade.

O livro de José Eduardo Martins não é só um livro. É um livro e um CD com 40 faixas de música interpretada pelo autor. Acaso não houvesse já razões de sobra para a justificação desta edição, só o facto de se acrescentar a possibilidade de ouvir a música sobre a qual se falou, representa uma originalidade valiosa pelos grandes benefícios que transporta.

Felicito, de novo, autor e editora pela obra lançada.

Obrigado.

César Nogueira”

Acabara de finalizar o post, quando recebo do ilustre Professor Henrique Manuel S. Pereira, da Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa (Porto), o comentário sobre meu livro. Compartilho-o com o leitor, que poderá acessá-lo clicando no link:

http://guerrajunqueiro.wordpress.com/2011/12/14/impressoes-sobre-a-musica-de-junqueiro/

This week’s post is a transcription of the introduction to my book on Portuguese music that was released by the Coimbra University Press last November. This introduction was written by Professor César Nogueira, musicologist and choral conductor in Coimbra.