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Livro e Recital

O tempo é, também ele, um
arquitecto. E um arquitecto
que não se engana.
Siza Vieira

Deu-se, neste último dia 3 de Novembro, o lançamento de meu livro “Impressões sobre a Música Portuguesa” pela Imprensa da Universidade de Coimbra. À mesa da apresentação estiveram os ilustres Professores Doutores Delfim Ferreira Leão ― Diretor da Imprensa da Universidade de Coimbra―, João Gouveia Monteiro,  os Doutores Ana Alcoforado ― Diretora do Museu Machado de Castro, local do evento ― e César Nogueira.

Às competentes, sábias, mas generosas palavras dos senhores doutores, seguiu-se meu pronunciamento, quando juntei-me ao coro daqueles que, há décadas, insistem nesse crônico desconhecimento que temos ― Portugal e Brasil ― de nossos repertórios e que tão bem foi colocado no prefácio do livro pelo eminente Prof. Dr. Mário Vieira de Carvalho. Causa-me surda tristeza verificar o descaso que se perpetua, em terras brasileiras, com a extraordinária música composta em Portugal. Nada, rigorosamente nada ― salvo raríssimas exceções ― se conhece da música erudita composta em Portugal desde período a anteceder o Descobrimento!!! Tenho a mais absoluta convicção de que, se nas principais salas sofisticadas do eixo São Paulo-Rio de Janeiro, apinhadas de um público acostumado à mesmice, alguém solicitasse o nome de um compositor português, do barroco à contemporaneidade, um constrangimento sem precedentes pairaria no ar. Se o mesmo acontecer no eixo Lisboa-Porto, porventura alguns lembrarão de Villa-Lobos. E é só. Pobreza absoluta, descaso sem limite. Samba e fado cruzam os oceanos: o primeiro, rumo ao hemisfério norte, em suas múltiplas vertentes levando personagens carimbados; o segundo, nostalgicamente perpetrado por portugueses da diáspora residentes nos trópicos, mas com ouvidos tampados à música de concerto portuguesa. Essa é a vergonhosa situação a que chegamos. Se um intérprete afamado, nascido em um dos nossos países, apresentar-se nessas geografias irmãs, será preferencialmente para desfilar seu talento em repertório sacro-santo consagrado nos países abastados, hoje nem tanto.

Esses conceitos cáusticos percorrem mais de um artigo de meu livro. Contudo, a essência essencial que me moveu a aceitar o generoso convite do Prof. Dr. João Gouveia Monteiro, então Diretor da Imprensa da Universidade de Coimbra, foi o de documentar a incomensurável admiração que já lá se instalou em minha mente e meu coração, desde a década de 50, pela criação musical em Portugal. A cada ano incorporo ao meu repertório obras magistrais portuguesas. Não me canso de fazê-lo, antes, excita-me mergulhar nessas composições. Todavia, pasmo, assisto à passagem dos anos e ao descer do silêncio — salvo exceções, a fim de que as trevas não sejam absolutas — abatendo-se sobre Carlos Seixas, que nada fica a dever ao seu notável contemporâneo Domenico Scarlatti; Francisco de Lacerda, cujas Trente-six histoires pour amuser les enfants d´un artiste são diamantes do maior quilate; Fernando Lopes-Graça, um dos maiores entre os maiores do século XX. Qual sociedade de concerto no Brasil conhece sua obra? Quanto a Portugal, há heróis aqui radicados  que labutam diariamente nessa difusão pequena, pois sem uma guarida maior do Estado, tocando e gravando esses autores mencionados e outros de grande valor. Mas há necessidade de ultrapassar fronteiras, ombrear esse imenso repertório àquele freqüentado no Exterior. Há que se mudar mentalidades: das associações de concerto, que buscam o lucro através de patrocínios e das assinaturas de abonés afortunados; dos intérpretes, que se submetem sem rubor à lei do mercado; do público em geral, que, se refletir com consciência, perceberá que ficou preso na armadilha do marasmo, dela a não saber ou a não querer libertar-se. Para tanto, as sociedades de concerto trazem nomes consagrados e todo o sistema se empobrece culturalmente.

Após a apresentação do livro, houve recital com apresentação de obras do grande compositor açoriano Francisco de Lacerda, mormente as suas Trente-six histoires… A coletânea de Lacerda teve precioso data show preparado pelo competente Prof.Dr.Pedrosa Cardoso, que cuidadosamente soube destacar todas as frases e palavras do insigne músico inseridas em cada peça programática do riquíssimo caderno. A completar o recital, tivemos as composições de dois notáveis autores, que prestaram tributos ao músico açoriano: Eurico Carrapatoso e François Servenière. O numeroso público saudou com raro entusiasmo o repertório apresentado.

A tournée prossegue, e os posts estarão a surgir naturalmente nessa caminhada artística movida pelo ato amoroso.

 

Panorama-Criação-Interpretação-Esperanças

Sim, o crítico dos críticos é só ele – o tempo.
Infalível e insubornável.
Guerra Junqueiro

Já muito se escreveu sobre a analogia do lançamento de um livro e a paternidade. Há sempre proximidades que podem ser estabelecidas. O tempo de gestação de uma obra não obedece a prazos determinados. As fronteiras se estabelecem entre meses ou incontáveis anos, a depender de tantos fatores.

Foi com prazer imenso que recebi do Professor Doutor João Gouveia Monteiro, ilustre medievalista e então Presidente da Imprensa da Universidade de Coimbra, o convite para apresentar material para um livro unicamente sobre música portuguesa, que seria submetido à Comissão Especializada. Lembro ao leitor que nestes últimos anos tenho-me apresentado regularmente como pianista em recitais promovidos pela lendária Universidade.

A reunião de artigos publicados em Portugal, França e Brasil, que se estendem de 1992 ao presente, causou-me estímulo especial. Não apenas compositores como Carlos Seixas (1704-1742), Francisco de Lacerda (1869-1934), Fernando Lopes-Graça (1906-1994) e Jorge Peixinho (1940-1994), que tiveram obras por mim gravadas em seis CDs distribuídos na Bélgica, Estados Unidos e Portugal, mas também outros, a que me dediquei amorosamente, resultaram na interpretação pianística. Sob aspecto outro, busquei penetrar no universo misterioso da criação e do pensar musical em Portugal e nesse desiderato o discurso literário foi imperativo. O convívio, por cerca de 55 anos, com a música e músicos portugueses, motivou outros artigos, que foram sendo depositados ao longo dos anos em revistas, arbitradas ou não, e em livros. Igualmente foram anexados posts específicos sobre a Música Portuguesa, publicados em meu blog desde 2007.  Aprovados pela Imprensa da Universidade de Coimbra, o livro nascerá neste 3 de Novembro, seguido de recital de piano em que interpretarei obras de Francisco de Lacerda e homenagens a ele prestadas pelos excelentes compositores François Servenière, da França, e Eurico Carrapatoso, das terras lusíadas. Lançamento e recital deverão se processar na sala do belo Museu Machado de Castro em Coimbra, sob a égide da Universidade que foi criada por D. Diniz em 1290.

Reunidos os  artigos, tenho o imenso gosto de ver a precedê-los o prefácio do notável musicólogo Mário Vieira de Carvalho, professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa. Entre outros temas, aponta o ilustre pensador para o desconhecimento mútuo da criação musical não popular dos povos irmãos.

A Jangada de Pedra

“José Eduardo Martins é um artista de raro perfil, tanto mais quando o consideramos no contexto da tradição luso-brasileira. Uma tradição que se fragmentou e se perdeu desde que os dois países seguiram o seu próprio rumo há perto de dois séculos. Decerto, tem havido contactos, algum intercâmbio, alguma cooperação, mas nada que faça de Portugal ou do Brasil algo de quantitativa ou qualitativamente diferente do que eles são nas suas respectivas relações de parceria com países terceiros. No campo da música, se excluirmos a música  popular, podemos dizer que nenhum dos países conta com o outro. Com que frequência vêm compositores, intérpretes, orquestras e outros agrupamentos musicais brasileiros apresentar-se em Portugal na Casa da Música, no Centro Cultural de Belém, na Fundação Calouste Gulbenkian, enfim, em vários outros espaços de concertos? Olhamos para sucessivas temporadas, ao longo de anos, de décadas, e é como se o Brasil não existisse. É como se não existissem lá compositores, solistas dos mais variados instrumentos, orquestras, grupos de câmara, nada de interesse para o público português. As agências internacionais de concertos apoderaram-se inteiramente da nossa vida musical, onde colocam (por vezes a peso de ouro) o êxito acumulado do ‘centro’. E nem sequer passa pela cabeça das instituições e dos seus ‘programadores’ que Brasil e Portugal, juntos, bem podiam criar uma nova dinâmica de efectivo intercâmbio que se projectasse não só no espaço cultural luso-brasileiro, mas também para fora dele. O mesmo se passa do outro lado do Atlântico, onde o repertório e a programação revelam notório desinteresse por compositores e intérpretes portugueses.

É neste contexto que a singularidade de José Eduardo Martins se agiganta. Ao longo de mais de cinquenta anos, não se limitou a manter e expandir contactos, a promover o intercâmbio, como já o tinham feito Lopes-Graça, Peixinho ou, por exemplo, Gilberto Mendes. Foi muito mais além. Dedicou-se de uma forma continuada à investigação da música portuguesa. Estudou-a sistematicamente como musicólogo, mas sobretudo como intérprete altamente consciente dos problemas da sua arte. Estudou-a para se deixar surpreender por ela e para nos surpreender com ela, abrindo novas perspectivas através das suas interpretações. Fez da sua relação com a música portuguesa um projecto autónomo, central na sua trajectória artística: desde o momento da análise e da pesquisa de fontes primárias (reconstrução das obras) até à preparação de registos gravados em condições de realização técnica exemplares. Carlos Seixas, Francisco de Lacerda, Fernando Lopes-Graça, Jorge Peixinho são os nomes de compositores portugueses que José Eduardo Martins mais tem interpretado nos seus recitais e em registos gravados, que se impõem pela sua extraordinária consistência. As suas interpretações valem como paradigma da síntese entre o rigor da pesquisa, a profundidade da análise dos elementos expressivos e construtivos, o conhecimento crítico da escrita e da técnica pianísticas e, por fim, uma genuína entrega ou, se quisermos, apropriação afectiva das obras. Não é por uma qualquer conveniência postiça que José Eduardo Martins se interessa pela música e pelos compositores portugueses. É por uma sincera e sentida motivação. Se não bastasse, por si só, o envolvimento  – o impulso mimético  – que emana das suas interpretações, então os seus ensaios teóricos, conferências e escritos reunidos neste livro aí estariam para testemunhar também esse seu entusiasmo.

São textos penetrantes que mostram uma familiaridade de muitos anos com a música portuguesa, um diálogo permanente com o material, um incessante processo de redescoberta dos compositores e das suas obras. Não é fácil enumerar intérpretes portugueses que tanto tenham investido na música portuguesa e que tanto tenham trabalhado sobre ela ao nível a que José Eduardo Martins a aborda. Poucos ousam escapar ao ‘cânone’ hegemónico nas salas de concertos ou na produção fonográfica internacionais: como se o intérprete precisasse do prestígio do cânone para se sentir ele próprio prestigiado enquanto intérprete, e a música portuguesa fosse um sacrifício, um ónus, que não valesse a pena.

José Eduardo Martins não sofre de tal complexo. Pelo contrário: confessa quanto se sentiria frustrado se tivesse de cingir-se àquele núcleo restrito de obras-primas clássico-românticas em que muitos dos mais célebres pianistas insistem invariavelmente. Renovar o repertório é vital para ele, e a música portuguesa tem alimentado essa paixão pelo constante alargamento dos seus horizontes de intérprete.

Mas, se já é difícil encontrar em Portugal intérpretes que tanto se empenhem assim na música portuguesa, que dizer então quando se trata de música brasileira? Com a sua acção ao longo de mais de meio século José Eduardo Martins criou uma enorme dívida dos artistas portugueses para com o legado da música brasileira. Quem pode ser nomeado, de entre os artistas portugueses, que se tenha interessado assim por compositores brasileiros, que os tenha estudado, interpretado, gravado apaixonadamente, que os mantenha no seu repertório, que os divulgue internacionalmente? Não há um único que o tenha feito com intensidade comparável. Do lado de Portugal, ainda ninguém retribuiu verdadeiramente esse gesto fraterno de diálogo com a cultura musical do país irmão, essa paixão por compreender, fazer nossa, divulgar uma literatura musical – neste caso, pianística  – tão rica e tão diversa, tão abundante em fortes e marcantes personalidades, como Henrique Oswald, Alberto Nepomuceno, Villa Lobos, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Guerra Peixe, Cláudio Santoro, Gilberto Mendes, Ricardo Tacuchian, entre vários outros…

Eis o desafio que José Eduardo Martins lança aos artistas e às instituições de ambos os países: deixarem de estar mutuamente de costas voltadas e lançarem pontes de interacção recíproca. Pensarem Brasil e Portugal como uma imensa rede de possibilidades de formação, investigação e intercâmbio artísticos. Pensarem-se também como parte integrante do mundo lusófono e ibero-americano, que  continua a esperar em vão pelo ‘evento’ que tarda (‘evento’ entendido como estratégia ou atitude essencialmente cultural). Há que soltar a ‘jangada de pedra’ das amarras da sua condição periférica e trazê-la de volta carregada de potencial contra-hegemónico”.

Para o pianista que, desde a juventude, nunca deixou de utilizar a pena, é motivo de grande alegria a publicação do presente livro (Impressões sobre a Música Portuguesa. Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011, 265 págs.), não apenas pela tradição dessa extraordinária Instituição de Ensino, mas também pela razão de ver reunidos mais de 50 anos de reflexão sobre a Música e Músicos Portugueses que, hélas, tantos insistem em ignorar, sistematicamente. Tenhamos esperanças.

Notes on my book about Portuguese classical music, that will be released next 3 November by the Coimbra University Press.

 

 

 

O Pensamento de Daniel Barenboim

A entidade musical  apresenta pois,
essa estranha singularidade de demonstrar dois aspectos,
de existir alternativamente sob duas formas,
separadas uma da outra pelo silêncio do nada.
Essa natureza particular da música
comanda a sua própria existência
e os seus efeitos na ordem social,
pois ela supõe duas espécies de músicos: o criador e o intérprete.
Igor Stravinsky

Não poucas vezes tenho me posicionado sobre o músico completo, aquele que, sendo compositor ou intérprete, desenvolve, por vocação ou por aperfeiçoamento voluntário, a arte de pensar a música e o mundo. Acrescentaria, sob  conditio sine qua non, a categoria do teórico competente que, ao ter praticado um instrumento ou em outra situação, debruça-se acuradamente sobre a escrita musical, a evolução da música através da história e a análise tanto musical como social, atingindo a aura da confiabilidade. Só não pode existir, em termos da arte musical, o subterfúgio, o verniz que encobre a falta do conhecimento aprofundado.

Daniel Barenboim é uma exceção no meio musical. Não apenas um dos mais competentes pianistas de nossos tempos, como notável regente e pensador. Suas interpretações ao piano são referenciais e fogem do livre arbítrio tantas vezes pernicioso. Apesar de seu repertório tecladístico preferenciar uma parcela fundamental das criações franco-austro-germanicas, não há uma só de suas gravações que deixe de transmitir a veracidade possível da partitura e a emoção nela contida. Sob outro aspecto, sob sua batuta o denominado grande repertório já foi visitado e suas incursões nas óperas de Richard Wagner ou nas obras dos contemporâneos Pierre Boulez e Elliott Carter são provas de versatilidade competente, que está sempre a surpreender. Seus conceitos sobre Spinoza, Adorno e Wagner evidenciam o pensador arguto e seus diálogos com o intelectual palestino Edward Said resultaram em livro Parallèles et Paradoxes – avec Edward Said (Paris, Le Serpent à Plumes, 2003).

O livro La Musique Éveille le Temps, de Daniel Barenboim (Paris, Fayard, 2008), aponta para aspectos fulcrais do pensamento do intérprete. Alguns outros textos foram agregados à obra. Pode-se aquilatar o grau de profundidade de seus conceitos sobre música, mormente a complexa área da interpretação em sua essência essencial, naquilo que resultará após intenso debruçamento. Não se atém o livro unicamente à interpretação, e Barenboin discorre sobre seu comprometimento profundo  com J.S.Bach; sua confessa admiração pela criação de Mozart (entrevista); suas lembranças de aprendizado e amadurecimento; homenageia o extraordinário regente Furtwängler; traça seu relacionamento musical com Pierre Boulez; aborda Wagner e a ideologia; e não deixa de rememorar a intensa ligação com o pensador palestino Edward Said e aspectos concernentes à política e ao entendimento entre os homens que professam atávicos e divergentes princípios religiosos, deles decorrendo tanta incompreensão no mundo atual.

Como bem afirma o autor no Prélude, “Não se trata de um livro para músicos, nem para leigos; ele é destinado, preferencialmente, ao espírito curioso e desejoso de descobrir paralelos entre a música, a vida, e essa sabedoria que se torna audível para a escuta pensante”. Num primeiro capítulo Barenboim aborda temas recorrentes e que fazem parte de suas preocupações, como som, silêncio e pensamento. Já teria afirmado que “A relação entre a vida e a morte é a mesma que existe entre o silêncio e música – o silêncio precede a música, sucedendo-a”. O conceito, a envolver o nascimento do som e a sua extinção, magnificamente tratado por Vladimir Jankélévitch nos três livros a abordar a obra de Debussy, adquire, nas intenções de Barenboim, a práxis absoluta através de suas interpretações, que se tornaram paradigmáticas. Traduz-se nesse sentido de entender o encadeamento das frases musicais, dando a cada nota o próprio sentido da individualidade. Para Baremboim, “o último som não é o fim da música e se a primeira nota está ligada ao silêncio que a precede, a última deve estar ligada ao silêncio que segue”. E a partitura conteria toda a complexidade, onde cada nota deverá ter o espírito solidário, ao transferir para aquela que a sucede a missão sequencial. A inteligibilidade das notas que desfilam nessa concepção fraterna fá-lo entender que “se o tempo for muito rápido, o conteúdo advirá incompreensível, pela incapacidade do músico de tocar todas as notas claramente, ou então, do ouvinte de entendê-las; se, ao contrário, for muito lento, também será incompreensível, pois nem o intérprete, tampouco o ouvinte captarão todas as relações entre as notas”.

Pormenoriza as categorias da leitura de um livro e da escuta musical, aquela a possibilitar as associações que se estabelecem através do texto, e esta a necessitar, a partir de cada nota, da tomada de consciência das leis físicas do som, do tempo e do espaço. A acuidade do ilustre  intérprete na captação de todos os elementos sonoros que formam o léxico da partitura vertido para a interpretação aproxima-o do enunciado constante da epígrafe do post.

Barenboim entenderia como equívoco o posicionamento de intérpretes “persuadidos de que a música do passado é atemporal, universal e fonte infinita de inspiração, ao acreditarem que, limitando-se à estreita seleção de obras dos séculos precedentes, terão um conhecimento mais aprofundado”.  O pianista-regente estaria atento à curiosidade que todo músico deve ter em relação à criação contemporânea, que pode, sob outra égide, vir a explicar as obras do passado.

Dedica um capítulo a J.S.Bach J’ai été nourri de Bach. Ter-se alimentado desde a tenra infância de conteúdo essencial da obra de Bach, mormente do Cravo Bem Temperado, deu a Barenboim o sentido sinfônico, pois a polifonia que dela emana estabelece a possibilidade da diferenciação das vozes, a propiciar a leitura tridimensional, como afirma. Como curiosidade mencionaria que Barenboim escreve ter estudado o Cravo Bem Temperado ainda menino, sob influência de seu progenitor. O mesmo se deu em relação ao meu irmão João Carlos, que trabalhou os 48 Prelúdios e Fugas da magistral obra também sob a indicação de nosso pai, gravando nos decênios seguintes a integral de J.S.Bach para teclado. Sob outra égide, meu professor de matérias teóricas e ilustre músico Louis Saguer, não orientaria durante três anos em Paris o seu aluno no sentido de analisar com profundidade, a cada semana, um prelúdio e fuga do C.B.T.? A monumental obra do Kantor seria  paradigma para Barenboim, ensinando, entre outras lições, a independência absoluta de cada um dos dez dedos e a percepção decorrente, que tem tudo a haver com o sinfônico, segundo o  pianista-chefe de orquestra. Essa confessa admiração não teria resultado no futuro regente? Ainda hoje, periodicamente Daniel Barenboim apresenta em público os dois livros do Cravo Bem Temperado, exemplo que, hélas, não parece ter guarida nas novas gerações de pianistas. Nesse capítulo, destaca a prevalência, entre os três elementos básicos da música – harmonia, ritmo e melodia –, da harmonia, eixo paradigmático da composição tonal.

Um dado significativo enunciado por Barenboim e que vem ao encontro de posições que professei em 2001 e ratificadas pelo ilustre musicólogo e saudoso amigo François Lesure, quando de minha gravação para o selo belga da integral para teclado de Jean-Philippe Rameau, diz respeito à interpretação histórica. Escreve o notável intérprete: “Penso que se ocupar unicamente de hábitos históricos e querer reproduzir a sonoridade de práticas musicais mais antigas é restritivo e não é sinal de progresso”. Lesure escrevera que o anátema lançado pelos puristas não tem mais sentido. Barenboim afirma que “a visão puramente acadêmica do passado é perigosa, pois ela está ligada à ideologia e ao fundamentalismo, mesmo na música”. François Lesure afirmaria que “não é o instrumento que assegura a priori a autenticidade da obra, mas o estilo do intérprete”. O pianista-regente, ao afirmar que não tem “nenhum problema filosófico com alguém que toque Bach e o faz soar como Boulez, mas sim com aquele que busca imitar o som daquela época”, não estaria a engrossar a legião de músicos conscientes contra a intolerância? Respeita determinados músicos fabulosos que se dedicam à execução histórica, mas aderir ao que ele denomina “movimento” de cunho  ideológico, cerceia a criatividade humana. Todavia, Barenboim está ciente que tem de haver responsabilidade nessa compreensão interpretativa de obras do passado.

Na entrevista concedida à Christine Lemke-Matwey sobre Mozart, um de seus paradigmas musicais, Barenboim discorre sobre a criação, os meios empregados pelo compositor e a extrema fluidez de sua música. Jocosamente, afirma: “Vinte quatro horas com Mozart seriam como um mês com Brahms – e eu nada tenho contra Brahms”. Dessa entrevista em torno de Mozart, uma observação que seria farol de orientação durante a trajetória do pianista-regente. Ao tocar aos 13 anos a Sonata op. 111 de Beethoven diante de júri respeitável na Academia Santa Cecília, em Roma, teve nove votos a favor e um contra, este do grande pianista Arturo Benedetti Michelangeli. O músico italiano teria-lhe afirmado que uma criança não podia saber o que fazer com aquela música. Considera Barenboim: “Fiquei, pois, permanentemente confrontado com a ideia de que é necessário ter grande experiência de vida para ser um bom músico”.

A admiração inconteste de Barenboin pelo filósofo Spinoza fá-lo discorrer sobre princípios do pensamento do autor de Ética - lido pelo pianista quando ainda em seus treze anos -, e a influência duradoura sobre sua maneira de entender a vida e a interpretação. Entende como fundamento essencial do legado de Spinoza o ultrapassar a contradição entre finito e infinito.

Capítulos são dedicados à estreita ligação com o pensador palestino Edward Said, que resultaria na fundação, em 1999, da West-Eastern Divan Orchestra, arquitetada a partir de músicos provenientes de países conflitantes do Oriente-Médio e cuja ação tem repercussão no mundo inteiro, mormente por ser Barenboim de origem judaica, o que provocaria um sem número de incompreensões, apesar da aceitação inconteste por parte daqueles que sonham ainda com uma paz duradoura entre árabes e judeus. Barenboim receberia em 2008 o passaporte palestino.

Em La Musique Éveille le Temps há capítulos fulcrais em que Daniel Barenboim  focaliza com  argúcia características de individualidade na regência do grande Wilhelm Furtwängler, que servem ainda como referências. Discorre sobre sua amizade com Pierre Boulez, compositor que ele admira e que é um de seus escolhidos quando do repertório orquestral contemporâneo. Em sendo Barenboim um dos grandes regentes das óperas de Richard Wagner, um capítulo a ele é dedicado.

Na atualidade é cada vez mais rara a incursão de um intérprete de imenso valor no campo do pensar música. A agitação hodierna quase que impede a reflexão sobre música e temas humanísticos. É, pois, relevante um livro como La Musique Éveille le Temps, ao menos para músicos e leigos de espírito curioso, como sugere o próprio Barenboim. Sob o título “A Música Desperta o Tempo” o livro foi lançado no Brasil pela Martins Fontes em 2009.

On the book “La Musique Éveille le Temps” (Music Quickens Time), written by Daniel Barenboim, pianist, conductor and – exception among musicians – also an intellectual who discusses non-musical issues. In this book he talks about the West-Eastern Divan Orchestra – with Israeli and Palestinian musicians – he co-founded with his late friend, Edward Said, presents topics on Spinoza, Bach, Mozart, Boulez, Furtwängler and, above all, reflects on the duality sound-silence and on how people perceive the universal language of music.The book is an exceptionally talented musician’s foray into the world of sound and the interconnections between music and life.