Extraordinária Travessia pelo Himalaia

Je ne connais qu’une manière de voyager
plus agréable que d’aller à cheval:
c’est d’aller à pied.
Jean Jacques Rousseau
(“Émile ou De l’éducation”)

Ao longo destes anos estou sempre a salientar meu fascínio pela região himalaia, não apenas pela extraordinária situação geográfica imersa em mistérios, como pelo pensamento budista em parte expressiva do entorno. Tenho inusitado prazer ao ler livros sobre essas duas características essenciais encontráveis nessa extensa cadeia montanhosa. O maravilhamento vem da adolescência e estou a me lembrar de uma primeira leitura de curtos textos, plenos de ilustrações, em O Mundo Pitoresco, essa fascinante coleção que encantou meus primeiros anos, assim como da revolta que senti ao ler, nos idos dos anos 50, um livro do Dalai Lama, já no exílio, sobre o massacre do povo tibetano empreendido sistematicamente  a partir da invasão chinesa. As décadas se passaram e milhões de tibetanos tiveram de fugir ou foram exterminados. O Ocidente diplomaticamente sempre se manteve silencioso.

Se de um lado essa admiração romântica pelo Himalaia faz parte de meu pensar em momentos de serenidade, mantive sempre uma recôndita vontade de um dia pisar essa região. Quem sabe no próximo ano, acompanhado de minha filha Maria Beatriz, possamos realizar esse sonho e visitar o Nepal e o Butão, empreender caminhadas albergando em monastérios e durante umas semanas ser “romanos em Roma”, como reza o ditado.

Em Janeiro de 2011 adquiri em Paris alguns livros do aventureiro solitário e corajoso Sylvain Tesson, tendo comentado em um post dois livros que me encantaram (vide As Incríveis Aventuras de um “Vagabond” – Sylvain Tesson. 28/05/2011) ). Nestes dois últimos meses tive como companhia, nessa leitura antes do sono reparador, a longa narrativa de Alexandre Poussin e Sylvain Tesson, que realizaram em 1997 uma extraordinária caminhada de 5.000km através da região do Himalaia. Toda a vasta área foi percorrida a pé pelos dois intrépidos andarilhos, numa aventura não sem grandes riscos e um tanto quanto visionária (La Marche dans le Ciel – 5.000km à Pied à travers l’Himalaya. Paris, Robert Laffont, 1998, 398 pgs.). O percurso pela Transhimaláia durou seis meses, exatos 174 dias, e os 5.000km sofreram desníveis de altitude inimagináveis, que corresponderam a 121.000 metros!!! Dezenas de vistos, clandestinidades por vezes, prisões breves em determinadas fronteiras, mas a travessia iniciada no Butão, a passar por tantos países montanhosos até a chegada ao Tadjikistão, bem demonstra a intrepidez e a determinação desses jovens andarilhos franceses. Os dois moços tiveram, inclusive, o destemor de atravessar o Tibete, hoje a pertencer lamentavelmente à República Popular da China, sem vistos, “driblando” pois todos os caminhos e atalhos que pudessem colocá-los frente a frente com autoridades chinesas!

Alexandre Poussin e Sylvain Tesson têm um passado marcado por incríveis travessias. Em 1994 os dois percorreram de bicicleta 25.000km pelo mundo e atravessaram 35 países. Desenvolveram separadamente, Alexandre com sua mulher Sonia e Sylvain sozinho, outros tantos percursos memoráveis a pé. Seus livros têm a maior acolhida entre aqueles que gostam desse gênero de literatura.

Essa longa travessia abrangeu as regiões do Butão, Sikkin – Estado ao norte da Índia -, Nepal, China (Tibete), Índia, Paquistão, Afeganistão e Tadjekistão. Minuciosamente, o prolongado percurso teve cálculos prévios, como o peso da mochila pensada a não conter nem um grama a mais dos cinco quilos. Essa sábia atitude teve seu tributo a pagar, pois tiveram de se contentar com alimentos que porventura pudessem encontrar nos seus – circa – 50km de caminhada diária.

Seguir as narrativas de Alexandre Poussin e Sylvain Tesson, que alternam a autoria dos textos em La Marche au Ciel, é agradável, pois o primeiro é mais dionisíaco. Não poucas vezes, metáforas e observações quanto às mudanças das incontáveis paisagens encantam Poussin num estilo a lembrar por vezes Saint-Exupéry, enquanto o segundo é mais pragmático em suas observações, apolíneo diria, e a extraordinária façanha solitária, a reviver epopéia a partir de um gulag na Sibéria ao golfo de Bengala, comentada no post mencionado, é exemplo típico. Essa alternância propicia uma harmonia no todo devido aos olhares diferenciados de cada percurso realizado. Sempre, a anteceder cada narrativa, local, data e altitudes flutuantes.

Um dos interesses do livro reside na resistência humana frente a tantas adversidades. Os desníveis da altimetria nesse incessante sobe-desce, das poucas centenas de metros, quando nos vales, aos 5.000 e tantos metros, adaptações rápidas; alimentação quase sempre precária à base de sopa de massa, biscoitos, chocolate e tsampa, comida característica do Nepal, Tibete e no entorno dessa vasta região; muita água. Por vezes dois ou três dias sem nada comer, mas sempre a caminhar. Poussin e Tesson revelam dados, até de ordem sociológica, ao comentar a hospitalidade dos habitantes encontrados, que nunca recusavam oferecer chá, dividiam as parcas refeições, propiciavam algum espaço para o descanso. Tão logo se apresentavam para budistas (Butão, Sikkin, Nepal, Tibete) ou muçulmanos, no caso nas regiões do Paquistão, Afeganistão ou Tadjikistão, havia a acolhida, pois sabiam-nos peregrinos. No isolamento dos grandes desfiladeiros ou ao percorrerem vales profundos, um só pensamento estava a pairar, ou seja, completar a longa marcha. Como bem escreve Poussin: “A cada terreno corresponde um caminhar diferente, uma abordagem nova”. Inúmeros rios e corredeiras foram transpostos, gelados ou menos gelados, encostas abruptas contornadas, gelo, neve, chuvas torrenciais, o andar à noite quando a lua poderia auxiliar com sua luminosidade artificial.

A comparação que Tesson faz entre Nepal e Tibete é digna de registro. “O Tibete se revela como tal: um planalto de vento. Caminhamos dez a doze horas diárias com vento pela frente e por trás. Por vezes 70km, não sabemos outra coisa que andar”. Continua: “O que nos droga é o horizonte sem limites. A imutabilidade dos panoramas. A fuga do espaço, à medida que avançamos. O caminhar no Nepal nos habituou, contrariamente, às perspectivas do sous bois. Víamos raramente mais do que dois ou  três quilômetros, exceção às encostas. Aqui, no Tibete, os espaços são consideráveis. Temos a impressão  de caminhar em um quadro. Cada horizonte instala-se como uma decoração petrificada, a ser necessário percorrer 50 a 60km para modificá-la”. Será Tesson que na Cachemira terá uma sensível observação sobre os seus sapatos de todos os dias. Digna do filósofo alemão Martin Heidegger ao estudar os de um camponês, eternizados em quadro de Van Gogh.  Escreve o aventureiro: “Como um convite para partir, um sapateiro flutuante nos traz em seu barco, uma manhã, os sapatos estourados que lhe confiamos há dias. Ele os deixou novos. Os reparos efetuados desde o Nepal se sobrepuseram: há peças de couro tibetano, costuras chinesas, ligaduras com fio de nylon – os patchs do norte da Índia – e, presentemente, os consertos da Cachemira. Não são mais sapatos, são cartas geográficas impressas em palimpsesto”.

Ambos os caminhantes, à la manière de pigmaleões, são budistas nas regiões onde a religião é majoritária e “seguidores” do Islã ao atravessarem territórios predominantemente sunitas. Fazem-se passar por muçulmanos bósnios, mas são sempre bem acolhidos, sentindo a imediata relação afetiva tão logo adentram quaisquer lares. Tesson tece interessante observação ao abordar in loco a problemática do conflito Índia-Paquistão: “Os muçulmanos indianos recusam, no caso de um conflito aberto contra o Paquistão, enfrentar outros muçulmanos e, para certos combatentes, a subordinação à nação se apaga diante do sentimento de uma disputa religiosa comum com o adversário”.

Chega mesmo a ser jocosa a narrativa dos inúmeros problemas que tiveram nas fronteiras do Tibete, da India – sempre receosa de uma incursão chinesa, segundo eles -, do Afeganistão e do Tadjequistão, país este com forte controle dos russos nos limites geográficos. Como não lutam com o tempo, “deixam-se” aprisionar e, após serem levados a algum centro distante das fronteiras, mas onde uma autoridade maior decide, são julgados, “presos” por dias ou horas e libertos. Contudo, preferem retornar ao ponto onde foram interceptados, a fim de realizar o trajeto, antes percorrido por jipe ou caminhão, a pé. Daí a satisfação da conclusão em Horog, no Pamir, dos 5.000km à pé.

Uma narrativa da pena de Alexandre Poussin ao narrar um aclive acentuado: “A elevação é fulgurante; o anfiteatro montanhoso, azulado pela luz do luar, nos invade pela grandeza e serenidade. O silêncio é espacial, o vazio, um mar de tranquilidade”. A descrição do vale do Wakhan, no Afeganistão é também plena de lirismo e emoção, ao lembrar-se Poussin de Alexandre,  Marco Polo, um vale “que pela primeira vez não se apresenta anônimo, pois nos fala da história, do choque das armas, lutas e conquistas. Estão tão longe nossos pequenos vales nepaleses!”

O não compromisso com veículo de comunicação dá-me a liberdade de resenhar e comentar. Se as resenhas surgem na medida em que obras novas chegam às minhas mãos, nem por isso deixo de ter a alegria ao comentar livros publicados bem anteriormente. Proporcionam-me o equilíbrio? Talvez. Agradam-me? Sempre.

An appreciation of the book “La Marche dans le Ciel”, written by the French adventurers and travel writers Alexandre Poussin and Sylvain Tesson. Both trekked across the whole length of the Himalayas, from Bhutan all the way to Tajikistan. The epic adventure – that even involved being arrested – was recorded in this book, describing the perils of the wilderness, their encounters with different cultures and characters and the beauty of remote lands.