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Patrimônio Mundial da Humanidade

Toda a grande obra supõe um sacrifício;
e no próprio sacrifício se encontra a mais bela e a mais valiosa das recompensas.
Agostinho da Silva
(“Considerações”)

Neste segundo post a respeito do magnífico livro “Cinco Joias de Coimbra”, os capítulos finais se detêm sobre três outras joias que integram o ambiente singular de uma cidade que apresenta a Universidade de Coimbra como símbolo maior.

“O Órgão da Capela de São Miguel”, “O Jardim Botânico da Universidade de Coimbra – A Casa Verde da Univers(c)idade”, “Museu Nacional de Machado de Castro – Da herança patrimonial aos desafios do futuro” completam a pormenorizada abordagem das joias conimbricenses em seus textos redigidos por respeitados especialistas: Paulo Bernardino, Ana Cristina Tavares e Maria de Lurdes Craveiro, respectivamente. Preciosa documentação iconográfica ilustra os ensaios.

Paulo Bernardino, organista titular da Capela de São Miguel, Paço das Escolas da Universidade de Coimbra, Especialista em Música Sacra e Doutorado em Direção (Coral e de Orquestra), assina sucinto e rico texto sobre o singular órgão da Capela de São Miguel da UC.

Uma primeira referência em Portugal sobre o instrumento órgão data de 1453. Uma das características do denominado órgão ibérico era a presença de um só teclado, apesar de não muitas outras diferenças em relação aos órgãos de outros centros europeus. Paulo Bernardino pormenoriza, com arguto conhecimento, as características evolutivas do órgão. Chama a atenção um dado relevante expresso por Bernardino: “Um dos desenvolvimentos mais significativos e idiossincráticos do órgão ibérico, datado da segunda metade do século XVII, consistiu na introdução de registros de palheta em tubos colocados horizontalmente na fachada do órgão, na posição dita de chamada”.

Bernardino insere conteúdo histórico de interesse: “A subida ao trono de D.João V, em 1706, correspondeu a uma profunda alteração na história da música portuguesa. No âmbito da sua ação política, este monarca impôs a importação dos modelos litúrgicos e musicais de Roma. Tal não deixou de ter consequências na própria organaria, levando a uma reaproximação da organaria portuguesa aos modelos musicais italianos, sem, contudo, perder o seu caráter”. A seguir, elenca os materiais constitutivos do magnífico órgão da Universidade de Coimbra.

Logo após, Paulo Bernardino tece comentário breve sobre a escolha do repertório adequado ao instrumento, mas a possibilitar outras opções. Entusiasta, almeja um destaque maior para o magnífico órgão da Capela de São Miguel e observa: “Na verdade, apesar da conjugação de muitas vontades e iniciativas – tanto internas como externas à universidade – o Órgão da Capela da Universidade, apesar de um ex libris da organaria ibérica a nível mundial, permanece um desconhecido para a cidade”. O Professor João Gouveia Monteiro, no prefácio das “Cinco Joias de Coimbra”, comenta: “É muito sedutora a hipóteses avançada, em 2004, pelo saudoso Doutor José Maria Pedrosa Cardoso (docente da Universidade de Coimbra), que sugere que pode muito bem ter sido Carlos Seixas (1704-1742) a estrear em (1738?) o ‘colossal instrumento’ na provável cerimônia pública de inauguração da preciosidade à guarda do arcanjo São Miguel”.

Clique para ouvir, de J.S.Bach, Prelúdio e Fuga em Sol Maior do 2º volume do Cravo bem Temperado, na interpretação de Paulo Bernardino, frente ao órgão da Capela de São Miguel da UC:

Prelúdio e Fuga em Sol M – 2.º Vol. do Cravo Bem Temperado – J. S. Bach (youtube.com)

Ana Cristina Tavares assina a contribuição “O Jardim Botânico da Universidade de Coimbra – A Casa Verde da Univers(c)idade”. Entre outras titulações, a Professora é Doutora em Biologias (Fisiologia das plantas) pelo Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra. Foi Diretora-Adjunta do Jardim Botânico de Coimbra (2019-2021).

As palavras do ilustre prefaciador, Professor João Gouveia Monteiro, servem de peristilo ao ensaio de Ana Cristina Tavares: “Numa palavra, é um lugar de sonho, situado no coração da Alta coimbrã e com nada menos de treze hectares de área, dos quais nove correspondem ao arboreto da mata e os restantes aos socalcos do jardim clássico”. Lá estive, quanta verdade nas palavras de Gouveia Monteiro!

A autora define a missão do JBUC: “Cumprindo o objetivo da sua fundação no séc. XVIII, o de proporcionar aos alunos da disciplina de História Natural o conhecimento prático e direto, em contexto natural, das plantas aromáticas e medicinais (Henriques 1876), o JBUC mantém a preocupação da interpretação do espaço e a ligação à docência e à investigação in situ”.

Ana Cristina Tavares narra a rica história da JBUC e aprende-se a presença de figuras decisivas no transcorrer. Assinatura do Marquês de Pombal (1699-1782) nos Estatutos da Universidade, a resultar no consequente “Horto Botânico” aos 28 de Agosto de 1772;  a nomeação do primeiro diretor, o notável naturalista italiano Domenico Vandelli (1735-1816), no mesmo ano. O pleno didatismo da Autora faz-nos conhecer as personalidades que marcaram a história da JBUC, que há pouco comemorou os 250 anos, as muitas coleções de espécies de árvores e plantas – só nas estufas tem-se 1500 espécies diferentes!

Escreve Ana Cristina Tavares sobre a riqueza que se descortina ao se visitar o Jardim Botânico: “Ao percorrer o JBUC sentimos um ambiente marcante e diferenciado, quer pelas duas áreas distintas, o jardim clássico e o arboreto, quer pela variedade das coleções, algumas nativas e a grande maioria delas exóticas, fruto do propósito da sua fundação. As plantas, cultivadas no exterior e/ou em viveiros e estufas, muitas delas caducifólias (isto é, de folha caduca) e por isso nem sempre visíveis no seu máximo esplendor, conferem pluralidade ao Jardim, sempre rico e diferente em cada mês”.

De alto significado o subcapítulo “A Educação no Jardim: veículo de interpretação e de conhecimento”, no qual a rica diversidade do JBUC enseja um debruçamento pleno nos programas educacionais afins.

A leitura do capítulo em pauta leva o leitor à certeza de que, sem uma relação amorosa com a área escolhida, lacunas se apresentam. Ana Cristina Tavares possui esse dom imanente, o de afeto com o todo do JBUC.

O último capítulo, “Museu Nacional de Machado de Castro – Da herança patrimonial aos desafios do futuro”, tem a autoria de Maria de Lurdes Craveiro, Professora Associada com Agregação da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Investigadora de Centros de Estudos da UC e Diretora do Museu Nacional de Machado de Castro.

Acresça-se que desde 2019 o MNMC integra a lista do patrimônio de Coimbra classificado pela UNESCO.

Preliminarmente, o estudo da Professora Maria de Lurdes Craveiro poderia bem integrar uma Aula Magna, mercê do imenso levantamento histórico e da inserção do acervo do MNMC. Mencionar o introito do texto abrangente se faz necessário: “Fundado em 1911 e tendo aberto ao público em 1913, o MNMC herdou as estruturas edificadas do Paço Episcopal e do antigo criptopórtico romano de Aeminium;  foi sobre elas que se viria a implantar todo o seu percurso nobilitado, que se compreende, em simultâneo, pela grandeza do assentamento, pelo diálogo constante com o território de poder envolvente e pela natureza específica das suas coleções”

Nos significativos subcapítulos, a Autora remonta ao século I e “Mais do que uma História Milenar” conduz o leitor “à construção do fórum romano em que a cidade de Aeminium assentou a sua autoridade religiosa, social, econômica, política e administrativa”.

A seguir, Maria de Lurdes Craveiro pormenoriza cada etapa histórica do espaço, mencionando resultados e a série de personagens, tantos notáveis, até chegar ao “O século XX e a musealização do espaço”, quando da fundação do MNMC. Reparações profundas foram feitas, máxime a do arquiteto Gonçalo Byrne (1999), mercê de deterioramentos acentuados. A importância de MNMC atraiu peças importantes provenientes de outros edifícios históricos que foram incorporadas ao seu precioso acervo, a resultar na honrosa classificação em 2019, doravante Patrimônio Mundial.

Ao dedicar um subcapítulo aos “Diretores”, a Autora rende justo tributo às figuras que conduziram o MNMC ao pleno reconhecimento internacional.

Um último e precioso subcapítulo se estende às “Coleções”. Impõem-se pela grandeza e qualidade artística. Escultura em barro cozido, escultura em madeira, ourivesaria, pintura, desenho, cerâmica e têxteis. Determinadas obras-primas do MNMC, fotografadas por Maria de Lurdes Craveiro, dão uma ideia da grandiosidade do acervo.

Demonstrando o essencial para que uma produtiva ação diretiva realize intentos, a Autora insere nas conclusões: “Cumprindo a sua vocação centenária, o que o Museu Nacional de Machado de Castro suscita é, assim, mais ciência, mais investigação, mais meios técnicos e humanos, mais articulação comunitária e institucional (nacional e internacional), mais na construção dos afetos exteriores”.

“Cinco Joias de Coimbra” não é apenas um livro grande, mas um grande livro. Impecável coordenação do Professor Catedrático João Gouveia Monteiro e da investigadora Maria Leonor Cruz Pontes, tendo a preciosa colaboração da Associação RUAS.

Aos 3 de Novembro de 2012 apresentei um recital no Museu de Machado de Castro com obras de Francisco de Lacerda (1869-1934) e de dois relevantes compositores que criaram obras em homenagem ao notável músico açoriano, François Servenière (1961-) e Eurico Carrapatoso (1962-), por ocasião do meu primeiro livro publicado pela Imprensa da Universidade de Coimbra, “Impressões sobre a Música Portuguesa”.

Clique para ouvir, do extraordinário compositor conimbricense Carlos Seixas, Sonata nº68 em lá menor, na interpretação de J.E.M.

Carlos Seixas – Sonata nº 68 in A minor – José Eduardo Martins – piano (youtube.com)

Three other chapters conclude the substantial book “Five Jewels of Coimbra”. Signed by renowned experts, it is a must-read for those who wish to learn more about the riches that emanate from the University of Coimbra, founded in 1290.

O leitor como partícipe

Il est plus aisé de connaître l’homme en général
que de connaître un homme en particulier.
La Rochefoucauld  (1613-1680)
(“Réfléxions ou sentences et maximes Morales”)
Máxima inserida no primeiro blog.

Neste preciso 2 de Março completamos 17 anos de blogs ininterruptos, publicados semanalmente, sempre aos sábados. Ao todo, exatamente hoje, chegamos aos 900 posts. Foram tantas as vezes em que comentei que, assim como a respiração não pede férias, as crônicas hebdomadárias também. Durante esse longo período, mesmo em situações difíceis, temas surgiam e eram digitados tão logo o arcabouço se formava em minha mente. Meu saudoso amigo Luca Vitali (1940-2013), artista exemplar, sempre que lhe apresentava um tema do post da semana que lhe era caro, dias após me enviava um desenho.

O primeiro blog publicado no longínquo 2007 teve como título “Praeambulum”. Reproduzo frases contidas no post inicial: “Pareceria cristalino que parte do meu de profundis estará a ser desvelado e, assim, tantos segredos virão a ser decifrados. Manter a periodicidade será fruto prazeroso. Após a sedimentação do blog, o hábito e o consequente afeto ao mister”.

Nessas centenas de crônicas, houve períodos em que determinados temas me levaram a dedicar séries que paulatinamente pontuavam intercaladas por assuntos outros, geralmente sem continuidade. Assim sendo, quantos não foram os livros do geógrafo, escritor e andarilho francês Sylvain Tesson (1972-) ou das aventuras de sucesso ou trágicas empreendidas por sonhadores na cadeia do Himalaia?  Essas intrépidas figuras permeavam minhas leituras desde a adolescência, juntamente com os grandes escritores do passado, neste caso orientado pelo meu saudoso Pai, que sempre entendeu a leitura dos clássicos como alicerce para a formação humanística.

A série sobre grandes pianistas do passado surgiu espontaneamente. À medida que pianistas desfilavam no meu blog, lembrava-me de outros mais, notáveis todos. A reverência ao passado glorioso desses músicos extraordinários sempre teve uma razão fulcral, o profundo respeito às partituras professado por esses intérpretes. Igualmente havia a gestualidade econômica, pois o essencial era a transmissão a mais fidedigna das obras executadas. Luminares de antanho, quando vocacionados às letras, deixaram, além das gravações excelsas, depoimentos que servem como bússolas àqueles novéis que tendem a trilhar o caminho da interpretação.

A temática sobre o repertório que gravei, máxime na Bélgica, povoou vários blogs, estes sempre acompanhados por explicações concernentes à origem da criação e do porquê de estar a gravar. Prioritariamente gravei obras extraordinárias do passado, pouco ou nada frequentadas pelos intérpretes. Quanto à música contemporânea, gravei peças de várias tendências, contudo me ative mais acentuadamente àquelas que não buscavam “suprimir as referências de outros períodos artísticos”, no dizer do ilustre compositor francês François Servenière (1961-).

Clique para ouvir, de François Servenière, Promenade sur la Voie Lactée, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=LSfmHoqmjoo

Bem mais de uma centena de posts dediquei à Cultura portuguesa, mormente à música. Não tenho dúvidas de que esse afeto teve origem na pregação de nosso Pai, minhoto, aos valores de Portugal. Ao longo das décadas, na  medida em que penetrava nessa Cultura, mais a admirava. É um privilégio ter dois livros publicados pela Imprensa da Universidade de Coimbra sob o título “Impressões sobre a Música Portuguesa e outros temas” (I e II). Grandes compositores de Portugal, Carlos Seixas (1704-1742), Francisco de Lacerda (1869-1934), Fernando Lopes-Graça (1906-1994), Jorge Peixinho (1940-1995) e Eurico Carrapatoso (1962-) não apenas pontuaram inúmeros posts, como deles gravei obras referenciais, algumas delas hoje no Youtube. Só lamento a quase absoluta ausência da música de concerto, clássica ou erudita portuguesa nos repertórios de nossos intérpretes. Infelizmente, as representações – oficiais ou não – de Portugal pouco ou nada divulgam a música erudita do seu país em nossas terras. Fato.

Clique para ouvir de Carlos Seixas, Sonata nº 34 em mi menor, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=QXoSKycVA5k&t=14s

A leitura – assim como a exponencial música – também faz parte do meu respirar. Desses 900 posts, mais de 250 foram resenhas de livros que me encantaram (vide lista no menu do blog: Livros – Resenhas e comentários). Quantas vozes têm pregado a necessidade da leitura, infelizmente, máxime pelas novas gerações, reduzida basicamente às engenhocas telemóveis. Pouco a fazer.

Nesses 17 anos, as corridas de rua tiveram espaços em meus blogs. A partir do início de 2022 só realizo caminhadas de oito a dez km duas vezes por semana, após duas centenas de corridas de rua em São Paulo, cidades vizinhas e Bélgica. Acatei a sábia opinião do notável ortopedista Dr. Heitor Ulson, após uma queda que sofri durante treinamento e que teve como consequência a quebra da cabeça do úmero do braço esquerdo. Felizmente, o acidente não prejudicou minha prática pianística. Das corridas do passado às caminhadas atuais, os temas frequentam a minha mente no ato da prática esportiva, e em plena madrugada, meus dedos visitam um outro teclado.

Quanto ao cotidiano, que por vezes aflora como temática, devo ao hábito de observar desde a adolescência. Foram muitos os posts sobre viagens e decorrências devidas às atividades musicais. Acredito que observar é um dos dons fundamentais do homem e se amalgama perfeitamente à curiosidade. Através desta última chegamos às investigações, descobertas e resultados, mesmo que tímidos, fundamentais para o homem a fim de um conhecimento mais abrangente.

Instigado por diversos leitores para que me pronuncie sobre política em meus blogs, declino sempre. Há especialistas, alguns ilustres, que realizam análises inteligentes. Um deles, meu querido irmão, o jurista Ives Gandra Martins, uma das mentes mais brilhantes deste país.

Ficam neste espaço meus agradecimentos efusivos aos leitores que têm me acompanhado nessa já longa viagem. É sempre motivo de alegria a recepção de mensagens vindas de tantos rincões diferentes. Seguirei a publicar os blogs sempre aos sábados. Estímulo não falta, mormente nesses tempos tão estranhos que estamos a viver. Grato também à Regina Maria, vizinha desde os anos 1980 e dileta amiga, que faz a revisão de meus blogs, pois gralhas existem e, no dizer do nosso grande compositor romântico Henrique Oswald (1852-1931), “o pior revisor é o autor e, entre esses, sou o pior”. Por fim, Regina, minha mulher, pianista também e que sempre teve a paciência de me entender nessas viagens pelo imaginário. Ela e o querido clã familiar corroboram a travessia.

On March 2nd my blog completes 17 years of continuous weekly publication. I haven’t missed a single Saturday. Thanks to all my readers for their constant encouragement.

 

O impacto da criação musical sob a perspectiva de Eduardo Lourenço

Sozinho no meu escritório
deixo que a música suba até mim
e ofereço-me a ela desarmado.
Eduardo Lourenço
(“Sozinho no meu escritório”, 1953)

Se nada mais ficasse da civilização passada que a música
do Bach, do Mozart, do Brahms,
isso bastaria para que a ideia de Deus
fosse imperecível na memória humana.
Eduardo Lourenço
(“Brahms. Ein Deutsches Requiem“, 21,09,1953)

Os textos sobre música do ilustre filósofo e professor português Eduardo Lourenço (1923-2020) são de curta ou média dimensão. Alguns a conter apenas um breve parágrafo, certamente para que uma ideia não lhe fugisse. Tem-se textos sine data e dos períodos conimbricense, alemão e francês, finalizando com quatro mais recentes. Um aspecto afigura-se fulcral, a coerência a atravessar o tempo.

No blog anterior prometi a inclusão de posicionamentos de Eduardo Lourenço sobre alguns compositores elencados nos 99 capítulos. Creio que as considerações do filósofo têm importância, apesar de afirmar distância de qualquer critério técnico-analítico, “da música só posso falar como receptor passivo”. Eduardo Lourenço cria imagens que podem enriquecer a imaginação de um intérprete. Reporto-me ao grande pianista Alfred Cortot (1877-1962) que, em suas edições das obras de Chopin, Liszt e Schumann, analisa-as e aponta, entre outras orientações, exercícios técnicos referentes às composições que são eficazes para os pianistas, empreendendo sob outra égide o voo da imaginação, num amálgama absoluto para a compreensão do todo.

Ao escrever sobre J.S.Bach, prioritariamente, pelo fato de ser o seu eleito maior, outros magistrais compositores — como Mozart, Beethoven, Schubert, Schumann, Wagner — desfilam nas apreciações de Eduardo Lourenço. Apreende-se o seu pensamento que, em não penetrando na partitura, “interpreta-a” através da escuta. Quanto à música a partir das primeiras décadas do século XX, seus comentários se tornam orientados para o bom espanto, a inovação, a linguagem oculta vinda à luz, a esperança…

J.S.Bach (1685-1750) surge exponencialmente e, a cada audição nas salas de concerto, Eduardo Lourenço se posiciona em êxtase. Após ouvir a Paixão segundo São Mateus: “As lágrimas correm sem vergonha na minha face de homem rendido e humilde e o cântico imortal rasga a minha carne até lá onde eu gosto de imaginar que está o mais profundo que me sustenta, com o grito inexpiável do chamamento à única presença que desde a infância eu sei que importa à minha vida” (sine data). Em 1952 escreve: “Bach nunca soube que tinha gênio. O gênio ainda não existia então. Sabia-se, isso sim, um conhecedor do seu ofício, um amador dele. E tinha gênio. Depois do romantismo todos se sentiram geniais. E quase todos foram apenas talentosos. O gênio é uma simplicidade que se ignora, uma cara privilegiada a quem o vento de Deus caprichosamente tocou”. “Mas talvez a forma mais autêntica do gênio seja sê-lo sem o saber: Einstein aos 25 anos. Bach durante toda a vida. É então uma espécie de santidade da inteligência, como a santidade da pequena Santa Teresa é uma inteligência pura do coração” (1953). Do mesmo ano, tem-se: “A aventura musical de Bach lembra-me uma expressão infinita dos momentos infinitos da vida. Na fuga, o infinito procura o infinito sem o tocar. É preciso que ela se faça canto mortal como na Paixão”.  Do mesmo ano: “Que no mesmo Céu Bach dará concertos para Deus”.  Durante a Quaresma de 1957, considera: “Música pura, a de Bach? Absurdo. Música da pureza, da mais portentosa que o homem ousou confinar ao reino da música”. Em 1967, subjuga-se ao final da Paixão segundo São João: “Jamais Bach esteve tão próximo daquilo que poderíamos imaginar como a melancolia angelical como glose estática e maravilhosamente calcada em toda a tristeza que acomete o homem, a quem os cimos são presentes e sempre distantes”.

A respeito de Beethoven, Eduardo Lourenço o entende como um Titã, comparação que se perpetua entre estudiosos e amadores desde a morte do compositor. Escreve: “Enquanto escrevo sobre Kierkegaard estou ouvindo uma música de Beethoven. As vozes perseguem-se num crescendo poderoso, arrependem-se, volvem, sobem, insistem, o grito faz-se mais grito, alonga-se, repete-se, ultra-repete-se, grita mais ainda, como um grito que não procura Deus, mas a si mesmo se contempla e segue como grito. Um movimento humano semelhante ao final da nona sinfonia. A verdadeira religiosidade está ausente dele. O repouso do grito infinitamente humilde de Bach não aparece. Titanismo puro, mesmo na missa de Beethoven. A minha alma é amassada no pequeno ribeiro (Bach) mesmo nos dias tempestuosos”.  Datadas de 1954, as observações: “Em Beethoven, como em todos os grandes, a música é a forma sonora da melancolia astral do anjo caído, que é a humanidade toda. Mas, diferente da melancolia contemporânea, a sua música discursa ao mesmo sobre a torrente da melancolia que ele está em vias de ser. É uma melancolia racional, uma melancolia num mundo de formas que lutam com ele, lhe respondem, se opõem para o tornar inteligível, evidente”. De 1956, após ouvir a 5ª Sinfonia de Beethoven: “Como todos os gênios, escreve a música que um gênio pode escrever sobre a matéria herdada, escreve à sombra de Haydn e de Mozart. Mas com a Revolução, os reis e os príncipes destes últimos haviam perdido a coragem de fazer encomendas aos seus músicos. Beethoven encontrou-se numa encruzilhada em que a sociedade liberta o artista e ao mesmo tempo o abandona”.

São conhecidos os transtornos mentais de Schumann, que se acentuaram ao longo da existência. Schumann encarna o pleno romantismo. Após ouvir o Concerto para violoncelo e orquestra do compositor alemão, Eduardo Lourenço escreve: “O amor abre a larga porta deste oceano, a loucura o fechará e, com ela em suas mãos como um cristal, Schumann comporá sua face de Anjo da Melancolia a nenhum outro comparável” (1962). Ao ouvir o Carnaval de Schumann pelo rádio do carro: “Chopin? Quem, senão ele? Esta música nostálgica de si mesma, hesitante em começar, que ainda não é reafirmação como a de Wagner, mas só lancinante e narcisística fuga para trás, à procura do que não se encontra nem pode encontrar-se. Não! Carnaval, de Schumann”. (1975).

Clique para ouvir, de Robert Schumann, Carnaval op. 9, na interpretação da insigne pianista Guiomar Novaes (1894-1979):

https://www.youtube.com/watch?v=TDQEu2Fiy0o

Sobre Schubert: “Quem disse isto de quem?
‘deve existir uma profunda tristeza na alma do compositor’
‘sinto-me invadido a todo instante por uma incompreensível e perpétua melancolia’.
Schubert, compositor da profunda tristeza” (1975).

Eduardo Lourenço traça comparação entre Wagner e Mahler: “Entre Wagner e Mahler a diferença entre o círculo e a espiral. Todo o nosso destino se descentra com ele definitivamente e na sua órbita Wagner aparece como o último clássico, pois conhece ainda o rosto dos deuses que de novo recria. Mahler começa a grande oração da nossa ausência, que é ao mesmo tempo a de uma Busca como esta, que desenrola os seus desertos e as suas reversíveis miragens neste mar de música em alma sem orla imaginável. É o mar mesmo que se sabe mar e busca o abismo que o adormece, mas em vão. Nem o Amor nem a Morte wagnerianos são a sua água inquieta, mas eternamente parada. É uma música sem começo nem fim, sem orla nem centro, ficção da sua ficção, espelhos paralelos, reenviados êxtases sem figura, nós mesmos viajantes solitários de nenhum caminho capaz de nos conduzir onde desde sempre supusemos que éramos” (sine data). De interesse outras observações sobre Wagner, após ouvir a ópera Lohengrin em 1955: “Com Wagner a Música torna-se memória. O Leitmotiv* é a presença de um espírito que não consente nem pode perder-se num instante da sua busca sem se perder. Mas nessa marcha, nesse constante estar perto de si do espírito, ele se persegue a si mesmo tanto como persegue o Graal ou o Deus misterioso”.

*Leitmotiv: Trata-se de um motivo ou tema musical condutor que caracteriza cada personagem de uma ópera e que ressurge como tal ou modificado em suas várias aparições; no caso mencionado, nas óperas de Richard Wagner (nota: JEM).

Sobre a música contemporânea que Eduardo Lourenço ouve, máxime nas décadas de 1950-60, ele não está alheio àqueles compositores que menciona, como testemunham observações pontuais. Contudo, há comentários, resposta a articulista da Radiodiffusion et télévision française, que merecem reflexões: “Por isso me parece não defensável lisonjear o público do século XX, e cair num relativismo que já hoje não tem defesa possível, pedir quase desculpa ou espantar-se porque o nosso tempo regressa ao gregoriano. Ele jamais saiu, como o homem não sai do homem, mesmo quando dorme”.

“Tempo da Música – Música do Tempo” é livro a ser degustado. Os comentários de Eduardo Lourenço ultrapassam os de um ouvinte que gosta de ouvir, mas também do acontecimento social. Munido de uma extraordinária percepção, os textos de Eduardo Lourenço sobre música, mesmo sendo um “receptor passivo, embora de uma paradoxal passividade”, pois não foi músico nem teórico musical, são iluminados por uma das mentes mais lúcidas de Portugal. Recomendo vivamente a leitura do livro em apreço.

In this post I present some significant comments on musical appreciation expressed by the remarkable Portuguese philosopher Eduardo Lourenço.