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José Maria Pedrosa Cardoso

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Assim como uma pedra sólida não é abalada pelo vento,
do mesmo modo o sábio
não é abalado pela censura ou pelo elogio.

Dhammapada

Aos meu alunos,
esta síntese máxima,
do que disse e deixei de dizer.

José Maria Pedrosa Cardoso (dedicatória)

Reiteradas vezes abordei a problemática do livro de determinada área escrito por especialista ou por leigo. No primeiro caso, pode-se ter, em princípio, a garantia do conhecimento da matéria. Quem escreve, a ter sob controle tema determinado, geralmente o faz com competência. Impossível não se captar a intimidade do autor com o roteiro traçado. Em senso inverso, todo aquele que escreve sobre área da qual desconhece fundamentos básicos, o que o levaria a ser entendido como amador ou soi disant, em determinado momento da narrativa evidencia a falha estrutural, mesmo que o discurso possa ter certa sedução. Infelizmente, a literatura sobre música de concerto, erudita ou clássica no Brasil tem apresentado acentuados exemplos dessas visitações não competentes, que se contrapõem a outras, felizmente de músicos os musicólogos. Se os primeiros chegam a ter guarida junto a meios de comunicação não protegidos pela visão crítica autêntica, sob aspecto outro não servem de referência, pois conceitos ou são “extraídos” de tantas obras consagradas, ou derivam de considerações arbitrárias. E todo o mal está feito. Frise-se, autores da área musical, nem sempre escrevem livros confiáveis. Todavia, obras competentes sobre Música, invariavelmente são escritas por músicos ou musicólogos de valor. E todo mérito se faz presente.
Saudara em 2009 o excelente livro de Júlio Medaglia (vide Música Maestro – Do Canto Gregoriano ao Sintetizador, 18/04/09) em que o autor, com pleno conhecimento da História da Música, percorre prazerosamente os vários períodos, explicando, a partir da experiência pessoal junto a uma infinidade de partituras, os muitos meandros que levaram a arte dos sons à contemporaneidade. Igualmente é o caso de uma nova visita à História da Música, desta vez empreendida por professor e musicólogo da Universidade de Coimbra, José Maria Pedrosa Cardoso (História Breve da Música Ocidental. Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010). Poderíamos citar obras referenciais recentes de Pedrosa Cardoso, como O Canto da Paixão nos Séculos XVI e XVII: A Singularidade Portuguesa (Coimbra, IUC, 2006, 560 pgs.) e Cerimonial da Capela Real: Um Manual Litúrgico de D.Maria de Portugal (1538-1577) – Princesa de Parma (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda / Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, 157 pgs.) No livro em pauta, Pedrosa Cardoso, latinista impecável, ratifica a premissa do presente blog: “Não se pode entender e apreciar correctamente uma peça gregoriana sem conhecer o seu texto e reconhecer a funcionalidade da mesma dentro da liturgia cristã”. Afirmação que leva o leitor a confiar na competência, conditio sine qua non para a referência, pois estamos diante de um emérito conhecedor da música da cristandade, do gregoriano aos dias atuais. Já mencionara anteriormente que, no capítulo Nasce um Maestro, do livro de Medaglia, o polivalente músico dá uma verdadeira aula, mercê de acúmulos de rica experiência ao longo das décadas. Pedrosa Cardoso realiza trajetória paralela embasada no conhecimento, e faz o leitor viajar até a Renascença com leveza. Enfatiza a música desse período através dos três fatores básicos: o mecenas, o compositor e os executantes, e comenta a importância da Música Sacra e da Profana no Renascimento. Período rico na descoberta instrumental, que se expande às várias camadas sociais, e no emprego de sistemas de escrita musical que facilitariam a compreensão e divulgação da música.
Divide-se o livro em quatro capítulos e inúmeros sub-capítulos, tendo o som como epicentro: O Som Místico da Época Medieval, O Som Humano da Época Moderna, O Som Livre da Época Contemporânea e, o mais longo, O Som Plural da Época Atual. Nesses breves capítulos, Pedrosa Cardoso caminha com o leitor, ilustrando-o, sem ser enfático. As 159 páginas da História Breve da Música Ocidental tem o mérito da síntese. Não se trata de um resumo, mas de sementes fecundas plantadas, pois esses capítulos fornecem farto material – no caso, multum in minimo – destilado de maneira sequencial, sem quaisquer obliterações. Pequenos textos que podem propiciar ao leitor olhares outros, a visar ao aprofundamento. Se as tantas Histórias da Música, das caudalosas às mais concentradas, percorrem os períodos, muitas delas a evidenciar o conhecimento do autor ou autores, não poucas vezes tem-se o conteúdo doutoral. Tornam-se referência, mas dificilmente o leigo poderá compreender.
Se do barroco, passando-se pelo classicismo e pelo período romântico – que na realidade não tem interrupção do início do século XIX a meados do século XX, mas sim vertentes agregadoras ou diferenciadas, mas românticas sempre – às fronteiras do século XXI, naquilo que Pedrosa bem define em subcapítulo como “pluralismo cultural”, seria todavia a música do último cento que atrai um olhar ainda mais pormenorizado do autor. Dir-se-ia que as múltiplas tendências surgidas após a desagregação da tonalidade fascinam Pedrosa Cardoso, pelo multidirecionamento a envolver técnicas composicionais, convivência do erudito com o popular, tecnologia, sintetizador, o concerto democratizado a abrigar tendências divergentes e, paradoxalmente, em situações de congraçamento, sob um mesmo teto. E como fonte viva e até “independente”, a presença da música de raiz, o folclorismo que pulsa e que teria um olhar diferenciado sobre a sua autêntica manifestação, mais acentuadamente a partir da segunda metade do século XIX.
O fato de a música até o século XX ter sido extremamente ventilada em infindáveis compêndios propiciaria a Pedrosa Cardoso – provável suposição – um debruçamento maior em nomes da criação musical, sobretudo da segunda metade do século XX, não se alongando sobre determinadas figuras basilares dos séculos precedentes. Seria possível aventar a falta de recuo histórico para a avaliação de inúmeros compositores pormenorizados por Pedrosa Cardoso e pertencentes ao século XX. Entende, contudo, ter sido Debussy “o grande nome da charneira dos séculos XIX-XX, tal como Monteverdi foi para os séculos XVI-XVII e Beethoven para os séculos XVIII-XIX”. Agregaria o autor, no decurso da História, Schöenberg.
A facilidade com que os vários temas são tratados por Pedrosa Cardoso, assim como a sua capacidade em tornar segmentos complexos ou controvertidos da História da Música palatáveis ao estudante e ao leigo, já bastariam para a recomendação da obra. Uma pequena observação apenas, que deveria ser entendida como um desafio. Teria faltado no significativo livro, capítulo reservado à música em Portugal. Aguarda-se sempre a sua inserção definitiva nos repertórios internacionais. Nesse cenário global irreversível, em que a música se coloca como uma das mais importantes fontes do sentir e do pensar, urge o esforço coletivo nesse desiderato de divulgação mais ampla, interna e externamente, da música criada em terras lusíadas. E Pedrosa Cardoso tem-se mostrado, através de obras anteriores, um grande defensor da música portuguesa. Quem sabe não dedique a sua pena a uma próxima História Breve da Música em Portugal?
Instigante a frase final de História Breve da Música Ocidental: “Não se sabe como será a música do futuro. Talvez esta ignorância, humildemente assumida, explique o mistério do som, que mudará, ou não, à justa medida do ser humano”.

A few comments on the book “História Breve da Música Ocidental” (A Brief History of Western Music), written by José Maria Pedrosa, musicologist and Professor at the University of Coimbra. The book gives an overview of different stylistic periods in music history from the Medieval days to the present, with a particular focus on the 20th century and the multiple tendencies that emerged as music progressed towards atonalism. Pedrosa Cardoso has a gift to express the most using the least and his short chapters are seeds inviting readers – music students and the general reader as well – to investigate further the subjects covered by the book.

Mario Benedetti

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Estão em mim as estações
como se fossem uma só as quatro
sempre estão em mim
são quatro faixas de um abismo
da aurora até o ocaso…

Mario Benedetti

O espírito de síntese seria talvez uma das maiores dificuldades de um escritor. Romances caudalosos ou não, mesmo que granjeiem reputação, tantas vezes se perdem nos meandros das histórias e dos personagens. Poder-se-ia afirmar que, seja qual for a dimensão de um texto, ter um norte como meta torna-se relevante. Entendido sob esse prisma, a literatura novelesca, como exemplo, que frequenta os televisores em tantos horários, perde um sentido básico, pois estaria a depender das marés representadas pela opinião pública. O autor do texto estaria sempre sob a tensão que o alterar enredo provoca.
Recebi de minha dileta amiga Jenny Aisenberg o livro Correio do Tempo, de Mario Benedetti (Rio de Janeiro, Alfaguara, 2007. Tradução Rubia Prates Goldoni), acompanhado de referências elogiosas da também colega acadêmica. Esperei o meu tempo e Correio do Tempo acompanhou-me em minha recente viagem. À medida em que os contos curtos e as missivas ficcionais vão sendo percorridos, um tipo de sedução contagia o leitor.
Mario Benedetti (1920-2009), nascido no Uruguai, é um dos grandes escritores latino americanos. De origem simples, desempenhou várias atividades antes de se tornar jornalista. Suas convicções o levariam ao exílio em 1973. Permaneceria durante doze anos “migrando” para Argentina, Peru, Cuba e Espanha. A Trégua é seu romance mais ventilado no vasto repertório de suas obras.
Transitar pela livro de Benedetti é percorrer o universo do conceitual simples e de conteúdo. Não tergiversa ao abordar o cotidiano. Amor, desalento, sarcasmo, solidão, humor em várias roupagens, velhice inexorável, contos e cartas ficcionais vislumbram a rotina, a lembrança ou o passado que traz amarguras, mormente quando a temática é o regime político ditatorial que, à medida que lança tentáculos, mais cruento se torna. A preponderar, possivelmente, uma explícita nostalgia que passeia pelo livro em muitas tonalidades. Se o humor emerge, não se descarte uma dose desse nostálgico sentir. Um passado pleno de incontáveis experiências possibilita ao autor, um agudíssimo observador, metamorfoseá-las ao sabor das circunstâncias. Não seria Benedetti a recordar ficcionalmente cenas vividas em muitas narrativas de Correio do Tempo?
O escritor e poeta tem o dom da metáfora decodificada. Como flash, ela surge e ao leitor captar instigantes mensagens. Pormenoriza partidas e chegadas. Dir-se-ia que, aos que ficam, restaria um conformismo surdo; aos que partem, a incógnita, em situações marcadas por resultados, ideológicos ou não.
Mencionar algumas das imagens criadas pelo literato uruguaio torna-se necessário, pois frases metafóricas ou associativas corroboram a qualidade insofismável do autor nesses breves contos e cartas. Os anos de repressão permanecem em seu pensar: “Ou você não sabe que a democracia não chegou aos cemitérios? Só os vencedores têm túmulos”. Àquele que viu desaparecer nos difíceis tempos a amiga querida “Causava-lhe amargura e assombro ver que as dele eram mãos que não tocavam, não apalpavam, não acariciavam. Mãos solitárias, abandonadas, viúvas”. Outro personagem deixa mensagem gravada ao seu algoz do passado no breve Secretária Eletrônica: “Não sei se algum outro de teus cadáveres vai aparecer, como eu agora, nesta secretária eletrônica. E se não sei é porque aqui não comunicamos. Somos uma congregação de solitários. Sabia que a morte é uma interminável planície cinzenta? Garanto que não voltarei a te incomodar. Isso mesmo, a morte é uma interminável planície cinzenta. Uma planície cinzenta. Sem aleluias. Cinzenta”. Em Bolsa de viagens curtas, mais desalento da parte de quem viveu o período da repressão: “… porque já não mais conseguia viver com os antídotos do medo, e sentia que aos poucos começava a odiar minhas esquinas prediletas e as árvores encurvadas, e já não tinha tempo nem vontade de me refugiar no caramanchão do bairro das Flores, e os amigos de sempre começaram a ser do nunca, e havia mais cadáveres nos lixões que nas funerárias, então abri a bolsa das viagens curtas (embora soubesse que essa ia ser longa) e comecei a enfiar nela lembranças ao acaso…”. Foto antiga leva personagem a recordar grupo que fazia parte de sua vida: “… outros dois se tornaram, com o tempo, finos, elegantes delatores, e hoje gozam do respeito da amnésia pública. O último sou eu, mas também sou outro, quase não me reconheço, talvez porque se me enfrento ao espelho não estou em sépia”. Primavera dos outros traz à superfície o grito dos que não mais creem, o hodierno sem esperanças, mas em processo de progressiva deterioração: “Hoje quando você enfrentar o noticiário na televisão e vir mais negrinhos esqueléticos do Sudão, jangadas com marroquinos naufragando em Gibraltar, índios do Amazonas empurrados para o próprio fim, cursos básicos de violência juvenil, além da desenfreada e programada destruição da natureza, e depois, no mesmo canal ou no seguinte, a arrogância dos governantes, demo ou autocráticos, dá quase na mesma, exibindo sem pudor sua fome de poder; sua indiferença pelo próximo, singular ou plural, e também os grandes salões da Bolsa, com a histeria milionária dos apostadores; quando vir tudo isso, talvez entenda por que não suporto mais o mundo”. Em Não há sombra no espelho, a instigante frase “A sombra é dos corpos, não das imagens”.
Seria engano acreditar que apenas plúmbeos quadros percorrem Correio do Tempo. Impossível para Mario Benedetti não resgatá-los, pois fizeram parte de seu viver. Quando o humor ou o irônico aflora, uma fina camada de sarcasmo pode ser observada. O autor sabe dosar suas emoções. Jamais chega ao humor banal ou insólito, mas sim àquele que leva à reflexão. Perpassa esse despojado humor em contos como Jacinto, Cambalache, Conversa, O dezenove, Assalto à noite. Nostálgico, O Velho Tupi, café tradicional de Montevidéu, fez lembrar O Ponto Chic (vide Frederico Branco (1927-2001) – A revisitação das imagens perdidas, 09/03/07).
Em O inverno próprio, é o professor aos oitenta anos que, “Da sua cadeira de balanço, não consegue ler as letras de cada lombada, mas reconhece a maioria dos livros pela cor, pelo formato, pela encadernação ou pelo logotipo, ou então (e nisso é especialista) por suas marcas de velhice.” Precedentemente citei o autor português António Menéres: “Sempre que posso olho os meus livros, quer as lombadas simplesmente cartonadas, a sua cor, os títulos das obras; mesmo sem os abrir adivinho o seu conteúdo, e quando os folheio, reconheço as leituras anteriores, muitas das quais estão sublinhadas, justamente para me facilitar outros e novos convívios” (vide “Crônicas contra o Esquecimento” – A Profissão e o Olhar Diferenciado, 20/07/07).
Correio do Tempo seduz. A noção desse tempo, século recém findo, pode ser apreendida em espírito de síntese em seu poema O Acabou-se, que conclui a coletânea de contos e cartas reunidos:

“Eu trago os pés descalços para entrar no século
E o coração despido e a sorte sem asas
Vamos não estreá-lo com quimeras exangues
E sim com a dor da alegria”

The Uruguayan writer Mario Benedetti (1920-2009) is one of the greatest names of the Latin American literature. I’ve just read his book Correio do Tempo (El Buzón del Tiempo in the original), a collection of short stories and poems about love, death, distress, solitude, growing old. The author lived his life fully an was a keen observer, conveying the impression that part of his own experiences have been turned into fiction. A very interesting book, inviting readers to ponder on the theme of the passage of time.

A Música para Junqueiro

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Porém, a arte só beija quem por ela almeja ser beijado.
A arte exige uma liturgia, um ritual,
que se prende com a fonte da dádiva e a aproximação ao amor.
A arte atravessa a nossa mente com pés de pomba,
à mínima tempestade torna-se invisível, substituída pelos apelos do cotidiano.

Miguel Real

Estava a organizar livros que se acumularam. Reconheci a lombada de volume caro a meu pai: A Velhice do Padre Eterno, de Guerra Junqueiro (Porto, Lello & Irmão, 1926). Acostumamo-nos a ouvir, durante décadas, nosso progenitor recitar com empolgação o longo poema O Melro, integralmente e sem vacilos. Abri e folheei. Logo na abertura, chamou-me a atenção o extenso prefácio à segunda edição (fragmento inédito), escrito pelo autor em 1887. Incisivamente, Guerra Junqueiro (1850-1923), polêmico escritor e poeta português, posiciona-se em relação à sua autonomia: “Nunca discuti, nem jamais discutirei com quem quer que seja, o valor literário duma obra minha. / Um livro atirado ao público equivale a um filho atirado à roda. Entrego-o ao destino, abandono-o à sorte. Que seja feliz é o que eu lhe desejo; mas, se o não for, também não verterei uma lágrima. / Não faço versos por vaidade literária. Faço-os pela mesma razão por que o pinheiro faz a resina, a pereira, pêras e a macieira, maçãs: é uma simples fatalidade orgânica. Os meus livros imprimo-os para o público, mas escrevo-os para mim”. E em outro segmento, a dimensionar a qualidade de uma obra: “Sim, o crítico dos críticos é só ele – o tempo. Infalível e insubornável. As grandes obras são como as grandes montanhas. De longe vêem-se melhor. E as obras secundárias, essas quanto maior for sendo a distância, mais imperceptíveis se irão tornando”. O tempo se mostraria o grande aliado de Guerra Junqueiro, a perenizar sua obra.
Compositores buscaram, ao longo dos séculos, na poesia popular ou nos poemas entendidos como cultos ou eruditos, fonte indispensável à existência das canções ou lieds. Há poetas e poetas. Alguns, apesar do imenso valor, não têm em seus versos a “musicalidade” essencial. Intuitivamente ou não, os músicos, ao buscarem poemas para as suas composições, tendem à essa volatização que se expande de uma poesia. Nem sempre o poeta que perdura tem versos musicais, mas tantos outros, que a história ajudou a esquecer, tiveram poemas magistralmente musicados por compositores do período romântico, como Franz Schubert, Robert Schumann… Se Claude Debussy teve o dom de captar a essência essencial de Stéphane Mallarmé, Paul Verlaine e Charles Baudelaire para as suas mélodies, não deixou contudo, por vezes, de frequentar poetas menores. Em L’harmonie du soir, um dos poemas de Les Fleurs du Mal de Baudelaire, não somente criou uma de suas mais expressivas mélodies para canto e piano, como do verso Les sons et les parfums tournent dans l’air du soir, um dos mais sensíveis Prelúdios para piano solo. Sob égide outra, o cancioneiro popular, “uma bíblia em música”, segundo Guerra Junqueiro, deve sua existência à plasticidade do verso geralmente anônimo do povo, que saberá, como fluxo inexorável, adequá-lo a uma melodia. Há todo um aspecto “mágico” nessa interação ancestral.
Quando do recital em Braga no início de Junho, lá esteve meu amigo António Menéres. Dele recebi A Música de Junqueiro (Porto. Escola das Artes, Universidade Católica Portuguesa. Coordenação: Henrique Manuel S. Pereira, 2009). Li-o com interesse. Trata-se de obra fundamental para o conhecimento não apenas de uma característica poético-musical do grande poeta e escritor, mas também para a compreensão de todo um processo que leva o compositor a buscar poemas que emanem “sonoridades”. Tão mais sonoros são os versos junqueirinos quão mais entendemos que, ao longo de um século, apesar de toda a trajetória da escrita composicional, os poemas de Junqueiro jamais deixaram de interessar aos músicos. Torna-se evidente que a visitação constante, na maior parte constituída de compositores expressivos, é inequívoca presença dessa imanência musical nos poemas de Guerra Junqueiro.
A coletânea de textos escrita por autores competentes, contida em A Música de Junqueiro, está a demonstrar a insistência do autor de Pátria em precisar a importância da música frente à poesia. Já não seria a evidência de que a frase musical esteve sempre a integrar o seu de profundis? As inúmeras incursões, opiniões, “certezas” até de Guerra Junqueiro em relação à música são inquestionáveis.

Página manuscrita de Guerra Junqueiro. Extraído de A Música de Junqueiro, pág. 34. Clique para ampliar.

A cuidadosa seleção de referências à música, realizada pelos responsáveis de A Música de Junqueiro, vem demonstrar uma atração à temática por parte do poeta e escritor. No artigo Música de e Música para Junqueiro, Henrique Manuel S. Pereira seleciona criteriosamente segmentos do escritor e poeta em que a arte dos sons está presente reverencialmente. No texto, S.Pereira penetra na hermenêutica, a dar sentido à música interior de Guerra Junqueiro expressa na prosa em períodos vários de sua existência. Junqueiro realiza uma glorificação ao cantar: “ser o cantador, ser a voz da água e do vento, da rocha e da floresta, dos homens e dos monstros, dos infusórios e dos sóis, das nebulosas e dos átomos! Cantar o riso, o beijo, o olhar, a dor, a lágrima!”. E prossegue nessa louvação emocional às formas, matérias, ideias, paixões. Faz o amálgama das artes ao afirmar que “a luz é música. O prisma é um instrumento de música” e a luz seria uma orquestra, “um hino de cores”. O ter sido colecionador respeitado de obras de arte não seria a ratificação de uma vocação à integração das artes? Situação bem próxima não teria ocorrido com Alexander Scriabine (1872-1915), o notável compositor russo, que buscava a identidade das artes em Prometeu, o Poema do Fogo e no Mystère (inacabado) que deveria ser a união de todas em direção ao Cosmos?
Guerra Junqueiro, na comparação com o verso, afirmaria que “no canto há (ainda) mais amor entre as palavras, socializam mais, fraternizam mais”. E prossegue: “o verbo cantar é um dos filhos radiantes do verbo supremo, do verbo eterno, do verbo divino e criador, que é o verbo amar”. A assertiva do poeta viria de um tríplice entendimento: o cantar a prevalecer sobre o verso, e este, por sua vez, sendo “mais belo do que a prosa”. Entendimento que o faz captar a condução de uma linha poética expressa nas palavras: “o verso errado é um delito”. Tem o poeta o dom da associação metafórica: “cantar é por os sons em harmonia, torná-los amigos, parentes próximos, irmãos devotados e inseparáveis. Cantar é moralizar o som”. Ao preferenciar órgão e violino, pelo fato de que “as notas são contínuas, fundem-se, convivem mais, porque cada uma delas sacrifica, por amor à outra, uma parte do seu individualismo, o seu limite”, ao contrário do piano onde o som, por força do mecanismo do instrumento, evidenciaria, ao ver de Junqueiro a “contiguidade, não continuidade”, não demonstraria uma percepção, intuitiva, dos meandros sonoro-musicais e da plasticidade ininterrupta? A erudição quanto ao repertório musical sacralizado o levaria, através da escuta, à dedução: “A música é poesia incorpórea. Há sonatas de Beethoven que se me afiguram ser as melódicas almas imortais de grandes epopéias que morreram…”. O texto de Henrique Manuel S.Pereira tem, entre outras virtudes, a de ser ponte importante a ser transposta, a fim de que entendamos o porquê dessa frase musical no verso de Guerra Junqueiro, e a compreensão consequente por parte de tantos compositores de méritos que se debruçaram sobre sua poesia.
Se a canção predomina em sua básica formatação canto e piano, a poesia musical de Junqueiro serviria, sob outra égide, para outros entendimentos quanto à destinação. Em texto de síntese e bem elaborado, Fernado C. Lapa apresenta essas várias configurações nas quais os versos do poeta estimulariam a ideia do compositor. Quinteto de sopros, coro de câmara e quarteto de cordas, coro a capella e os muitos endereçamentos não eruditos visitados por músicos de várias tendências populares ou pop. Salienta o compositor F.C. Lapa, ao caracterizar as vertentes musicais erudita e popular que apreenderam o conteúdo inerente na poesia de Guerra Junqueiro: “podemos afirmar que nelas se reflectem duas das atitudes mais contrastadas na abordagem da poesia de Junqueiro: a atitude naturalista (a vida no campo, a singeleza da natureza, a bondade universal…) e uma atitude mais construtivista (filosófica, dramática, por vezes irónica)”. Nomes expressivos inspiraram-se em seus versos. Mencionaríamos, à guisa de exemplificação, compositores como Fernando Lopes-Graça, Cláudio Carneiro, Tomás Borba, António Fragoso, Luís de Freitas Branco, Óscar da Silva, José Viana da Mota e o brasileiro Barrozo Netto. Seria do vocalista da banda Houdini Blues uma consideração pertinente à poesia e à letra da canção. Faz distinção: “A primeira dificilmente se musica com sucesso por já ter uma melodia e uma cadência inerentes, a segunda dificilmente sobrevive incólume à ausência da música”. Algumas das poesias de Guerra Junqueiro, como A Moleirinha, Canção Perdida, Morena, Regresso ao Lar, tiveram várias leituras realizadas por compositores de tendências distintas.
A edição esmerada de A Música de Junqueiro apresenta artigos instigantes, todos os poemas que foram a fonte essencial para a criação sonora, entrevistas com intérpretes, a relação cuidadosa de todos os compositores e mais dois CDs, contendo o resultado musical da ampla pesquisa. Modelo a ser seguido.

During my recent visit to Braga I was given the book “A Música de Junqueiro” (The Music of Junqueiro). Guerra Junqueiro (1850-1923) was one of the greatest poetry and prose writers of the 19th century in Portugal. The book unveils Junqueiro’s thoughts about music, examines the musicality of his poetry and the works of composers who have drawn inspiration from his writings thanks to the musical effects of the language he used. It presents all of Junqueiro’s poems that were set to music, stimulating articles, interviews with performers, lists the composers who worked on his poetry and comes with two CDs with works by names such as Fernando Lopes-Graça, Cláudio Carneiro, Tomás Borba, António Fragoso, Luís de Freitas Branco, Óscar da Silva, José Viana da Mota and the Brazilian Barroso Netto. An interesting reading for anyone who wants to go deeper into the art of this great writer and into the creative process of composers when their inspiration comes from poetic works.