Navegando Posts em Literatura

Edmund Hillary (1919-2008)

Everest visto do Kala Patthar no Nepal - Foto: Pavel Novak (Wikipedia)

Dans l’histoire récente, sinon contemporaine,
il est des hommes qui se sont illustrés dans des actions d’éclat,
et dont la vie de héros est devenu référence pour les générations ultérieures.

André R. Missenard

I think the whole attitude towards climbing Mount Everest
has become rather horrifying. The people just want to get to the top. They don’t give a damn for anybody else who may be in distress and it doesn’t impress me at all that they leave someone lying under a rock to die.

Edmund Hillary

Em artigo exemplar, Death and Mid-life Crisis (1965), o psicanalista Elliot Jaques (1917-2003) colocaria posição a respeito de mutações em fases precisas da existência. Denominaria juventude da idade adulta a crise que se estende dos 30 aos 40 anos e maturidade da idade adulta uma outra, por volta dos 65. Seria no período da primeira que determinados impulsos criativos e de arrojos têm lugar. Afirma E. Jaques: “A crise exprime-se de três maneiras diferentes: a carreira criativa pode pura e simplesmente encerrar-se, através do esgotamento do trabalho que leva à criação, ou então através da morte; a capacidade de criar pode aparecer e exprimir-se pela primeira vez; enfim, uma mudança decisiva na qualidade e no conteúdo da criatividade pode produzir-se”. Diferentemente, na maturidade da idade adulta o futuro apresenta-se mais limitado, mas o homem está cônscio de seus acúmulos e de fases já vencidas, podendo haver “a alegria da criatividade madura e a obra, feita sob a égide do pleno conhecimento da morte subjacente, apresenta-se pois resignada, mas não vencida”.
Ao considerar-se os heróis do Himalaia, em faixas etárias que se estendem dos vinte e poucos anos aos quarenta, todos aventureiros intrépidos que, a partir do início do século XX, sonharam atingir os mais altos cumes da Terra, verifica-se que se está diante de seres privilegiados que assumiram riscos, quase sempre sobre-humanos, e a morte no ato supremo do heroísmo, ou natural após a concretização, apenas referendou obituários, mas não a ação perpetrada. Estão distantes dos atletas que preferencialmente atingem a plenitude física bem mais precocemente. Entre os alpinistas, o apogeu físico-mental dar-se-á nessa faixa demarcada por Elliot Jaques.
Impressiona a relação de montanhistas de profundo conhecimento que, em determinado ponto da carreira, tentaram o grande desafio, chegar ao topo do Everest – nome dado em 1865, a homenagear o topógrafo inglês George Everest – ou Chomolungma para os tibetanos. Da primeira medição, feita pelo topógrafo bengali Radhanath Sikhdar, à proeza da conquista do homem em 1953, decorreriam 101 anos, e em muitas expedições anteriores vidas se perderam e frustrações foram acumuladas.
A menção maior a preceder à façanha de 1953 deve-se aos ingleses George Mallory (1886-1924) e Andrew Irvine (1902-1924), que teriam chegado bem próximos do cume, mas desapareceram em circunstâncias nebulosas, tornando-se legendários. Há quem acredite que chegaram, mas o fato é que, tendo sido vistos pela última vez aos 8 de Junho de 1924, a poucas centenas de metros do ponto maior, foram aniquilados pela montanha. Irvine nunca foi encontrado. Quanto a Mallory, uma expedição em 1999 achou seu corpo e pertences (Hemmleb, Jochen; Johnson, Larry A.; Simonson, Eric R. Fantasmas do Everest – Em busca de Mallory e Irvine. São Paulo, Companhia das Letras, 2000, 224 págs.). Não o resgataram, mas sim cobriram o corpo com pedras em homenagem emocionada. Tentativas de outras expedições visando à conquista do teto do mundo não obtiveram êxito. Mencione-se o extraordinário relato do francês Maurice Herzog. Ele e Louis Lachenal tornaram-se os primeiros alpinistas a conseguir atingir um topo acima dos 8.000m aos 3 de Junho de 1951, o Annapurna (8.075m), na cadeia himalaia. O feito custou a Herzog a posterior mutilação de dedos necrosados pelo arrojo. (Herzog, Maurice. Annapurna. São Paulo, Companhia das Letras, 2001, 375 págs.).

Capa da Revista National Geography de Maio 2003, edição brasileira. Foto: Yousuf Karsh, 1960

Edmund Hillary, nascido na Nova Zelândia e falecido em Auckland no último dia 11 de Janeiro, e o sherpa Tenzing Norgay (1914-1986) foram os primeiros a escalar o Everest (8.848m) no dia 29 de Maio de 1953 e esse aventura até hoje é referencial. O verdadeiro herói tem o sentido da humildade e Hillary entendia o sacrifício daqueles que o precederam perdendo a vida, ou de outros que tiveram de regressar com o sentimento da frustração. Não revelaria quem primeiro pisou o topo do mundo, dividindo a primazia com seu parceiro. Sabia que sem Tenzing Norgay, experiente homem das montanhas, que já estivera acima dos 8.000m, nada aconteceria. Após o feito, Hillary dedicou-se durante décadas a melhorar as condições de vida do povo sherpa do Nepal, fundando o Himalayan Trust, que fomentaria escolas, hospitais e o bem social. Durante esse hercúleo projeto, perdeu a mulher Louise e a filha Belinda em acidente aéreo perto de Kathmandu. Reverenciado por todos, Hillary entendeu que sua missão, finda a memorável escalada, deveria preferenciar fins humanitários e teve apoio merecido e larga divulgação. Em 2003, comemorando o cinqüentenário da façanha, seu filho Peter Hillary e Jamling Tenzig Norgay, filho de seu parceiro em 1953, realizaram a escalada. Ao chegarem ao topo, em ligação telefônica emocionada, Peter revelou ao seu pai, em Auckland, a admiração pelo feito paterno em condições muitíssimo menos seguras e assistidas, e as câmaras fixaram esses instantes históricos do diálogo em pontos tão distantes.
Edmund Hillary abominaria a subida indiscriminada ao Everest. Legiões cada vez maiores estão a subir, formando por vezes filas extensas para se chegar ao topo. Expedições custosas vindas de muitos lugares – Estados Unidos, Europa, Coréia, Japão, Rússia, China e tantos outros países – levam pessoas que pagam muito, entre estes até portadores de deficiências, ansiosos por ter seus nomes em livros de recordes. Poluem os caminhos, as trilhas, a deixarem quantidade de lixo e de cadáveres. A resposta da montanha, outrora imaculada, é contudo fatalidade para tantos.
O ano de 1996 seria o mais trágico para aqueles que tentaram a escalada. Foram 19 mortes, sendo que oito apenas no dia 10 de Maio. A narrativa pungente de Jon Krakauer em torno dessa data ficaria notabilizada (Krakauer, Jon. No Ar Rarefeito. São Paulo, Schwarcz, 2002, 269 págs.).

Vento soprando ao contrario no Everest, visto do BC - Crédito: Rodrigo Raineri. Visite www.everest2006.com.br

Em termos brasileiros, há méritos para alguns alpinistas profissionais. Entre estes, Waldemar Niclevicz, que subiu ao Everest em 1995 e 2005 e chegou em 2000 igualmente ao topo da segunda maior montanha do mundo, o K2 (8.611m), na cordilheira de Karakorum, também no Himalaia (Niclevicz, Waldemar. Um sonho chamado K2 – A Conquista Brasileira da Montanha da Morte. Rio de Janeiro, Record, 2007, 373 págs.) Um outro notável alpinista, Vitor Negrete (1967-2006), em companhia do amigo Rodrigo Raineri, em Maio de 2006 buscou atingir o topo do Everest. Negrete se tornou o primeiro brasileiro a escalar o cume sem auxílio de oxigênio. Infelizmente, morreria na descida, no acampamento 3, a 8.300m de altitude, no Tibet. Menção a Thomaz Brandolin, que comandou a primeira expedição brasileira ao Everest em 1991, mas sem sucesso. Seu relato é dramático (Brandolin, Thomaz. Everest: Viagem à Montanha Abençoada. Porto Alegre, L&PM, 1993, 191 págs.).
Para todos os verdadeiros heróis, alpinistas competentes e vocacionados, que atingiram ou não os 8.848m do Chomolungma, houve a alegria interior, ou a frustração tantas vezes sem compensações, ou ainda a morte nas alturas. Todavia, a centelha criativa que os moveu à ação pode ter sido a mesma. Ficaria reservado a Sir Edmund Hillary e a Tenzing Norgay o louro do ineditismo da conquista do Everest, glória que os dois heróis souberam suportar com a maior humildade. A morte recente de Edmund Hillary nos leva a refletir sobre a dimensão de um dos últimos titãs ainda a levar mensagens de esperança e de alerta ao nosso planeta em perigo.

Since measurements confirmed Mount Everest as the highest peak on earth, it is impressive the number of climbers – experienced or not – who tried to reach its summit. Among the early expeditions, that of George Mallory and Andrew Irvine in 1924 became a legend when the two disappeared after being spotted for the last time a few hundred meters from the summit (Mallory’s body was found 75 years later, in 1999). Edmund Hillary and Tenzing Norgay are the first climbers known to have reached the top of the world on 29 May 1953, receiving international acclaim for their accomplishment. Among Brazilian mountaineers, Waldemar Niclevicz, Vitor Negrette, Rodrigo Raineri and Thomaz Brandolin are worth mentioning. Niclevicz made the summit twice (1995 and 2005). Negrette was the first Brazilian to reach the top without oxygen in 2006, but died during the descent. Brandolin led the first Brazilian expedition to the Everest in 1991. The attempt failed, but he published afterwards a dramatic account of his experience. Today hundreds of novice climbers with paid guides flock to Everest every year competing for a place in the limelight. Most want to get to the top for sheer exhibitionism, even leaving their peers in distress to die without attempting a rescue. Sir Edmund Hillary, who passed away last January, was critical of the modern irresponsible attitude towards climbing the Everest, something he did not view as mountaineering. A worldwide hero, he remained a modest man, devoting much of his life to promote the welfare of people in the Himalayas.

10.000 Anos de Descobertas

Sempre que posso olho os meus livros, quer as lombadas
simplesmente cartonadas, a sua cor, os títulos das obras;
mesmo sem os abrir adivinho o seu conteúdo e,
quando os folheio, reconheço as leituras anteriores,
muitas das quais estão sublinhadas, justamente para me
facilitar outros e novos convívios.

António Menéres

Ultrapassar a barreira dos 10.000 acessos ao blog é motivo de muita alegria para o autor, que busca apenas a transmissão das idéias que estão sempre a surgir em diversas categorias: regressos ao passado ou observação do presente, leituras recentes ou cumplicidades acumuladas desde a infância, lembranças de tantos que se foram e nos ajudaram a caminhar, viagens retidas pelo olhar curioso e a música. “Nós estamos seguros um do outro” d’après a meditação final do personagem Jean-Christophe, de Romain Rolland. Veio-me à mente esse número por inteiro, mercê dos acessos de generosos leitores, fazendo-me lembrar de outra dezena de milhar de minha infância, aos onze anos, de 10.000 Anos de Descobertas, de Bruno Kaiser (São Paulo, Melhoramentos, 1949, 267 págs.).

As Primeiras Universidades - Xilogravura, Paul Boesch

Foram meus pais que me ofereceram o belo livro, contendo, antes de cada pequeno segmento da História da Humanidade, uma das 266 xilogravuras de Paul Boesch que compõem a obra. O fascínio foi imediato. Dos dois capítulos iniciais, Na Idade da Pedra Lascada : Regresso da Caça ao Urso e Os habitantes da Terra Fazem Fogo e Cozinham, aos derradeiros, A Exploração dos Pólos da Terra e Seda Artificial e Celofane, o autor percorre os passos do Homem e o encadeamento dos fatos torna-se harmonioso. Para o menino que eu fui, começava o encantamento, que é o longo percurso em direção à parcela, mínima que seja, do conhecimento. As duras conquistas da Humanidade, seu esforço e sua fraqueza, o longo pensar que leva à invenção, e o arrojo a motivar a vontade de descobrir, tudo lá estava, a fazer o miúdo sonhar. Lembro-me de que determinados capítulos – nenhum ultrapassa uma página – provocavam curiosidade imensa. Foi 10.000 Anos… verdadeira enciclopédia resumida para os jovens, introdução a duas outras, igualmente a eles destinadas, mas bem mais amplas, como O Mundo Pitoresco (9 volumes) e o Thesouro da Juventude (18 volumes), lidos nos anos sucessivos.

Cânticos Sacros - Xilogravura, Paul Boesch

A obra de Bruno Kaiser, a levantar a cada capítulo uma pergunta de incontáveis outras que a vida se encarregaria de acumular, tinha essa magia de propor a reflexão sobre o caminho do Homem, sua indomável vontade de descobrir novos horizontes, a fim da conquista ou da realização de ideais, sua criatividade ilimitada, e do simples ao mais complexo, no olhar do autor, todas as criações do ser humano recebem a mesma atenção: arado, roda, bússola chinesa, torno do oleiro, hieróglifos, papiro, vidro, do odre ao barril, sabão, papel, relógio de rodas, imprensa, bicicleta, motocicleta, automóvel, cinema, dirigível, planador, aeroplano, telégrafo sem fio e tantos outros inventos. Na medicina, encaminha a curiosidade científica que chega ao radium, às vacinas. Na área musical, Kaiser insere pouco a pouco, a partir dos gregos, capítulos especiais. Sobre a música na Idade Média, conta sucintamente a história dos instrumentos, aborda o canto sacro-profano, posteriormente pormenoriza-se nos violinos do século XVIII, focaliza J.S.Bach e o prodígio que foi W.A. Mozart. Está tudo explicado, após dezenas de anos de pesquisa amorosa do autor. As xilogravuras de Paul Boesch têm a virtude da simplicidade e da pureza, hoje qualidades difíceis de serem encontradas, a servirem como abertura aos textos e aos vôos da imaginação daquele menino que conservou esse livro que lhe foi tão importante. No instante do insigth referente aos números, compreende-se que a geração a que pertenço tinha referências precisas. O impacto de tantos avanços, que hoje diariamente se apresentam à juventude, era-nos desconhecido. A cultura do livros permanecia sem interferências, absolutamente única quando uma obra era iniciada. O interesse levava a outras leituras e assim sucessivamente. E a imanência seria decorrente. Hoje, jovens estão ajustados ao seu tempo e à proliferação de informações, mas o convívio com as novas gerações, se diferente em tantos aspectos, é sempre muito salutar e ajuda-nos a crescer.

Da História dos Antigos Instrumentos Musicais - Xilogravura, Paul Boesch

Divagações são necessárias e a associação de números idênticos é um estímulo a mais para que aquilo que ficou na memória aflore, o cotidiano revele a perene curiosidade e o caminho que está a ser percorrido continue a trazer maravilhamento.
Foram muitos os questionamentos até os 10.000 acessos. Se as temáticas são diferenciadas, é porque a observação de tantas coisas que me envolvem suscita reflexões. Se a música, ao longo desses dez meses, esteve presente em muitos posts, afeições outras igualmente levam-me a integrá-las àquela vontade de comunicar aos prezados leitores esses textos semanais.
Meu agradecimentos à Editora Melhoramentos, que gentilmente autorizou a publicação on line das xilogravuras de Paul Boesch.

My blog reached 10.000 accesses since March 2007, making me remind of a book I read when I was a child: 10.000 Anos de Descobertas (10.000 Years of Discoveries), by the German author Bruno Kaiser, a concise encyclopedia for young readers with information on all fields of human inventions. I still keep it as one of the treasures of my childhood.

Reflexão, Arte, Transcendência, Realidade

A reencarnação de Khyentsé Rinpotché. Foto Matthieu Ricard

Si l’on est parfaitement conscient
de la valeur de l’existence humaine,
la gaspiller dans la distraction
et la porsuite des vaines ambitions
est alors le comble de la confusion.

Dilgo Khyentsé Rinpotché

O livro Himalaya Bouddhiste (Paris, La Martinière, www.lamartiniere.fr 2002, 424 págs., 285 mm. de largura x 365 mm. de altura, 220 fotos coloridas) é uma obra de arte. Olivier Föllmi, Matthieu Ricard e Danielle Föllmi, fotógrafos e pensadores, reuniram textos competentes, escritos por vinte e um especialistas de seis nacionalidades distintas e pertencentes a diversas áreas: religião, arte, política, meio ambiente, medicina tibetana, e outras mais. Há alternância entre artigos de uma área específica e conjunto de fotos que ocupam, geralmente, duas páginas, mas que estão referenciadas no final do livro, em tamanho diminuto, a explicitar o conteúdo. Os textos, aliás, estão sempre emoldurados com arabescos interpretados a partir de pinturas da região do Himalaia. O tamanho e o peso físico da obra fizeram-me lê-la, durante meses, no período que precede o sono.
Himalaya Bouddhiste estrutura-se sob a égide do ciclo das existências: nascimento, vida, morte, renascimento. Em cada compartimento, os textos reunidos formam um todo homogêneo, mesmo que variantes encaminhem os conteúdos para direções “aparentemente” distintas. Matthieu Ricard, conhecedor da região desde 1967, tornando-se monge budista e tradutor do dalai-lama, é o autor de grande parte dos ensaios que compõem a obra, e textos do casal Föllmi têm a apreensão a partir de profunda observação como fotógrafos que durante decênios percorrem as terras do Himalaia (www.follmi.com).

Dilgo Khyentsé Rinpotché. Foto Matthieu Ricard

A figura de um iluminado, o mestre espiritual Dilgo Khyentsé Rinpotché (1910-1991), interpenetra muitos dos textos. Matthieu Ricard tem o cuidado de, ao longo do livro, introduzir ensinamentos de Khyentsé Rinpotché. Estes estrategicamente percorrem o ciclo das existências e, naturalmente, o mestre iluminado pode ser apreendido em parcela de seu aprofundamento espiritual. Os preceitos básicos do budismo tibetano vão sendo pouco a pouco inseridos: as Três Jóias tendo o Buda como aquele que despertou do sono da ignorância e se iluminou, o Dharma representado pela palavra através dos ensinamentos e o Sangha que compreende a comunidade como um todo. Em torno da tríade, preceitos dos mestres espirituais do passado e do presente denunciam o conceito da ilusão, a conduzir o homem aos caminhos do sofrimento representados pelo rancor, inveja, orgulho, desejo e ignorância. Eliminá-los levaria o ser humano à possibilidade da compaixão. Essas colocações poderiam ser uma armadilha à ventilação apenas de ensinamentos religiosos. Não o são porque, através de posicionamentos transparentes, os autores levam o leitor à percepção dos costumes, da simplicidade, da alma, do fervor, da alegria, da tragédia, do profundo sentimento de respeito ao divino e às hierarquias milenares, da nobreza e das artes representadas pelas manifestações que nos conduzem a compartimentos precisos: música, dança, pintura, escultura, arquitetura.

Uma mulher nômade ao fogão. Foto Matthieu Ricard

Geograficamente, Tibete, Nepal e Butão são observados com olhos atentos, mas sempre amorosos. Os diversos outros autores, ocidentais ou não, deixam um contributo onde o mais profundo respeito à região é facilmente detectado. Nesse sensível debruçar, a simbologia é um axioma. Os autores apresentam-na metamorfoseada em inúmeras manifestações. As bandeirolas que levam as mensagens impulsionadas pelos fortes ventos, a vida nômade de tantas famílias no entendimento da terra como dádiva, apesar do clima inóspito, o iaque como um “membro” da família, a tudo fornecer: leite que faz queijo, lã que agasalha, pele que cobre as tendas, esterco que serve de combustível. Nos grandes deslocamentos as povoações levariam sempre esperanças, apesar de todas as adversidades. Guiam-se pelos astros, cúmplices da religiosidade atávica. Sob outro aspecto, a astrologia tibetana, que deve muito à cultura chinesa, estabelece símbolos para o calendário e preceitos para a medicina, cujos ensinamentos, transmitidos do mestre para o discípulo nos monastérios, tornavam certos recintos destes, verdadeiros ambulatórios, a atenderem doentes através de remédios resultantes de produtos naturais. Segundo um aforismo da medicina tibetana, o sofrimento está ligado aos seres, mesmo com boa saúde, assim como o pássaro está seguido por sua sombra até durante o vôo.
A compreensão da Morte como passagem em direção ao renascimento, inserida nos conceitos budistas, é essencial ao entendimento dos textos. Através dessa captação, torna-se transparente toda a concepção da existência para esses povos. Apreender o natural das coisas, eliminando os aspectos negativos da vida, a fim de se atingir o estágio da compaixão, etapa encontrada após a eliminação do sofrimento, levaria o ser humano à morte “transitória”, mas tranqüila.
A figura do Bodhisattva, ou seja, aquele que direcionado à compaixão, tem como missão eliminar dos seres humanos o sofrimento que, no conceito budista, corresponderia a deles suprimir o círculo das existências, samsara. O encaminhamento dos textos tem sempre esse sentido da ajuda ao próximo, preceito que, sob outra égide, encontramos no cristianismo. Todavia, a concepção do renascimento, existências anteriores e futuras a dependerem dos acúmulos kármicos direcionam as reflexões de religiosidade a caminhos bem distintos nas duas religiões.

O aconchego de duas irmãs em Zanskar. Foto Olivier & Danielle Föllmi.

O livro tem imagens simplesmente mágicas. Percebe-se a relação íntima, cúmplice e amorosa dos autores com o ambiente, a religião, o conjunto absoluto do budismo no Himalaia. As fotografias, por vezes, transcendem o próprio objeto focalizado, dele a extrair sua essência.
Lamentam os autores a tomada do Tibete, a violência inaudita das tropas chinesas a partir de 1949 e relatos pessoais testemunham cenas cruentas provocadas pelos invasores. Dantesca visão comprovada pelo fato de 85% da população de Lhassa, a capital do Tibete, ser hoje constituída de chineses enviados para a cidade sagrada do verdadeiro povo tibetano. Em Himalaya Bouddhiste, as estatísticas das brutalidades surpreendem. Jamyang Norbu, um dos maiores escritores tibetanos da contemporaneidade, afirma em seu texto inserido no livro: O afluxo maciço de colonos chineses torna a situação interior do Tibete particularmente sombria. Mas a imigração, por mais inquietante que possa parecer, não é um fenômeno irreversível. Stalin forçou milhões de russos a imigrarem para Lituânia, Letônia e Estônia. Hoje, essas nações são livres, falam suas línguas e possuem as suas próprias bandeiras.
A extraordinária coleção de textos e a iconografia de beleza inconteste faz-nos “presentes” na região inóspita, mas plena de encantos. Podemos, minimamente, penetrar nesse universo tão distante do nosso, onde pensar e agir estão impregnados de misticismo pleno de mistérios e do eterno insondável.
Meus agradecimentos ao Atelier Föllmi (França) por ter autorizado a reprodução das inefáveis fotografias.

The book Buddhist Hymalaias, written by Olivier Föllmi, Matthieu Ricard and Danielle Föllmi, is a work of art, alternating breathtaking images with passages written by thinkers of Tibetan Buddhism. Besides offering an introduction to religious precepts, it delves deep into the geography, the history, the traditions and the wisdom of the Tibetans.

“Himalaya Bouddhiste” c’est tout d’abord un oeuvre d’art. Le livre conçu par Matthieu Ricard, Danielle, Olivier Föllmi et Benoit Naci fait resplendir l’essence des peuples de l’Himalaya bouddhiste. Les textes choisis, écrits par vingt et un spécialistes de six nationalités différentes, sur les thèmes de la région himalayenne, ainsi que les photos magiques et innéfables, rendent à l’oeuvre, un caractère unique.