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Origem do Fascínio

Página de O Mundo Pitoresco

Domar a mente
é a tarefa mais importante
da vida de uma pessoa.

XIVº dalaï-lama Tenzin Gyatso (1935 – )

Meu pai e eu aniversariávamos no mesmo dia. Pediu-me que eu o presenteasse com a Valsa op. 64 nº 2 de Chopin, popularmente conhecida como 7ª Valsa. No dia da comemoração, durante o café da manhã toquei para ele o que prometera. O seu presente, jamais esqueceria: O Mundo Pitoresco, a belíssima coleção encadernada em IX tomos ( Rio de Janeiro, W.M.Jackson, 1946, 2.331 págs.). Completava meus 12 anos e a obra seria minha cúmplice geográfica. O mundo lá estava: regiões, povos, tradições, abundantes ilustrações, textos assimiláveis. O adolescente que eu fui leu devotadamente a coleção, sonhou e viajou pelas terras desconhecidas, a pensar em como seria extraordinário conhecer o planeta, na época ainda a apresentar regiões misteriosas e a ter uma integridade física que a incúria humana não fez mais do que deteriorar ao longo das últimas décadas.
Já no início do primeiro volume deixei-me fascinar pelo texto Através das Terras Proibidas, no qual Tibete, Nepal e Butão eram apresentados como regiões localizadas no topo do mundo e praticamente ignotas pelo homem. O autor do relato já advertia que aqueles territórios permaneciam fechados. O jovem cresceu e o interesse por essa região também, não apenas no aspecto geográfico e das populações que lá existem, mas igualmente na maneira como elas entendem a vida através da tradição de milênios a resultar na prática religiosa diária, costumes simples e rudes, respeito absoluto à natureza e deslocamentos constantes de determinadas povoações nômades naquelas alturas gélidas. Vôo para a imaginação. Na adolescência sonhei até em ser alpinista, atividade incompatível para um jovem que se dedicava seriamente ao piano. Todavia, o interesse pela extensa cadeia representada por quantidade imensa de picos acima dos 7.000 metros persistiu, e quando viajo levo comigo escritos sobre o Himalaia.
Tantas foram as obras lidas: aventuras visando à conquista de alguns dos altos cumes, narrativas de viajantes ou daqueles que buscaram refúgio místico, coletâneas de textos enriquecidas por fotos de perfeição mágica, pensamentos filosófico-religiosos; todos ainda despertando no hoje quase septuagenário o prazer inconfessável dos sonhos secretos.
Duas narrativas chamaram-me a atenção neste ano: a de Alexandra David-Néel (Au coeur des Himalayas, Paris, Payot, 2004, 193 págs.) e a de Paul Brunton (Un ermite dans l’Himalaya, France, du Rocher, 2006, 431 págs. trad. do inglês). Ambas pertencem à primeira metade do século XX, quando as regiões mencionadas eram pouco freqüentadas, e abordam aspectos distintos, porém concordantes em tantos ângulos.

Au coeur des Himalayas - Alexandra David-Néel (1868-1969)

A escritora, budista e exploradora francesa Alexandra David-Néel (1868-1969) teve uma vida plena. Escreveu mais de 40 livros sobre viagens, espiritualismo, posicionamentos políticos. Percorreu a região do Himalaia por cerca de quinze anos. Em 1949, é publicado Au coeur des Himalayas, reeditado recentemente. Nele a escritora, que foi a primeira mulher ocidental a se tornar Jétsunema, ou seja, lama, relata uma extraordinária peregrinação durante o inverno de 1912-1913 ao coração das regiões montanhosas, a fim de visitar os lugares onde viveu Buda. Mencionávamos o desconhecido relacionado ao Himalaia. Naquele início de século, a andança de uma mulher voltada à cultura e religião orientais era algo quase inimaginável. Madame David-Néel aprofunda-se no conhecimento das tradições da região. Misticismo, hábitos atávicos, pureza, simplicidade, fatalismo e crueldade são naturalmente expostos enquanto a escritora espiritualista visita lugarejos, paisagens. Nepal e Tibete surgem, sob a pena de David-Néel, como alumbramentos: Ó! Tibete! Como este país tão diferente do meu conseguiu me conquistar de maneira tão profunda, possuindo-me inteiramente corpo e espírito, pensamentos e sensações? A autora observa diferenças entre as arquiteturas dos monastérios da India meridional e aquelas do Tibete e do Nepal; mantém algumas tradições ocidentais, mas incorpora-se, em parte, ao modus vivendi dos monges budistas, respeitando-o; encanta-se com as paisagens fantásticas da cadeia de montanhas entre esses dois últimos países. Compartimenta o termo paisagem. Ela afirmaria ter tido como fim essencial a curiosidade que leva ao conhecimento, no amplo sentido do conhecer “paisagens”. Se altas montanhas, vales, florestas, rios, flores e pedras têm muito a revelar, pois vivem intensidades e para isso é só necessário ter ouvidos e olhos atentos, paisagens são também a vida dos homens e aquilo que eles estão a traduzir através da conduta. Esta evidencia-se por meio das idéias, desejos, crenças, amores, rancores, esperanças, conteúdos sempre em movimento naquilo que a autora nomeia como a própria alma. O livro relata a experiência da viajante frente a um tigre. Imóvel, libertou-se de pensamentos, fitou o animal sem medo, pois estava em meditação, e o felino, após algum tempo, afastou-se. As narrativas de Alexandra David-Néel cativam pela sagacidade das observações.

Un ermite dans l’Himalaya - Paul Brunton (1898-1981)

Paul Brunton (1898-1981), pensador, jornalista, viajante, místico e guru inglês, teve uma vida igualmente intensa. Seus livros refletem o interesse do pensador em busca de explicações que levem o homem à paz interior. Em Un ermite dans l’Himalaya, Paul Brunton em 1936 retira-se do convívio com a turbulenta sociedade londrina e encontra, durante meses, um local perdido entre o Nepal e o Tibete. Instala-se em um bangalô e diariamente passa horas a meditar em local próximo, mas ainda mais alto, de onde descortina segmento da cadeia montanhosa do Himalaia. Um velho deodar – cedro do Himalaia – à frente de um abismo torna-se seu confidente. No livro há relatos dos caminhos percorridos, mas diferentemente de David-Néel, Brunton está na região para esse encontro místico com o almejado esvaziamento do pensar. Compara as múltiplas idéias a ocorrerem na mente de um citadino ocidental com a evaporação dos pensamentos simultâneos, num desiderato único de, em meditação, conseguir a quase impossível meta de, longamente, ter apenas uma fixação. Seria a idéia única que, almejada, deve tornar-se imanente. Em seu exílio voluntário, recebe visitas esporádicas de grandes mestres yogas, como Pranavananda, assim como a de um Príncipe Sábio. Registra tudo em sua máquina de escrever. Pranavananda conta a Brunton que seu mestre, Swami Jnanananda teria permanecido longo período em meditação durante o inverno acima dos 3600 metros, sem roupas e sem fogo para aquecê-lo, apenas com a força do pensamento. Chegara ao estágio de alcançar apenas uma fixação e conservá-la. Parece-nos fantasioso, mas relatos testemunham essa façanha de um verdadeiro yoga despojado de quaisquer outros pensamentos que pudessem distraí-lo ou perturbá-lo. Paul Brunton vive a sua experiência, relata-a e sua narrativa jamais perde o encanto nesse solilóquio previsto. O Príncipe do Nepal que o visitou, Mussooree Shum Shere, escreve na apresentação do livro que Brunton considerava Un ermite dans l’Himalaya horrivelmente egocêntrico, no que o apresentador discordou. A obra tem interesse, a ensinar, através da experiência vivida, que o homem deve buscar, mesmo nas grandes cidades ocidentais, refúgios para a mente, despojando-a de pensamentos dispersos, provocadores e inúteis. Um parágrafo do livro sintetiza o esforço nessa intenção, certo niilismo, mas a certeza de ser a luta constante o caminho a ser seguido: Eis-me presentemente letárgico, inútil à sociedade e sem ocupação lucrativa, um desocupado que se contenta em permanecer sentado sem se mexer e esforçando-se em expulsar vagas de pensamentos invasores que tentam subjugá-lo. Em resumo, eu não tenho nem status oficial nem lugar reconhecido no mundo. Eu não mais sou respeitado. Isso não tem importância!. Como curiosidade, Brunton mantinha em seu bangalô uma foto de Charles Chaplin, dedicando longas reflexões ao ator: porque ele fala a língua universal que brancos, mestiços, amarelos e negros compreendem bem – a língua do humor e do patético. Divaga sobre o esplendor das estrelas em noites imaculadas naquelas altitudes, a comentar não apenas constelações e astros, mas os reflexos noturnos nas paredes nevadas do Himalaia. Assim como Alexandra David-Néel, Brunton encontra na solidão o seu felino, uma pantera. Fixaram-se, o animal demonstrou sua raiva, mas não atacou, devido à “aparente” tranqüilidade do autor. Os livros de Paul Brunton tiveram enorme sucesso. Entrara em contacto com grandes figuras do pensamento místico da India, e o acervo de experiências e captações tornaram Brunton um mestre para seus seguidores. Embora enfoquem período determinado, tornam-se atemporais, despertando interesse de todos que almejam a paz interior.

When I was a boy I was given the encyclopedia O Mundo Pitoresco (The Picturesque World). I read bewitched the stories of far-off countries, with their rich and unique cultural heritage and uncommonly diverse landscape. This was the beginning of my lifelong interest for the Himalayas, home to the world’s highest peaks. This post is about two books I have recently read on this subject: Alexandra David-Néel’s Au Coeur des Himalayas (In the Heart of the Himalayas) and Paul Brunton’s A Hermit in the Himalayas. Two narratives written in the first half of the XXth century, approaching the matter from different but equally fascinating perspectives.

Preferências Eleitas

Je n’ai plus même pitié de moi
Et ne puis exprimer mon tourment de silence
Tous les mots que j’avais à dire se sont changés en étoiles
Un Icare tente de s’élever jusqu’à chacun des mes yeux
Et porteur de soleils je brûle au centre de deux nébuleuses

Guillaume Apollinaire

É característica humana eleger preferências. De toda ordem elas existem e comprovam a assertiva. Países, cidades, lugares, alimentos, profissões, amizades e companhias afetivas, autores literários, compositores, artes no sentido amplo, opção religiosa são privilegiados ao longo de nossas trajetórias. A empatia tem origem profunda ou não, a poder inclusive surgir por mero acaso. Geralmente, a escolha feita tende a sedimentar-se ou servir, acúmulo certificado, para outras escolhas ramificadas daquela. Necessitaria o homem desses amparos a indicar-lhe o norte, e fazem parte de sua formação integral.
No final de 1958, estudava em Paris e, ao tocar nos cursos de piano de Marguerite Long, encontrei o ex-cônsul da França em São Paulo, Baron André de Fonscolombe. Diplomata na acepção, era também um amante da música, pois tocava e cantava com prazer. Convidou-me para ir ao seu apartamento na Avenue Hoche, nº 4. Nascia um relacionamento que se prolongou por um bom tempo. Depois, como diplomata sediado no Quai d’Orsay – corresponde ao nosso Itamaraty –, ele foi ocupar um outro posto fora da França.
Durante esse período, quase todas as quartas-feiras à noite jantava informalmente com Monsieur le Baron, em companhia de sua esposa, filhos, Simone de Saint-Exupéry, prima irmã do anfitrião, e um príncipe russo. Poderiam ser apenas reuniões triviais, não fossem as extraordinárias sessões após o jantar. André de Fonscolombe apagava as luzes e deixava apenas um abajur aceso. Simone, irmã de Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944), sentava-se perto da luz, retirava de uma pasta algumas folhas e lia trechos de Citadelle, obra prima do piloto-escritor. Foram inúmeras as sessões de leitura nas quais, pausadamente, Simone enfatizava os escritos e os vários segmentos juntados, a fim de se chegar ao texto final, que seria publicado em 1959, com outras obras do autor, na coleção Bibliothèque de la Pléiade (France, NRF, 1008 págs.). Simone esteve à testa desse hercúleo trabalho, no qual não faltou a interpretação de palavras chaves de Citadelle, mas com significados diferentes no transcurso das narrativas que compõem o livro. Dissera que o trabalho fora imenso, pois Saint-Exupéry escrevia e por vezes deixava gravado alguns textos, que eram transcritos posteriormente. Fez-nos ouvir alguns desses registros com a voz do autor. Os textos de Citadelle, muitas vezes, remetem à mesma temática desenvolvida sob outros contextos. Após uma interrupção para a tizane, eu tocava num Erard de meia cauda peças que estava a estudar. Voltava-se à leitura e, por vezes, ficávamos a ouvir sentados sobre os tapetes. Ao finalizar, Simone respondia às nossas indagações a respeito de Citadelle como síntese do pensamento do ilustre humanista. A magia dessas reuniões planava sob a aura do personagem no sentido profundo de sua dupla ação: o piloto solitário que entendia a mensagem das estrelas na longas noites a sobrevoar continentes e oceanos, e o escritor que em sua obra maior, Citadelle, captava as reações humanas, boas e más, a interpretá-las. Nos solilóquios aos quais o autor se impõe na obra, há sempre a profunda reflexão sobre o homem e suas aspirações. Simone sabia traduzir-nos intenções ocultas contidas na criação e Saint-Exupéry penetrava-nos através de parcela de sua dimensão. Apesar de o piloto-escritor ter em mente o plano geral da obra, ela ficaria inconclusa. Todavia, a reunião de textos visando ao livro final publicado daria a este monumentalidade. Como afirma Simone de Saint Exupéry na apresentação de um glossário da publicação mencionada: a obra aborda todos os problemas da destinação humana e das condições do homem.
Tinha perdido com o tempo o contacto com os Fonscolombes. André já falecera, mas seu primo irmão, Bennoit de Fonscolombe, lembrou-me, neste ano, traços marcantes do diplomata-intelectual e de sua extrema generosidade. Foi graças ao Baron de Fonscolombe e a sua prima Simone que me encantei com a obra de Saint-Exupéry, que será motivo de posts futuros. Li sua opera omnia, apreendendo reflexões densas e profundas. Foi tão marcante essa influência que, em 2004, acometido de um linfoma com prognóstico plúmbeo, a levar-me a muitas sessões de quimioterapia, pensei à noite, poucas horas após o diagnóstico: qual o livro mais marcante dentre todos aqueles que me fizeram companhia ao longo da existência? Precisaria encontrar o equilíbrio a partir da família, dos amigos verdadeiros, da música, da fé e da leitura. Esta poderia corroborar a paz interior necessária a tudo suportar. Veio-me a mente Citadelle. Durante um ano e meio reli, antes de dormir, duas ou três páginas e refletia. Finalizei a leitura, quase quarenta anos após a primeira visita à obra. Realmente um monumento. Ajudou-me a reencontrar a paz relativa sempre almejada. A saúde sub judice, nessa trégua que me foi concedida por um Poder Maior, faz-me entender ainda mais o maravilhamento de Citadelle e…da vida, através do fervor, uma das palavras paradigmáticas do livro. E tudo teria começado através da inefabilidade dos textos lidos por Simone de Saint-Exupéry. Citadelle, corolário de tantas outras obras do autor: Courrier Sud, Vol de Nuit, Terre des Hommes, Pilote de Guerre, Le Petit Prince…

My friendship, back in the fifties, with Baron André de Fonscolombe and his cousin, Simone de Saint- Exupéry, who was the sister of the French writer Antoine de Saint-Exupéry. It was thanks to Simone and the Fonscolombe family that I was made familiar with the remarkable book Citadelle (translated into English as The Wisdom of the Sands), a collection of the writer’s reflections about humanity, published posthumously as a series of parables. A most extraordinary book, which I recently read once again and that helped me through a serious illness.

Literatura sobre Arte Sacra no Brasil

É um inútil desperdício de tempo
celebrar a memória dos mortos
se não nos esforçamos em exaltar
as obras que deixaram.

Monteiro Lobato

Paulistinhas, terracota - séc. XIX -  foto: J.E.M.

Alguns estudiosos debruçaram-se, no século XX, sobre a temática da Arte Sacra Brasileira. Por analogia, poderíamos avocar a frase de Miguel Torga, que afirmou que um escritor, aos escrever algo significativo, fá-lo tendo em conta toda uma legião de escritores que o precederam. Com Eduardo Etzel ocorreria o mesmo. Estudou em profundidade a bibliografia pertinente à Arte Sacra no Brasil. Quatro aspectos fundamentais, contudo, diferenciam-no de ilustres ascendentes: ter sido cirurgião torácico e psicanalista, apreender a temática através da pesquisa de campo, preferenciar basicamente a Arte Sacra Popular, persistir no aprofundamento durante cerca de trinta anos. A medicina ofertou-lhe o amplo conhecimento anatômico e a psicanálise, os meandros que levam ao inconsciente; a pesquisa de campo aguçou, mercê do embasamento anterior, o sentido da análise do objeto de estudo, ampliando o leque das hipóteses e das certezas; a área pesquisada fê-lo captar as manifestações da Arte Sacra de tendência não erudita; a persistência dimensionou a qualidade da pesquisa. Estes atributos atestariam o patamar ímpar em que sua obra sobre a Arte Sacra Brasileira posiciona-se.
A longa trajetória inicia-se a partir de Imagens Religiosas de São Paulo. Apreciação Histórica (São Paulo, Edusp-Melhoramentos, 1971, 302 págs), levantamento de parcela considerável da Arte Sacra Popular do Vale do Paraíba. Nesse percorrer extensa região, Etzel colhe material, seleciona-o, compara-o e estabelece hipóteses que as evidências transformariam em verdades com o decorrer do tempo. Há mapeamento de toda a região. Notável a perspectiva que imprime às paulistinhas – pequenas esculturas feitas em barro cozido sobre base oca, para não racharem devido à temperatura alta, e modeladas a partir de fôrmas – a procurar nessas peças anônimas traços que porventura identificassem o autor. Em muitas delas, marcas inalienáveis, seja na pintura, nos pormenores ou, raramente, na data fixada em baixo-relevo no interior da peanha vazada, levariam à revelação do santeiro, embora sem nome. Impressiona-se com outras diminutas esculturas da imaginária, realizadas em nó de pinho pelos escravos e seus descendentes. O livro, antecâmara de estudos futuros a respeito de santeiros populares, já apresenta algumas poucas imagens de alguns autores identificados. Outras peças religiosas, como oratórios e crucifixos, enriquecem a obra.

Esculturas em Nó de Pinho - 3cm a 15cm, séc. XIX - foto: J.E.M.

Quando escreve a seguir O Barroco no Brasil. Psicologia e Remanescentes em São Paulo, Goiás, Mato Grosso, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul (São Paulo, Edusp-Melhoramentos, 1974, 312 págs.), seria possível entender que a característica não erudita da arte sacra do Vale do Paraíba tenha influenciado Etzel na busca do Barroco brasileiro menos ventilado. Dirige-se a regiões onde essa manifestação estilística sofreu menos os eflúvios da riqueza proporcionada pelo ouro e pela cana-de-açúcar. Pesquisando em pequenas localidades das áreas visitadas, depara-se muitas vezes com soluções autógenas de artistas e artesãos que, sem o aprofundamento exegético “erudito”, criaram soluções ímpares para imagens religiosas. Apesar do curto período aurífero em Goiás, como exemplo, as manifestações do barroco, palavra sempre em pauta na pena do autor, tiveram características sui generis como contributo à Arte Sacra no Brasil. Barroco pobre e despojado, mas original em suas soluções. Tardiamente, Goiás encontra um artista de grande mérito: José Joaquim da Veiga Valle (1806-1874). As várias fases por que passou São Paulo são abordadas, assim como os Estados do Sul. Por todos os lugares, Etzel realizou pesquisa documental aprofundada antes de formular hipóteses.

Nossa Senhora com Menino - terracota. Dito Pituba, séc. XIX. Foto: J.E.M.

Em Arte Sacra Popular Brasileira. Conceito-Exemplo-Evolução (São Paulo, Edusp-Melhoramentos, 1975, 174 pgs.), Eduardo Etzel focaliza com precisão um tema determinado. Após considerações relativas ao título, à inter-relação cidade campo e à função do santeiro junto à comunidade, dedica-se a um em especial, Benedito Amaro de Oliveira, o Dito Pituba (1848-1923) de Santa Isabel, cidade a poucos quilômetros de São Paulo. Investiga a criação, os porquês de uma produção imensa e a genialidade de Pituba surge por inteiro. Soube empregar os mais variados materiais para a elaboração de imagens, crucifixos e oratórios: madeira, argila que servirá à terracota, couro, arame, tampinha de garrafa, caixas de vinho, de óleo ou de bacalhau importados. Também encontrou outras soluções rigorosamente inéditas, como a utilização de pregos para a fixação da peanha à imagem. Etzel aprofunda o estudo e compartimenta as fases da produção do santeiro conforme a feitura, analisando os porquês.

Oratório e Imagens, Dito Pituba, séc. XIX - foto: J.E.M.

Ao escrever J.B.C. Um Singular Artista Sacro Popular – A Obra Transcende o Homem (São Paulo, CESP, 1978, 63 págs. mais anexo iconográfico), Etzel presta homenagem a José Benedito da Cruz (1877-1934), pedreiro, marceneiro e pintor nascido em Paraibuna, e que trabalhou na região de Mogi das Cruzes reformando ou pintando capelas e fazendo imagens. Notável o detalhamento do estudioso quanto à igreja matriz de Taiaçupeba (Capela do Ribeirão). J.B.C., que deixava nas obras sua assinatura, ou iniciais, pintou 10 capelas, confeccionou retábulos e viveu dessa atividade de santeiro popular. Etzel capta seus traços, encanta-se com a puerilidade de suas pinturas e de sua imaginária e novamente formula hipóteses para a criação de obra tão singular.
Imagem Sacra Brasileira (São Paulo, Edusp-Melhoramentos, 1979, 157 pgs.) é bem definido pelo autor, no prefácio, como um guia para que o amador possa apreciar o que existe exposto em museus e coleções, e para auxiliá-lo, se porventura pretender adquirir uma peça, desviando-o das fraudes que grassavam e que, infelizmente, continuam a existir. Distingue a imagem erudita da popular, examina sucintamente esculturas sacras com pleno domínio e nesse “resumo” percebe-se que “o” livro sobre a Arte Sacra estava a ser preparado. E este surgiria um lustro após.
A publicação de Arte Sacra – Berço da Arte Brasileira (São Paulo, Melhoramentos, 1984, 256 págs.) merece, entre a opera omnia do autor voltada à temática, posição absolutamente ímpar. Corolário de todo o caminhar. Etzel defende, sempre a apresentar provas, a Arte Sacra como origem primeira de nossa arte, mercê da chegada dos padres, no século XVI, às terras brasileiras, a difundirem o culto católico: “ o resultado dessa ação missionária, cuja arma principal foram os templos com a melhor riqueza artística possível nas circunstâncias locais, tornou-se a Arte Sacra o berço, o começo e a raiz única da arte brasileira…” A posição firme do autor estende-se pelos sete capítulos, a abranger grande área do território brasileiro. Busca, nos inventários dos séculos XVII e XVIII, provas para suas teorias. Como exemplo, no capítulo destinado às missões jesuíticas no sul do país, após pouco encontrar em Sete Povos das Missões, com os templos e a imaginária destruídos depois da Guerra Guaranítica, vai ao Paraguai, onde traços marcantes ainda existem nas missões locais. Pertinentemente ilustrado, o livro é extraordinário por seu todo. À resenha que escrevi, publicada no “Cultura” de “O Estado de São Paulo” (nº 215, ano IV, 22/7/84, pág. 10), Eduardo Etzel, aos 78 anos, escreve-me carta de Minas Novas (28/7/84), onde estava a fim de estudar mais profundamente Anjos e Divinos na Arte Sacra do Brasil: “Palavra que até chorei… Sempre tive a impressão de ser marginalizado pela nossa ‘inteligentzia’ que não me levava a sério. Você botou os pontos nos ii e registrou o fato. Sem modéstia acho que foi justo e preencheu uma expectativa que para mim era necessária.”
Poder-se-ia afirmar que, nos três derradeiros livros sobre Arte Sacra Brasileira, Etzel penetra profundamente temáticas enraizadas em nossa cultura: Nossa Senhora do Ó. História-Iconografia-Características Brasileiras (São Paulo, Bovespa, 1985, 79 págs.), Anjos Barrocos no Brasil – Angelologia (São Paulo, Kosmos, 1995, 92 págs.) e Divino – Simbolismo no Folclore e na Arte Popular (São Paulo, Kosmos, 1995, 180 págs.). No primeiro, como afirma, estuda “a fascinante iconografia de Nossa Senhora da Expectação, também chamada do Ó, a Virgem Mãe às vésperas do nascimento de Jesus Cristo”; no segundo, aprofunda-se na simbologia dos anjos na Arte Sacra Brasileira, investigando a curiosa dualidade relativa à feitura erudito-popular, assim como a presença do masculino e do feminino dessa manifestação em nossa imaginária; no Divino, documenta largamente, através da História, o culto permanente à terceira pessoa da Santíssima Trindade. Foi um prazer ter sido convidado por Eduardo Etzel para escrever o Prefácio, finalizando-o: “ Desconhecer a contribuição de Eduardo Etzel, única no desvelamento dos segredos que cercam a criação sacro-popular brasileira, é negar o conjunto monolítico mais expressivo e enriquecedor de nossa literatura específica. A partir dele, as trevas que envolviam a criação sacro-popular estão a se dissipar. E sempre há a esperança….”

Eduardo Etzel: an account of my friendship with Eduardo Etzel, thoracic surgeon, psychiatrist and humanist, who introduced me to the universe of the Brazilian religious art. A summary of each of the books he wrote on this subject.