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As Várias Manifestações Gestuais

A obra de arte não deveria ser pretexto
para o intérprete expor seus próprios estados de alma.
Tão pouco a exibição de si mesmo, ou seja, a auto-exibição.
É dever sagrado do intérprete comunicar
de maneira intacta o pensamento do compositor,
pois ele não é que intérprete, apenas.
Claudio Arrau

Dividi em duas partes o blog sobre o gesto. Este segundo post coloca-se em dois momentos: apresentar a continuação das considerações de François Servenière sobre o gesto, mormente na modernidade e, depois, tecer reflexões pessoais sobre gestualidade, concentração, mídia, tradição e modernidade, já externadas homeopaticamente em tantos posts anteriores.

Ao regressar ao pianista Lang Lang, nascido na China em 1982, Servenière comenta: “Vejo em sua maneira de interpretar algo muito original, fundamental para a maestria do futuro, mas iconoclasta para a geração mais purista, nascida sob os fundamentos batismais da rádio, onde apenas a audição era importante. Consideravam que a transmissão áudio iria travestir e trair a tradição dos intérpretes mediúnicos, podendo ‘matar’ os poucos intérpretes ungidos num panteão ainda em vida. Eram eles os únicos que poderiam se opor a esse fervilhar multifacetado que surgiu com as novas gerações de pianistas, produzidos em massa pelos conservatórios mundiais. Essa assertiva pode ser constatada através de caminhos percorridos por essa legião de intérpretes.

Por que fiquei emocionado com a interpretação de Lang Lang do famoso concerto de Tchaikovsky? Ele teria compreendido que a música de tradição, habitualmente denominada clássica ou erudita, muitas vezes com desprezo, necessitará de nova metodologia para poder concorrer com as insípidas presenças na web, que deploramos amargamente, você e eu. Lamentamos a capacidade perdida da música erudita de poder seduzir o espectador frente ao desarranjo infinito que nos é proporcionado por esses espetáculos de vídeos YouTube sem pé nem cabeça, pela apologia insana à pornografia, sem contar sexo, assassinatos e a decadência  mais estereotipada, salvo em Roma antes da queda. Até mensagens bárbaras de fundamentalistas são apresentadas! Lang Lang compreendeu que, para concorrer com a web atual, em batalha aparentemente perdida para o besteirol, seria necessário mostrar movimento, vivacidade, teatralidade, mise-en-scène e qualidade vivificada e renascida, pois a imagem alimenta-se ‘bestamente’ de movimentos e vida. Ação de muitas câmaras e gestos, montagens sofisticadas, pois, mesmo que o purismo o contradiga, evidentemente o progresso passa por uma análise de fundo e de forma! Orquestras e metteurs en scène compreenderam essa tendência. Talvez estejamos nessa fase necessária – mas não o suficiente – da transição, onde intérpretes aprendem uma nova linguagem, justamente essa da cena frente à câmara quando, pouco a pouco e por vezes tateando, compreendem a necessidade atual, vital e irreversível, dessas técnicas inovadoras. Acredito, em contrapartida, que haverá uma volta à verdade da linguagem essencial entendida por você.

Na realidade, a gestualidade de Lang Lang não é tão diferente daquela de músicos clássicos de todas as gerações, que adentravam o palco diferenciando-se da concorrência mostrando personalidades expansivas, diferentes daquilo visto até então. Estive presente em numerosas premières de jovens. A teatralidade mais ou menos excessiva, a depender da personalidade, perturbava-me, como o perturba.Compreendi com o tempo que se tratava de natural inclinação ao inusitado nesse vislumbrar da carreira. Como você demonstra com eloquência, o intérprete regressa naturalmente à tradição mais comedida e sábia de sua arte quando sua personalidade acaba sendo aceita e adubada pelo público. Stravinsky foi radical ao compor ‘A Sagração da Primavera’ e resultou, o mesmo fazendo Pierre Boulez, ainda mais radicalmente! Conheci os primórdios da carreira do pianista François-René Duchâble. Era eu ainda um menino. Extrovertido e expansivo no palco àquela época, Duchâble era de estatura pequena. Quando assisti a um seu concerto – ele deveria ter 50 anos – presenciei o sábio sobre a montanha, já sem a necessidade de fazer acrobacias e gestualidade excessiva para deslumbrar multidões. Duchâble encarnou dois personagens, o gênio precoce e o sábio. A primeira atitude, para se fazer conhecido, a segunda, para transmitir. Toda essa metamorfose em apenas uma personalidade desejosa de imortalizar a verdade da música em lances largos, elegância, profundidade. A verdade estaria nessa transformação. Penso que Lang Lang tem suficiente talento e inteligência para traçar o mesmo caminho percorrido pelos grandes mestres. Os excelsos compositores também não trilharam sendas que se metamorfosearam?  Aí estão Debussy, Mozart, Ravel, Stravinsky, Beethoven, mestres absolutos, para mais não dizer” (tradução: J.E.M.).

A tradição obedece à constância, dela é integrante. Porém, fluxos motivados pela passagem do tempo, não a tornam imutável. Impossível seria tratando-se de interpretação. A tradição pressupõe pequenas flexibilizações. Se assim não fosse, estaria embutida, aprisionada. Contudo, a espinha dorsal – mercê da partitura, das fontes, do debruçamento de estudiosos e da oralidade – é salvaguarda para que a continuidade tradicional permaneça. Se a modernidade e a tecnologia sempre in progress avançam para cenário cada vez mais exposto, intérpretes adeptos da tradição no suceder de gerações não têm essa preocupação com o efeito gestual e a transmissão da mensagem musical. Antolha-se-me que o gesto expõe o carimbo rigorosamente individual quando dos excessos nos tempos atuais. Insubstituível, personalíssimo, o gesto mediático exacerbado não encontra imitadores. Ele é efêmero, pois estiola-se com o “criador”. Tem, sim, descobridores de outras “técnicas” de expressão corporal. Seria do mais extremo mau gosto uma réplica de Lang Lang em suas transformações corpóreo-faciais, como beiraria o grotesco a adoção postural excêntrica de Glenn Gould frente ao piano. Os gestuais do virtuosístico e estereotipado Lang Lang e os praticados por Glenn  Gould, artista de raríssima inteligência, não têm e não tiveram, respectivamente, seguidores, mas servem e serviram para autopromoção. Impossível a indiferença ao vermos essas duas personalidades em ação. Não obstante, é fácil entender que há fundamental diferença entre os dois, pois no pianista canadense, apesar das excentricidades, a presença da plena convicção quanto à interpretação meticulosamente planejada torna-se transparente.

Esse debate me fez percorrer vídeos de alguns pianistas, do passado ao presente. Apresento alguns links que poderão ser acessados pelo leitor. Acredito que a economia dos gestos, quase que sine qua non no passado, ajudava a transmissão da mensagem musical nesse respeito absoluto à tradição. Se houve exceções bem anteriores, inclusive a de Franz Liszt (1811-1886), frise-se que o extraordinário pianista e compositor húngaro teria sido o primeiro a apresentar recital sem partitura e parte essencial de suas récitas era constituída de obras de sua lavra. Seu gestual era único, segundo relatos. No meu entender, ratifico, torna-se improvável o não contágio do gesto sobre a transmissão. Interfere na frase musical, nas acentuações, sensivelmente na agógica e no estilo. Certamente o intérprete de gestual exacerbado, que está a “transmitir-se”, preferencialmente à mensagem musical, não deverá ser aquele que carrega a chama olímpica da tradição. Daí minhas observações no e-mail a Servenière, postado no blog anterior. Porém, ele tem razão em suas considerações. Tempos modernos clamam pelo gestual. E não apenas isso. Empresários, que visam obviamente ao lucro, plateias que se empolgam com o virtuose “fenômeno”, que entendem a gestualística como meio fundamental, sociedades de concerto que aceitam ser aquele o “cara” a ser cultuado, pois adorado pelo público que acorrerá numeroso ao evento, mídia “comprometida”. Todo um esquema estaria montado e tende à aceleração. Essa tendência hodierna, regada fartamente pelas câmaras onipresentes, favorece o gesto. Intérpretes se submetem. É a lei do mercado. Todavia, tantos da média e nova geração não são atraídos pelo canto das sereias. A meu ver, felizmente. Questão de estilo.

Os links levam aos vídeos. Intercalo atitudes frente à transmissão da mensagem musical.

Vladimir Horowitz (1903-1989)
Schubert-Liszt / Soirée de Vienne – Valse Caprice nº 6

 

Lang Lang (1982- )
Scriabine / Étude op. 8 nº 12 – Patético

A não compreensão do mood do  Estudo – a sinfonia nº 6 de Tchaikovsky também leva o nome de Patética – é clara. O termo patético, ligado aos afetos, estaria mais próximo do drama ou mesmo da tragédia. O gestual totalmente voltado às câmaras contradiz intenções contidas na palavra.

Arturo Benedetto Michelangeli (1920-1995)
Domenico Scarlatti / Sonata in B minor

 

Mitsuko Uchida (1948- )
Mozart / Concerto in D minor / K466

A interpretação, nitidamente voltada às câmaras traduz, inclusive, paradoxos. A pianista está a reger e sendo amplamente filmada. O gestual exagerado não combina com a atitude dos ótimos músicos, inteiramente voltados à partitura. Praticamente não olham para os gestos de Uchida quando a reger! A regência mostra-se, pois, “virtual” a enfatizar a regente-pianista.

Glenn Gould (1932-1982)
J.S.Bach / Partita nº 4 / Sarabanda

 

Jean  Doyen (1907-1982)
Chopin / Fantaisie-impromptu Op.66

 

In today’s post I resume François Servenière’s views on pianists that act dramatically to dazzle audiences, followed by my own comments on the subject. As illustration, a series of links with videos of pianists of different personalities and styles, so that readers can compare them and draw their own conclusions.

 

 

 

O Bom Debate

Uma pedra atirada na água jamais erra o centro do alvo.
Sylvain Tesson
(Aphorismes sous la Lune…)

De meu dileto amigo e frequentador dos blogs, o compositor e pensador francês François Servenière, recebi aos 18 de Janeiro último link concernente à abertura da Filarmônica de Paris. O acontecimento comoveu a cidade e dois pianistas, entre os mais mediáticos do planeta, Hélène Grimaud e Lang Lang, apresentaram-se, respectivamente, sob a direção de Paavo Järvi, em dois dos concertos para piano e orquestra mais festejados do repertório pianístico: em sol de Maurice Ravel e em si bemol menor de Tchaikowsky. Servenière, ao me enviar o link, fez comentários, a louvar intensamente o evento, a expressiva apresentação dos dois intérpretes, mormente a do artista chinês Lang Lang, assim como a recepção pública calorosa.

Pela primeira vez neste espaço insiro e-mails que trocamos semanalmente, François Servenière e eu. Nossa correspondência iniciada em 2008 acentuou-se nestes últimos três anos e já deve beirar as 1.500 páginas. O posicionamento do excelente músico a respeito do concerto levou-me a responder-lhe, após ouvir via internet a apresentação integral. Realmente, um concerto memorável. Estilos diferentes frente à interpretação, confrontos entre a tradição e a modernidade. Escrevi-lhe:

“Ouvi o célebre Concerto de Tchaikowsky. Assim como a amigo, que conhece tão bem a partitura par coeur, trabalhei muito essa obra com Jean Doyen e Marie Thérèze Fourneau em Paris, a visar ao Concurso Tchaikovsky em Moscou (1962). Gosto imenso dessa composição. Lang Lang é um pianista de grande virtuosidade e incríveis malabarismos no teclado. Sua interpretação é envolvente. Contudo, duas atitudes de Lang Lang me incomodam, uma musical e outra gestual, esta última talvez devido à minha faixa etária e minha formação construída na tradição. Meu posicionamento é absolutamente pessoal.

A execução desse magnífico concerto de Tchaikovsky foi estabelecida desde o século XIX a partir de rigorosa tradição, que não impede nulamente a liberdade e a criatividade do intérprete. O que me incomoda na interpretação de Lang Lang é a ‘invenção’ de acentuações não nomeadas pelo autor, assim como a agógica onde a arbitrariedade, em não raras oportunidades, fica evidente. Essas atitudes se dão também em obras de outros autores por ele executadas. Inúmeras vezes, na magnífica performance do pianista, friso, performance, Lang Lang se desvia desses fundamentos tão profundos concernentes ao que o compositor realmente deixou grafado na partitura. O grande mestre e pianista francês Jacques Février escreveu que há mil e uma maneiras de se tocar Debussy e que uma apenas é equivocada, a de trair seu estilo. Mesmo considerando a performance de Lang Lang sob o aspecto pianístico, reitero, esse desvio de pilares da escritura de uma obra me incomoda. Continuo a preferir algumas interpretações desse concerto mais voltadas à grande tradição, mas entendo lindamente o seu entusiasmo verdadeiro e sincero pela performance de Lang Lang. Sob aspecto outro, Claudio Arrau confessava a Joseph Horowitz que, a partir de uma certa idade (cerca dos 50 anos), teve série crise. Era necessário decidir: agradar ao público ou transmitir a mensagem musical. Decidiu pela economia dos gestos, reduzindo sensivelmente o exagero. A gestualidade de Lang Lang empolga o grande público, graças também à enorme virtuosidade e a uma musicalidade estereotipada. Contudo, se nos ativermos unicamente ao som, há lacunas quanto ao rigor de que nos lembra Février. Será que no gesto exagerado encontraríamos o essencial da música? A teatralidade não atingiria o cerne da mensagem musical, “alterando-a”? Pianistas do passado e tantos do presente transmitiram e transmitem música sob o mais absoluto controle físico e espiritual. Hoje, hélas, alguns intérpretes utilizam-se do gesto destinado às câmaras – cada vez mais presentes – ou ao público delirante”.

François Servenière me respondeu enviando longa mensagem. Sua posição reflete a mais absoluta atualidade. Os meios eletrônicos voltados à imagem, a proliferação de vídeos que registram os pormenores antes desprezados, a concorrência, o público, que foi pouco a pouco se habituando com o espetáculo mais interativo, impulsionam a participação mais “arrojada” de certos intérpretes, que sabem estar sendo focalizados in totum. Voltarei a esse quesito no próximo blog.

Segue a mensagem do músico completo, François Servenière:
“Sem dúvida estou entusiasmado pela virtuosidade teatral transmitida pelas câmaras. Não há qualquer dúvida a esse respeito, tenho de ser honesto comigo mesmo. Como espectador, fiquei impactado pela imagem e pelo som. Acredito que o caminho futuro para a transmissão da mensagem renovada – ‘despoeirada’, dirão alguns! – da música clássica deve passar pelos gênios modernos da interpretação como Lang Lang (1982- ), que sabem se utilizar das mídias modernas, comparativamente aos mais antigos, que ficavam fieis à tradição do gesto puro. Essa interpretação  causaria enfado talvez – mercê das novas técnicas de mediação universal – aos espectadores do século XXI, habituados à instantaneidade trepidante da web. Herbert von Karajan (1908-1989) compreendeu o novo paradigma. Tinha um estúdio privado e uma equipe audiovisual que o seguia sempre. Seu sucesso incrível dependia unicamente dessa capacidade de se adaptar ao seu tempo, sempre na frente quanto ao universo musical como sobre as técnicas audiovisuais, carros, aviões, iates, todo um esplendoroso sucesso graças ao seu talento imenso como regente, mas que não teria alcançado a glória sem a personalidade carismática, tão ‘magnificente’ mercê da imagem. Na verdade, podemos admirar suas interpretações sonoras por muitas razões que não encontrariam espaço nessa mensagem; mas sem a sua imagem, teríamos dúvidas se suas interpretações seriam aceitas como superiores às de seus colegas contemporâneos, que possuíam igualmente ‘provas acústicas’ irrefutáveis de seus talentos”. Lembraria que Mario Vargas Llosa, em “La Civilización del espectáculo”, já observaria que, na atualidade mediática, a não promoção individual de reais talentos leva ao desconhecimento público e ao fatal olvido.

Prossegue Servenière: “Na realidade, sua análise refere-se à essência da música, à verdade verdadeira da arte. Concordo sem nenhuma dificuldade. Não obstante, está em jogo a cruel necessidade da teatralização revisitada pela internet e a comunicação visual para a transmissão da mensagem da música clássica nos nossos dias, que condiciona sua sobrevida. Você tem 100.000 razões ao ficar maravilhado diante da tradição de Horowitz (1903-1989) e de Arrau (1903-1991) – o testemunho de Arrau é magnífico e autenticamente puro. Conheço muitas de suas interpretações. Acredito que a tradição se estabelece a partir dessas interpretações, a fim de ser transmitida no futuro como pérolas de referências e padrão que varrerão todas as execuções ‘acessórias’ e mal digeridas. Admiro o seu saber imenso que, à la manière dos seguranças do templo, digo, no aspecto positivo, deve manter a excelência do conhecimento acumulada através de séculos.

Admiro também a capacidade de transmissão de Lang Lang, pois é ele da geração dos 30 anos, pessoas focadas na internet e nos costumes mais recentes da comunicação eletrônica instantânea desde os tempos da mamadeira. Trata-se de ‘nova tradição’ que, revoluciona a nossa: a sua, que é defensor da agógica de Horowitz, a minha, que me entendo como mediador entre as duas gerações, tendo absorvido uma e outra, o que me faz ‘sentar em duas cadeiras’, numa alusão jocosa.  Parece-me desconfortável, aliás, estar entre gerações tão distintas em suas preocupações. Mas todas a gerações assim procederam e fizeram a intermediação entre o antigo e o moderno.

Nada está perdido! Temos de acreditar na capacidade dos jovens em compreender a mensagem dos séculos transmitida pelos antigos. Trata-se de confiança no futuro. Acredito que estarão à altura dos desafios que virão. Certamente com a ajuda de métodos modernos da divulgação do conhecimento, entendendo-se, contudo, que haja uma perda residual nesse transmitir. Nada a fazer! Observe todavia a magia da Wikipedia! Poderíamos supor em 1970 uma tal profusão informativa, mesmo que a sua utilização atual seja caótica, como na verdade acontece com todas mídias revolucionárias!

Posso afirmar que você é o sábio sentado no fundo do templo e que conhece as imensas colunas do saber que faltam a tantos incultos e fundamentalistas! Você observa jovens eleitos talentosos e inteligentes, avançarem com a arrogância da juventude… Você mostra-lhes os caminhos necessários como as sendas da escalada em direção ao cume que eles deverão percorrer para chegar à  sabedoria que apenas o acúmulo dos anos possibilita, à cumeeira da arte… e da vida, por extensão. Os dois movimentos da vida não são incompatíveis e todos nós passamos, você, eu e outrem, de maneiras diferentes, por essa arrogância de supremacia própria da juventude – ‘se a juventude soubesse, se a velhice pudesse’ – que nos fez cometer tantos ‘pecados da juventude’, frutos da somatória de nosso entusiasmo e nosso formidável apetite de vida.

Estando no meio das faixas etárias sua e de Lang Lang, entusiasmo-me tanto pelo seu saber, como tesouro adquirido ao longo das décadas de muito estudo, como pela juventude conquistadora e inteligente de Lang Lang, assim como admiro Usain Bolt de joelhos em seu posto de arranque, mas também os heróis do Olimpo com o olhar perpetrado pelas lendas transmitidas através dos séculos. É tão difícil analisar em tempo real a época que estamos a viver! Obrigado à história” (tradução – J.E.M.).

No próximo blog publicarei a continuação da mensagem de François Servenière. O gesto na interpretação estará em causa, assim como a tradição. Sugerirei ao leitor links que podem servir de comparação. Comentarei o comprometimento do intérprete com o ato musical em sua essência essencial, mas também o gestual voltado à transmissão da mensagem musical na modernidade como expressão “necessária” frente às câmaras, ao marketing, ao público. Tendências distintas.

In this post I transcribe e-mail messages exchanged between the French composer François Servenière and myself, addressing pianists choreographing their playing and the differences between old-school performers and contemporary ones, who belong to the internet era and know the value of drama, instant effect and excess to win public acclaim.

 

 


Leonor Alvim e a Arte Tri-dimensionada

Amor é sentir o universo
Pequeno para tanta estrela
Leonor Alvim

Conheci Leonor Alvim (1935-2012) no final da década de 1970. Chegara ao Brasil, vinda de Portugal, para fixar-se em São Paulo com toda a família após a “Revolução dos Cravos”, de 25 de Abril de 1974. Nesse período, nosso país receberia inúmeras outras famílias portuguesas. Privei da amizade de todo o clã dos Alvins, principalmente de meu saudoso amigo Rui Pereira Alvim, intelectual e poeta, marido de Leonor. Os filhos do casal tornaram-se amigos diários de nossas duas filhas. E concretizava-se uma amizade que perduraria…

Lutando com intrepidez, Leonor operou tripardidamente. Foi professora de piano no Conservatório Musical Brooklin Paulista e no Conservatório de Pouso Alegre em Minas Gerais, dedicar-se-ia com maestria a arte invulgar, grandes painéis tecidos, e escrevia seus poemas veladamente, sem contudo divulgá-los. Agitada, impulsiva a defender suas ideias, era sempre um prazer estético acentuado a discussão com a saudosa Leonor sobre o ato artístico. Diria que foram anos de intensa confraternização, expandida pelo relacionamento fraterno entre nossos filhos. Sob outro contexto, minha mulher Regina e Leonor chegaram a se apresentar várias vezes em recitais de piano a quatro mãos.

Depois dos anos tumultuados pós Revolução, regressaria a Portugal em 1989, a continuar sua atividade como professora na Escola de Música do Conservatório Nacional de Lisboa e a realizar seus já famosos painéis tecidos, expondo-os em alguns espaços referenciais, como a Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, e a Pinacoteca do Estado de São Paulo. Estive umas poucas vezes com Leonor em Lisboa, que por vezes assistiu meus recitais de piano na capital portuguesa. Em uma das noites, após meu recital no Conservatório Nacional de Lisboa, jantamos com o saudoso compositor e amigo Jorge Peixinho em restaurante caro ao notável músico, “Toni dos Bifes”, ao pé do Saldanha. Noitada não esquecida. Dos seus cinco filhos, três permaneceram no Brasil, um deles, Rui, músico, outros dois, Tomás e Luiz, dedicando-se à editoração de livros de arte, sendo que as duas filhas singraram mares. Leonor Alvim Brazão, ativa publicitária e artista plástica nos Estados Unidos, primogênita dos Alvins, foi uma das organizadoras do comovente evento “Obrigado, Sígrido”.

Qual não foi nossa alegria ao recebermos das mãos de Leonor o livro de poemas e ilustrações de panos-collage “Palavras Soltas” (São Paulo, BEI, 2010). Encantaram-me os poemas, pois seus painéis tecidos já me eram familiares e os admirava imenso.

Confesso que jamais Leonor me apresentou um só de seus poemas e apenas conhecia os dons poéticos de Rui, com quem esteve casada por mais de duas décadas. Literatura portuguesa era a temática das conversas diárias mantidas com Rui (Os Alvins eram nossos vizinhos), pois com Leonor música e painéis preponderavam em nossos diálogos.

A poesia de Leonor Alvim tem a sua impressão digital. Aquela mulher artista que caminhava sempre agitada assim procedendo durante toda a existência, na busca frenética de horizontes não vislumbrados, mas que sabia entender a sua prole à sua maneira, refugiar-se-ia no solilóquio, recanto íntimo insondável para os outros. Anos de convívio e a criação poética de Leonor manteve-se não revelada para este amigo confidente, mormente naquele período de intensas discussões em torno da arte.

Os poemas de Leonor se processam em situações confluentes. A metáfora lhe é familiar e sabe dela servir-se com maestria. O amálgama panos-collage e poema se dá a todo instante. Em “Panos”, revela origens:

Panos

“A minha Mãe ensinou viver sem a cópia da obrigação

Onde os tecidos viraram a pele que me cobre, a sensação
Feita posse da luz que os ilumina, uma longa estrada
Brincando no espaço que se recria
Caleidoscópio de outra dimensão

A minha Mãe ensinou-me a ser livre
A ser um livro de capas da minha pele
Que ambas costuramos a vida inteira”

No poema “Noite”, Leonor ratifica a trajetória “Sou noite na madrugada e a minha pele é a Terra!”. Essa “pele”, elaborada no útero, não sofre metaforfose, pois revelaria a integração plena e harmoniosa com todo o trabalho vindouro, a feitura dos painéis tecidos. Em cada tira, na junção dos tecidos, é essa pele que, por osmose, penetra a obra de arte multicolorida – sua alma assim não era? -, intrigando o observador, mercê do propósito da artista de revelar segredos, mas a guardar mistérios, esses insondáveis. Impossível não sentir impacto frente aos seus painéis tecidos, que servem a tantas interpretações. O filósofo e musicólogo francês Vladimir Jankélévitch já escrevia que o segredo pode ser descoberto, jamais o mistério.

Não obstante imagens figurativas e abstratas fundirem-se tantas vezes num delírio onírico, seria a leitura do poema que traria subsídios ao observador para  apreender ao menos uma centelha das verdadeiras intenções da artista.

Em “Amanhecer” Leonor capta a explosão da natureza, dissipados os resquícios da penumbra, aspiração em direção à luz numa visão heliotrópica. Bastam uns versos para a apreensão do todo:

Amanhecer

“Em tons ciclâmen e rosa tinge a noite seu manto de sombras
Lilases e magenta espalham-se sobre os prados
Que se espreguiçam sobre a Terra
Brilhos sob os véus que se esboroam
Nos sons do amanhecer

Raios de luz acordam a Natureza
Deslizam no espaço que se dilata, freme
A claridade avança e mistura os timbres da aurora
Às sombras da Noite… que se dilui!

Mítica luz que se espalha pelo espaço
Azul turquesa, preciosa gema, cristal facetado
Desta divindade que brilha ao nascer do Sol”

A noção do regresso, seja ele geográfico ou afetivo, move-a em direção ao geotrópico, característica visceral em tantos painéis:

Torno à velha casa donde parti

Torno à velha casa donde parti
À minha volta apenas o mar e a terra que me rodeia
O ar espesso de ausências sorvo – banquete amargo de saudades
Ser adiado, vida contida que no entanto jorra
Destes campos e colinas que me cercam
Fui embora… só este corpo resta, esvaziada a sede
Que me devora
Livre e solta, partirei agora. Outros espaços aguardam
Sem som, sem cor
Só a água clara que brota de meus olhos em prantos já antigos
Torno à velha casa donde parti outrora tão só e triste como agora

Como não pensar no soneto “Visita à Casa Paterna”, de Luiz Guimarães Junior (1844-1898), nascido no Rio de Janeiro e falecido em Lisboa?  “Como a ave que volta ao ninho antigo, / Depois de um longo e tenebroso inverno, / Eu quis também rever o lar paterno, / O meu primeiro e virginal abrigo: // Entrei. Um gênio carinhoso e amigo, / O fantasma talvez do amor materno, / Tomou-me as mãos,-olhou-me grave e terno, /E, passo a passo, caminhou comigo.// Era esta a sala (oh! se me lembro! e quanto!) / Em que, da luz noturna à claridade, / Minhas irmãs e minha Mãe… O pranto // Jorrou-me em ondas… Resistir quem há-de? / Uma ilusão gemia em cada canto, / Chorava em cada canto uma saudade.” O regresso não passaria impune nos dois poemas.

Em texto curto e exemplar, “A Patria dentro da Pátria”, a imensa poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004),  nascida no Porto como Leonor Alvim, já escrevia: “Porque ali é a cidade onde pela primeira vez encontrei os rostos de silêncio e de paciência cuja interrogação permanece. Porque ali é o lugar onde para mim começam todos os maravilhamentos e todas as angústias”. Seria essa “O Porto” que faz Leonor tão bem expressar na série de painéis tecidos a representar o Douro: “Não vejo mais o espaço, sou cada uma, áspera, lúbrica / Violenta ou doce feito mel / Gerada neste berço de família de pedras em cadeia / Esculpidas pela Natureza”.

Privilegiados os que conheceram Leonor Alvim, que perdurará através de seus painéis carregados de emoção, de lirismo e da força interior. Seus poemas seguirão como a segunda via, necessária, imperiosa até, nessa integração plena cor e palavra, vida e o amor.

From Leonor Alvim Brazão – who organized the event “Obrigado, Sígrido”- I have received the poetry book “Palavras Soltas” (Loose Words), written by her mother, the late Leonor Alvim, a dear friend who lived in São Paulo for some years, fleeing from the Carnation Revolution (1974) in Portugal. Leonor was a multifaceted artist: talented pianist and teacher, visual artist (her fabric collages are spread through private and public collections in various countries) and also a poet. This last talent was unknown to me, though we’ve been friends for more than twenty years. This post is a brief appreciation of her book, in which the amalgamation between her paneaux collages and her thought-provoking poetic language is a constant, as evidenced by the book’s magnificent illustrations. Leonor passed away in 2012, but she will remain with us through her collages charged with emotion, lyricism and inner strength. Her poems are a second path, necessary, even imperative, for merging into a single art color-word, love-life.