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Edição Brasileira de Livro Lançado em Coimbra

As agências internacionais de concertos
apoderaram-se inteiramente da nossa vida musical,
onde colocam (por vezes a peso de ouro) o êxito acumulado do “centro”.
E nem sequer passa pela cabeça das instituições e dos seus “programadores”
que Brasil e Portugal, juntos,
bem podiam criar uma nova dinâmica de efectivo intercâmbio
que se projectasse não só no espaço cultural luso-brasileiro, mas também fora dele.
O mesmo se passa do outro lado do Atlântico,
onde o repertório e a programação
revelam notório desinteresse por compositores e intérpretes portugueses.
Mário Vieira de Carvalho
(Prefácio:  A Jangada de Pedra)
Cascais, 26 de Fevereiro de 2011

Confesso que me comoveu a acolhida que a Editora da Universidade de São Paulo (Edusp) deu ao meu livro editado em 2011 pela Imprensa da Universidade de Coimbra (IUC). Tendo-se esgotada a edição promovida pela lendária universidade portuguesa, o lançamento da obra no Brasil é motivo a mais para uma aproximação entre duas culturas musicais que pouco interagem. Para a edição brasileira conservou-se o prefácio do insigne professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa, Mário Vieira de Carvalho, e houve a necessidade de determinadas adaptações ortográficas de meus textos que, na realidade, minimamente intervêm no todo do livro. Sob aspecto outro, capa e contracapa tiveram nova apresentação. A presente edição mantém CD com obras escolhidas de notáveis compositores portugueses: Carlos Seixas, Francisco de Lacerda, Fernando Lopes-Graça e Jorge Peixinho. Gravei-as na Bélgica, Portugal e Bulgária para diversos selos.

Concerto – guia mensal de música clássica -, em sua edição de Maio, publica artigo do ilustre maestro e membro da Academia Paulista de Letras, Júlio Medaglia, sobre o livro e apresenta em um box pequeno trecho de meu texto de abertura. Transcrevo-os para o leitor.

Júlio Medaglia em Atrás da Pauta, coluna mensal do maestro, escreve: “Sentados ao computador, dando tratos à bola para encontrar temas para meu programa de fim de tarde na Rádio Cultura, ocorreu-me o nome de um compositor português pouco lembrado e tocado: Frei Jacinto. É que toda sua obra, com raríssimas exceções, foi destruída no terremoto de Lisboa de 1755 – ele teria nascido em 1712. Entrei no YouTube e encontrei uma Sonata em ré menor para cravo. Fiquei boquiaberto. A composição possui qualidade técnica, ousadia e beleza comparáveis às de qualquer das suítes de Bach para o instrumento. Procurei, então, mais informações a respeito, mas os dados que encontrei eram os mesmos que eu já tinha. Numa reação de fazer, talvez, um ‘mea culpa’ no sentido de encontrar outros autores da Santa Terrinha, possivelmente também menosprezados pela história ou intérpretes, iniciei uma busca de dados sobre a música portuguesa. Sempre soubemos do elevado interesse e do alto nível musical da corte daquele país. E o Brasil se beneficiou com isso. Desde meados do século XVIII, praticava-se nesta colônia extrativista, muito distante da ‘civilização europeia’, a mais sofisticada música clássica, feita, aliás, por nativos, negros e mulatos, escravos ou alforriados. O próprio D. João VI, no dia que aqui chegou, levou um susto ao assistir à execução de uma obra de um padre, filho de escravos, um ‘Haydn negro’ de nível internacional.

Como por encanto, porém, naquele momento chegava à minha casa, não pela internet, mas pelo correio, um precioso livro de estudos escrito pelo nosso grande pianista José Eduardo Martins: Impressões sobre a Música Portuguesa, editado pelas Universidades de São Paulo e de Coimbra.

Há décadas acompanho e admiro o trabalho de José Eduardo, um dos raros instrumentistas deste país que vê a música como parte de um rico e complexo emaranhado cultural, e não como um simples malabarismo ao teclado (*). Cada vez que recebo uma notícia dele é sempre uma agradável surpresa. Seja um estudo musicológico, seja uma nova gravação entre as mais de duas dezenas (seis só de música portuguesa) por ele realizadas aqui, em Portugal, na Bélgica, na Bulgária ou sei lá onde, José Eduardo contribui sobremaneira para a dilatação da cultura e da literatura musical em nosso país em elevado e consciente nível profissional.

Impressões sobre a Música Portuguesa, que está sendo lançado neste mês pela Edusp, oferece um panorama abrangente da criação musical em Portugal. Apoiado em quatro colunas mestras da criação, ele abre o leque de análise para os mais variados assuntos, composicionais, interpretativos, históricos ou profissionais, em um resultado das 49 viagens de pesquisas e atuação pianística do autor naquela vida musical. Impressiona a densidade dos estudos de obras e características de interpretação como Carlos Seixas, Scarlatti português e mais importante compositor barroco daquele país; Francisco de Lacerda, impressionista amigo íntimo de Debussy; Fernando Lopes-Graça, o maior compositor português do século XX, plenamente integrado na estética contemporânea e ao mesmo tempo preocupado com a ação social da música, o que lhe valeu sérias dificuldades em seu país, tantos anos sob regimes ditatoriais; e Jorge Peixinho, que se envolveu com as vanguardas do final do século XX, particularmente as da Neue Musik, dos dodecafonismos aos aleatorismos de então.

E para que a enxurrada de informações não fique só nos textos, a edição traz também um CD com obras dos compositores analisados, interpretados pelo próprio José Eduardo Martins.

Esta publicação vai contribuir decisivamente para que intérpretes e estudiosos revejam e ampliem relações com a rica vida musical portuguesa, que, apesar de nossa relação umbilical com aquele país, nunca foi devidamente cultivada.

(*) Leia também J.E.Martins, un pianiste brésilien, coleção de entrevistas que resumem suas ideias (série Témoignages nº 4), publicação da Universidade Sorbonne de Paris”.

Gentilmente, Júlio Medaglia selecionou trecho do livro, que insiro neste espaço:

“O relacionamento de um músico com a panorâmica musical de uma nação pode ser estabelecido através das mais diversas vertentes: a admiração pelas culturas de um povo, motivada por estágio curto ou prolongado, mas impregnante pela intensidade; laços que ratificam o genético e o atávico; apreensão espontânea, muitas vezes independendo da presença física do estudioso; idealização de um modelo cultural, a emergir em determinado momento, movido pelas mais variadas causas. Seriam estas, basicamente, as amarras para que haja a relação.

Os 75 anos de existência permitem a liberdade da revisão parcial, do olhar o passado, de relembrar trajetórias, a fim de buscar melhor entender o porquê de uma ligação amorosa com personagens de uma nação e com a geografia acarinhada de um país. Essa promenade física, musical e espiritual levar-me-ia a captar tenuemente parcelas das culturas de Portugal. Poder-se-ia mencionar, como estímulo maior, sempre, a sanguinidade, a carregar consigo moléculas essenciais às aproximações posteriores”.

“Impressões sobre a música portuguesa” será lançado na Livraria da Vila (al.Lorena, 1731, São Paulo, dia 13 de Maio, às 18h30, precedido por debate em torno do livro entre o maestro Júlio Medaglia e o autor. Seria um prazer enorme contar com a presença de leitores que têm acompanhado meus posts ininterruptos desde Março de 2007.

Abaixo, seleção de faixas do CD que acompanha o livro, com José Eduardo Martin ao piano. Clique para ouvir.

On the release of my book “Impressões sobre a Música Portuguesa” (Impressions on Portuguese Music), originally published by Coimbra University Press and now being released by São Paulo University Press. The launch of the book will be on May 13, preceded by a discussion mediated by conductor Julio Medaglia.

 

 

Temas Esclarecedores

A vida de Debussy não tem nada de romanesco:
é aquela de um criador que sacrificou quase tudo por sua obra.
François Lesure

É comum a reunião de artigos apresentados em congressos, seminários e colóquios em formatações variadas, livros, revistas e online. Sempre me posicionei a respeito da qualidade homogênea desses trabalhos. É difícil mantê-la. Se estudos de grande importância são publicados, escritos por autênticos especialistas, há aqueles que, aceitos, denotam a índole carreirista daquele que escreve, não sendo difícil apreender intenções. Infelizmente, essa prática faz parte do todo. A depender da respeitabilidade internacional dos organizadores, resultados relevantes serão alcançados.

Comemorou-se em 2012 o sesquicentenário de nascimento de Claude Debussy. Um colóquio foi realizado em Paris e reuniu cerca de quarenta estudiosos. “Regards sur Debussy” (France, Fayard, 2013), sob a direção das competentes Myriam Chimènes e Alexandra Laederich, traz à público a maioria das contribuições apresentadas durante o colóquio. O prefácio substancioso de Pierre Boulez evidencia seu compromisso, desde o aprendizado, com a obra de Debussy. Estuda-a profundamente. “Quando analisamos o estilo harmônico de Debussy, há muito a se descobrir e é a partir desse momento que eu fiz minhas descobertas”. Entendeu sempre Debussy como o “único músico francês verdadeiramente universal”. Tem interesse a observação de Pierre Boulez sobre obras distanciadas de mais de uma década, pois “não discirno o que liga conceitualmente obras como Hommage à Rameau e as três últimas Sonates“. Para ele, Hommage à Rameau (2ª peça do 1º caderno de Images para piano- 1904) é “puramente Debussy”, sendo que “as Sonatas são mais curtas, mais concentradas”. A introdução estaria reservada a Myriam Chimènes e a Alexandra Laederich, aquela, secretária geral do Centre de documentation Claude Debussy, membro do comité de redação dos Cahiers Debussy e do comité científico da Edição crítica das obras completas de Debussy; esta, conservadora do Centre de Documentation Claude Debussy, membro do comité de redação dos Cahiers Debussy e responsável pela coleção fac-similada de manuscritos de Debussy editados pelo Centre de documentation Claude Debussy. Discorrem sumariamente sobre cada artigo publicado e evidenciam a unidade que buscaram encontrar.

A literatura sobre o compositor francês Claude Debussy é substanciosa e, em mais de um século de estudos, tem apresentado constantemente caminhos novos, discussões enriquecedoras a respeito de temas já conhecidos e ratificação mais encorpada de estudos realizados ao longo dos decênios.

A leitura de “Regards sur Debussy” é de grande interesse, pois o livro está subdividido em seções, a abordar aspectos fulcrais para a compreensão da criação de Claude Debussy. Política e Literatura, Teatro e Melodias, Interpretações, Pensar a Composição, Recepção e Herança abrigam os muitos artigos pertinentes. Devido ao espaço a que me proponho para o post semanal, pormenorizar-me-ei em alguns, que estariam mais próximos à minha área de estudos relacionados a Debussy.

Em “Debussy en Grande Guerre”, Annette Becker aborda o período crucial na vida do compositor. À doença fatal desse período soma-se a 1ª Grande Guerra (1914-1918). A correspondência de Debussy é reveladora e, à medida que obras da maior importância vão sendo criadas, frases do compositor não deixam dúvidas sobre seu estado de espírito. A articulista apreende a tragédia que se abaterá sobre Debussy. Tempos difíceis para a França submetida ao racionamento, o que não impede certa ironia do compositor, que reclama da  “falta de munições, ou seja, falta de papel para escrever música”, ou a menção a seu piano alemão Bechstein como presa de guerra, que precisa ser afinado para estar “em condições de soar à francesa”. A leitura e interpretação dessa rica correspondência em período crítico, físico e mental, corrobora o entendimento da feitura de obras essenciais, como as três Sonates, En Blanc et Noir para dois pianos e, sobretudo, os 12 Études, obra maior para piano de Debussy e fundamental na literatura pianística universal.

Debussy mostrar-se-ia discreto frente aos primeiros passos da indústria gramofônica. Data de 1904 sua primeira incursão. Apesar da precariedade da aparelhagem do início do século XX, é possível, através das gravações realizadas por Debussy ou de intérpretes que com ele conviveram,  apreender essencialidades voltadas à interpretação. Em artigo que escrevi para os “Cahiers Debussy” (“La technique pianistique et les doigtés dans les Études”. Paris, Centre de Documentation Claude Debussy, nº 19, 1995) salientei a facilidade que Debussy apresentava frente à técnica das mãos alternadas, focalizando Gradus ad Parnasum, da suíte Children’s Corner, quando o pianista compositor “dispara” do compasso 57 até o final en animant peu à peu, que apresenta desenho repartido entre as mãos nas proporções 3/1 e 2/2 (nº de notas para cada mão). O processo alternado é típico entre pianistas que improvisam e Debussy sabia fazê-lo. Revela esse registro fonográfico qualidades pianísticas do compositor. Quatro artigos, assinados por Élizabeth Giuliani, David Grayson, Roy Howat e Mylène Dubiau-Feuillerac, captam diversos aspectos relativos às gravações primevas da obra de Debussy. Temos desde a abordagem histórica à observação auditiva através de Debussy pianista e a primeira intérprete da ópera Pélleas et Mélisande, Mary Garden. Nesse quesito, Roy Howat (“Les enregistrements historiques des mélodies de Debussy”) estabelece interessantes parâmetros, que fazem melhor entender como o compositor realizava musicalmente determinadas frases musicais juntamente com Mary Garden. Sob outra égide, Élizabeth Giuliani (“Debussy et le disque”) enumera com acuidade desde as primeiras gravações da obra de Debussy, passando pelas 78 rotações, long plays e as mais recentes, tendo as revistas discográficas ajudado a “santificar” (segundo ela) certos intérpretes consagrados. Mencionando a discografia catalogada por Margaret Cobb, chama a atenção que, de 1309 gravações, 512 referem-se à obra para piano. E nem contemos as tantas gravações com obras de Debussy interpretadas por músicos notáveis, mas que não são mediáticos, lançadas por selos representativos, mas menores. Tema recorrente, pois menciono o fato em posts bem anteriores.

O artigo de Marie Duchêne-Thégarid e Diane Fanjul tem interesse a partir de uma reavaliação que pode ser feita da tradição interpretativa da obra de Debussy para piano “estabelecida” pelo Conservatório de Paris de 1920 a 1960. As autoras estariam preocupadas na maneira como alguns intérpretes-professores de renome, que receberam, direta ou indiretamente, conselhos do compositor, transmitiram a tradição nas salas do Conservatório. Sob aspecto outro, houve período em que as criações de Debussy, salvo as conhecidíssimas do público, não fizeram parte dos programas da famosa Escola, em parte pelo “desconhecimento” de alguns mestres quanto às novas conquistas estabelecidas por Debussy, que se mostravam diferenciadas frente ao vade mecum do repertório tradicional.

Paolo Dal Molin se debruça sobre tema fundamental, os esboços das últimas obras. Menciona frase do saudoso François Lesure: “Debussy só iniciava a composição de uma obra quando a tinha por inteiro em sua cabeça, e sem nenhum auxílio instrumental. No entanto, o tempo da incubação mental… era habitualmente muito longo…”. Dal Molin estabelece a relação entre o esboço e a definição de uma obra e incontáveis exemplos dão conta do preciosismo do compositor quanto à elaboração de uma criação. Estou a me lembrar de que os esboços autógrafos dos Études para piano de Debussy foram-me fundamentais para a gravação que realizei em 2005 para o selo belga De Rode Pomp. Sob outro aspecto, Debussy sugere aos intérpretes a busca dos dedilhados, como faziam os cravistas franceses do século XVIII, daí não ter colocado qualquer indicação a esse respeito na edição impressa pela Durand, advertindo com certa ironia no prefácio: cherchons nos doigtés. Contudo, pouquíssimas indicações quanto a esse mister podem ser encontradas nos esboços (Claude Debussy. Études pour le piano – Fac-simile des esquisses autographes (1915). Genève, Minkoff, 1989). Voltando ao artigo de Dal Molin, este adverte que a publicação facsimilada de uma obra esboçada de Debussy tem também a força de ser  “considerada como testemunho de um processo de composição que pode ser complexo”. Creio que o artigo em questão é um dos mais substantivos de “Regards sur Debussy”.

Richard Langham Smith apresenta tema de enorme importância, “L’art de Préluder. Quelques questions de taxonomie chez Debussy”. O autor busca entender títulos empregados pelo compositor em suas obras. Taxonomia, a parte da gramática que se preocupa com a classificação das palavras, adequa-se às preocupações de Langham Smith. Curiosa a resposta de Debussy a uma pergunta sobre o significado de uma de suas mais conhecidas criações para piano, L’Isle Joyeuse: “Se perguntássemos a François Couperin sobre Les barricades mystérieuses – uma de suas mais adoráveis peças para cravo – o que ele teria respondido”? Langham Smith classifica os títulos debussynianos, sentindo aqueles que “por vezes ambíguos, necessitam para a compreensão de um conhecimento do contexto, como Voiles, Bruyères ou Brouillards. Há outros em que seria necessário buscar um poema, um evento ou um lugar: La Cathédrale engloutie, La Puerta de Vino e, sobretudo, La Fille aux Cheveux de Lin“. O articulista preocupa-se com a ligação desses títulos sugestivos a poetas como Leconte de Lisle, Théodore de Banville e, principalmente, Stéphane Mallarmé. Traça comparações de interesse entre Diane au bois e Prélude à l’après midi d’un faune, esta uma das mais célebres obras de Debussy.

Sempre que me deparo com a palavra reavaliação histórica busco entendê-la com precauções necessárias, mas sem parti pris. Julien Dubruque e Jean-Claire Vançon, em “Pour une réevaluation critique du ramisme de Debussy”, estendem-se, durante todo o bem documentado artigo, sobre os escritos de Debussy em que Rameau é citado e mais o contexto musical ao qual estariam acoplados. Não me parece minimamente difícil perceber nítida idiossincrasia dos autores por Jean-Philippe Rameau. Já de início mencionam artigo de Anya Suschitzky (2002) em que a estudiosa afirma ter sido Debussy “o ‘ramista’ mais entusiasta de sua geração”. Antolha-se-me que os autores “interpretam” todas as menções de Debussy, buscando adequá-las ao “pré-julgamento”. Essa prática, aliás, pode ser aplicada a qualquer criador do passado, em qualquer área do conhecimento, a depender das intenções de “pesquisadores”.

François Anselmini aborda tema que sempre despertou interesse, “Incarner le génie français – Alfred Cortot et Claude Debussy”. Percorre desde um certo mal estar de Debussy frente ao então jovem pianista e regente, admirador confesso do repertório alemão, até uma aproximação maior e, por fim, o grande contributo do pianista nas décadas após a morte do compositor, não apenas apresentando, mas a gravar na excelência interpretativa algumas de suas mais importantes criações.

“Regards sur Debussy” têm um dedicatário, François Lesure, que foi diretor do departamento de Música da Bibliothèque Nationale de 1970 até sua aposentadoria, autor de livros referenciais sobre Debussy e, consensualmente, o nome mais expressivo entre seus especialistas da segunda metade do século XX. Após enumerarem com precisão o contributo extraordinário do notável musicólogo, de 1962 até sua morte em 2001, Myriam Chimènes e Alexandra Laederich finalizam: “Felizes beneficiários dos caminhos que ele abriu, todos os debussistas são hoje devedores a François Lesure, legitimando a homenagem que este livro lhe tributa”. De minha parte, tenho a maior gratidão pelo ilustre e saudoso amigo que, de 1981 até sua morte, jamais deixou de me dar incentivo, tanto para os vários artigos que escrevi para os “Cahiers Debussy”, como a prefaciar meus CDs contendo obras de Francisco de Lacerda e Debussy e a integral para cravo – executada ao piano – de Jean-Philippe Rameau, divulgados pelo selo De Rode Pomp da Bélgica. Convidou-me para seminários na École Pratique des Hautes Études e esteve por três vezes no Brasil, sendo que a última a participar de júri de um dos concursos a que me submeti na Universidade de São Paulo, que teve como tema “O idiomático técnico-pianístico na obra de Claude Debussy”. Merecidíssima a homenagem prestada pelas diretoras de “Regards sur Debussy”.

In 2012, a symposium was held in Paris, celebrating the 150th anniversary of Debussy’s birth. Some of the works presented were gathered in the book “Regards sur Debussy”, a collection of writings by different authors, each one addressing different aspects of the French composer’s work and life. Under the direction of Myriam Chimènes and Alexandra Laederich, respectively General Secretary and Curator of the Centre de Documentation Claude Debussy, the book was dedicated to the memory of its founder, musicologist François Lesure. In this post I give my views on some of the articles. For reasons of space, it was impossible to address all of them.

 

 

 

 

 

 

 

 

Incontáveis Tendências

“Os sons não têm significação que lhes seja exterior.
Somente por vagas analogias podemos comparar
tal movimento musical a qualquer outro movimento”.
“Todas as leis da linguagem musical,
todas as regras que constituem o ‘métier’ do compositor,
nada são se não for relacionada à realidade sonora,
a existência concreta da música interpretada.
André Souris (1899-1970)

Marcelo foi direto à questão: “Professor, o que o senhor quis dizer ao colocar como epígrafe do último post a frase de Voltaire ‘a escuta se forma pouco a pouco, e três ou quatro gerações modificam os ouvidos de uma nação’ “? Aluno da década de 1980, Marcelo foi discípulo atento, que completaria curso na França após a graduação na USP. Convidei-o para um curto no local onde nos encontrávamos, após quase trinta anos sem vê-lo ou saber notícias suas. Dedica-se a uma atividade não musical, casou-se e tem prole que o entusiasma, mas não deixa de estudar piano, tampouco de estar atualizado sobre o que se passa na esfera musical. Primeiramente expliquei-lhe que em uma de suas missivas, que se contam às centenas, o grande François-Marie Arouet, que se tornaria conhecido como Voltaire, filósofo iluminista francês, referia-se à mudança de gosto da ópera francesa. Segundo ele, Jean-Baptiste Lully (1632-1687) “deu-nos o senso da escuta que nós não tínhamos. Mas Rameau o aperfeiçoou”. Tratava-se de Jean-Philippe Rameau (1683-1764).

Conversa iniciada, fomos divagando sobre o tema. A certa altura Marcelo me confessou que, mais de uma geração passada após nosso último encontro, deixara de ter afinidade com a música contemporânea, mormente a eletroacústica, e que se perde frente às numerosas tendências existentes. Era um adepto. Acreditando ser preconceituoso, foi a várias apresentações e perdeu-se mais ainda diante de propostas “antagônicas”, como afirmou. Comentei que a quantidade exagerada de autores de música atual se deve em parte àquilo que o compositor francês Serge Nigg (1924-2008) – primeiro a compor música dodecafônica em França – dizia. Segundo ele, estava sempre a ser apresentado a novos compositores, dado o fato de que todos assim se consideravam.

Durante nossa conversa sobre temas voltados preferencialmente à música atual mencionei um livro que lera em 1954, pois me interessava transmitir a Marcelo deduções relevantes. Tratava-se da primeira biografia sobre o J.S.Bach, escrita por Johann Nicolaus Forkel, nascido um ano antes da morte do biografado, ocorrida em 1750. Vertido para o espanhol (“Juan Sebastian Bach”. Mexico, Fondo de Cultura Económica, 1950), apresenta ao final três apêndices, Catálogo, Los Claves e El Clave Temperado, esses dois escritos por um dos mais extraordinários musicólogos do século XX, Adolfo Salazar (1890-1958). Ao abordar o Cravo Bem Temperado, de Bach, fá-lo com precisão, a evidenciar a determinação de Bach em confirmar a denominada “afinação igual”, um passo monumental em termos do caminhar musical. Os dois volumes da obra, contendo cada um 24 Prelúdios e Fugas, percorrem as 24 tonalidades maiores e menores e tem-se nessa gigantesca criação um dos pilares da composição musical. Como salienta Salazar, “a antiga afinação ‘acústica’ ou ‘física’, ‘natural’ ou ‘exata’ chega a se constituir paulatinamente em uma trava para a evolução musical, estorvo que era necessário debelar”. Apesar de debruçamentos anteriores sobre a matéria, Bach encerraria a polêmica com os dois livros do CBT. Quando do segundo volume, de 1744, portanto 22 anos após o primeiro, o temperamento igual já estava consagrado. Nele considera-se a afinação a partir dos doze semitons da escala, tornando, como exemplo, iguais na afinação o dó sustenido e o ré bemol, notas enarmônicas. Pela afinação “exata” anterior, verdadeiro dogma a obedecer a relações matemáticas da escala, existe uma diferença mínima na proporção de 80/81 entre os sons enarmônicos citados.

No apêndice em questão, Salazar apresenta a tabela da série harmônica. Desde a antiga Grécia já era estudada a vibração de uma corda esticada, que produz determinado som. Pitágoras (século VI a.C.), filósofo e matemático, notabilizar-se-ia nesses estudos a partir do monocórdio, instrumento primitivo constituído de uma caixa de ressonância e de uma corda apenas. Pitágoras demonstraria que a altura de um som é inversamente proporcional ao comprimento de uma corda. Dividindo-a ao meio e ao ser tocada a corda, teremos a oitava superior do som inicial. Dividindo-a em três partes e sendo novamente tocada (utilizavam um plectro), o terço da corda esticada resulta na quinta e assim sucessivamente (vide ilustração). Suas conclusões atravessaram os séculos.

Voltando à nossa conversa, Marcelo me perguntou a razão das incontáveis tendências da música contemporânea, mormente aquela voltada aos processos eletroacústicos. Foi quando mencionei a tabela da série harmônica apresentada no apêndice citado em que, à medida que a distância  intervalar diminui, Salazar acopla-a à própria evolução da música ocidental. Essa interessante observação, não inédita, estabelece o tempo dos períodos da história da música a partir dessas “abreviações” dos intervalos. O leitor, mesmo sem conhecimento da escrita musical, pode acompanhar o processo através da ilustração. Estaria configurada a duração de práticas a partir do período histórico: monodia, polifonia, formação dos acordes, escalas várias e os microtons. “E daí, professor”? indagou Marcelo. Expliquei-lhe que todos os períodos históricos poderiam ter “explicação” considerando-se essas deduções. Se técnicas composicionais estabelecidas tiveram milênios, séculos e decênios dando a elas uma continuação ou transição cada vez mais abreviada, com os microtons e as infindáveis outras vibrações “infinitesimais” já não poderíamos sequer falar em anos ou meses. Seria nessa abreviação temporal acelerada que a metafórica Torre de Babel torna-se visível e… audível. Tem ela sido citada amiúde. Quantas não são as incontáveis tendências da música contemporânea acústica e mormente a da eletroacústica? Aquela destinada aos instrumentos com “sons fabricados pelo homem, produzidos por sua ação, e que ele pode modificar à vontade”, segundo Nigg, esta para aparelhagem eletrônica. Estamos diante de incessantes novos processos, afeitos prioritariamente à eletroacústica, quase todos explicados teoricamente por seus “criadores”. Isso é bom, isso é um mal? Apenas consequência da atualidade em que, anualmente, processos impensáveis anteriormente na área da tecnologia passam e são substituídos rapidamente por outros. Numa mesma cidade, procedimentos composicionais hodiernos não têm sequer homogeneidade escritural, mercê da diversidade e prolixidade. “Essas obras permanecerão”? pergunta-me Marcelo. Temo que não, pois o “compositor” afeito à tecnologia, tantas vezes sentindo-se “profeta”, está geralmente ligado à Academia. Subvenções de Fundações, Institutos de Fomento e Universidades dão-lhe guarida, pois tecnologia abre portas. Obra apresentada será logo mais substituída por outra já encomendada. Dificilmente o passo atrás será dado, pois importa, geralmente, o “inédito”. Como a tecnologia é rápida caminhante, aparelhagens do passado recente são esquecidas pelas do presente e, logo a seguir, estas também seguirão o mesmo destino, pois outras mais avançadas surgirão. Seria possível entender que a ininteligibilidade para o grande público dessas obras experimentais façam-nas permanecer em guetos precisos.

“Haveria solução”? indaga-me Marcelo. Acredito que a pulverização natural, a partir dos microtons da ilustração de 1950, é também sem retorno. Competentes e curiosos continuarão nesse caminho que, paradoxalmente, tem resultados surpreendentes em filmes, onde efeitos especiais exigem sonorização especial. A imagem dá à música eletroacústica uma dimensão interessante. Meu dileto amigo e compositor François Servenière, que praticou alpinismo e ainda pratica vela, escreveu-me recentemente a dizer que a tragédia na montanha ou no mar, na vida real, não tem a aura que o “público” gostaria, pois falta-lhe o som estéreo dos filmes que acompanha esses acidentes. Numa outra direção, creio que tantos são aqueles que romperam ou não aderiram aos muitos processos nessa área tecnológica. Compõem de maneira a criar obras inteligíveis, resultando composições de muito interesse, basicamente utilizando-se do arcabouço instrumental acústico ditado pela tradição e de formas e gêneros “reorganizados”. Na Europa, principalmente, tenho conhecimento de compositores super talentosos que estão a trilhar esse caminho. Sob outra égide, a literatura não é um constante renovar a partir da senda já traçada? A escrita é a mesma há séculos, muda-se o conteúdo. Não há ruptura, palavra muito apreciada, aliás, na esfera da “criação” musical.

Antes de partirmos, Marcelo comentou que “gostaria de anotar o nome de alguns compositores que escrevem para instrumentos acústicos sem esquecer o passado”. Mencionei alguns vivos: Gilberto Mendes, Ricardo Tacuchian, Mario Ficarelli, Paulo Costa Lima no Brasil, Eurico Carrapatoso em Portugal, François Servenière na França, Gheorghi Arnaoudov na Bulgária, Aleksandër Peçi na Albânia, Frédéric Devreese e Lucien Posman na Bélgica, entre tantos outros. Todos com escritas diferenciadas, mas não se esquecendo do passado. Muitas de suas obras podem ser encontradas no YouTube. Conversa revigorante.

I met a former student who I had not seen since the 1980s and during a chat over a cup of coffee we discussed musical trends through time. As a curiosity, I mentioned the harmonic series that, according to the great Spanish musicologist Adolfo Salazar, explain the length of the various historical periods.