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Gesto Relevante que não Pode Ser Esquecido

Pensarem Brasil e Portugal como uma imensa possibilidade
de formação, investigação e intercâmbio artísticos.
Pensarem-se também como parte integrante do mundo lusófono e íbero-americano,
que continua a esperar em vão pelo “evento” que tarda
(“evento” entendido como estratégia ou atitude essencialmente cultural).
Há que soltar a “jangada de pedra” das amarras da sua condição periférica
e trazê-la de volta carregada de potencial contra-hegemónico.
Mário Vieira de Carvalho (26/02/2011)

Em um café de minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, que apresenta ultimamente sinais de degradação mercê do descaso público, estava a conversar com amigo bem articulado em sua ligação com o meio que cultua no Brasil música erudita, de concerto ou clássica. Esse encontro se deu há alguns anos. Eu acabara de retornar de digressão anual às terras lusíadas. Perguntei-lhe sobre o que pensava da música portuguesa. Respondeu-me que dela conhecia apenas respeitada pianista nascida em Portugal, que nos visita sempre atendendo a convites das sociedades de concerto de São Paulo. Insisti: “sobre a música portuguesa”. Finalizou: “creio já lhe ter respondido”. Comentei que ter nascido em Portugal, mas a perpetrar unicamente obras sacralizadas de alhures, não significa ter relação com a música portuguesa. A presença física do intérprete cosmopolita torna-o – seja qual for a dimensão de seu valor – apenas mais um cosmopolita, mormente se ignora por completo suas raízes. Pode-se ser cosmopolita, mas a relação sanguínea fá-lo divulgar o plasma criativo que percorreu e está sempre a deslizar pelo território que o viu nascer. Divulgar a essência essencial da criação de seu torrão natal e espalhar esse constante pulsar dimensiona a estatura sociocultural de um intérprete, sua verdadeira aspiração, seu objetivo, seu distanciamento da vaidade, palavra esta que, ao ver de Saint-Exupéry não é um vício, mas uma doença. Infelizmente, não se trata de caso isolado. Sem precisar aprofundamento maior, verificamos o ardor com que intérpretes russos, franceses, italianos, alemães, espanhóis, húngaros, brasileiros e de tantas outras latitudes e longitudes divulgam com reverência o repertório sacrossanto internacional, mas igualmente aquele de seus respectivos países.

Décadas têm passado e o desconhecimento no Brasil da qualitativa música produzida em Portugal, através dos séculos, caracteriza descaso e despreparo cultural de nossas organizações de concerto. Muitos dos intérpretes que nos visitam, vindos do hemisfério norte, retornam duas, três ou tantas mais vezes. Motivos insondáveis excluem sistematicamente o músico português. Raríssimas exceções. Tantos há de grande valor que poderiam apresentar-se anualmente no Brasil. Interpretam o acervo composicional estrangeiro, mas tocam e gravam o repertório português. Se, de um lado, há desinteresse das organizações, sob outra égide portugueses e luso-descendentes, que integram as inúmeras associações “culturais” portuguesas em São Paulo, não apenas desconhecem, como não se interessam minimamente pela música de concerto composta em Portugal ou alhures. Isso é um fato real. As pouquíssimas ações realizadas não tiveram a menor sequência, o que é uma lástima.  Após mais de cinquenta anos a divulgar repertórios de nossos dois países, posso afirmar que o qualitativo composicional português dialoga tantas vezes com o que de melhor se tem em países tradicionalmente detentores de programações de seus autores consagrados. E não seria por falta de edições. Elas existem em Portugal, país tão menor que o Brasil, e obras do século XVI ao atual continuam a ser editadas. Recentemente escrevi sobre o “Passionário Polifônico de Guimarães” (vide post 23/11/2013), uma obra prima de editoração sob os cuidados do ilustre musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso.  Os mais relevantes compositores portugueses continuam a ser editados, mas nós, brasileiros, desconhecemos e evitamos interpretá-los, pois não pertencem à  “tropa de elite” constituída pelos autores superventilados, fora do sofrido “eixo cultural”  Portugal-Brasil voltado à música. Nossos intérpretes não ousam frequentá-los e, se exceções meritórias existem, não conseguem romper a barreira estabelecida. Enumerar os excelentes compositores portugueses e o valor intrínseco de suas criações seria tarefa para muitos outros posts, a somar os que já escrevi a respeito. Pregar no deserto ou na aridez de nossa cidade têm a mesma dimensão do vazio ou do desconhecimento, tout court. Na ausência de convites para que músicos de terras lusíadas realmente envolvidos com a difusão da Música Portuguesa aqui se apresentem, situação constrangedora de indigência cultural se afigura entre nós. Não sendo convidados, menor ainda a oportunidade de conhecermos o repertório português e os músicos lusíadas que o reverenciam. E estamos a falar de Brasil e Portugal, em que a relação deveria ser de amálgama pleno. Triste ilusão.

Coube a um grupo de jovens idealistas, e até visionários, ousar trazer ao Brasil uma série de apresentações com repertório de Portugal. Antes dessa atitude tiveram a ousadia de sacudir, de maneira por vezes incisiva, o meio musical português, ao propor uma revista sobre música portuguesa, Glosas, não tendo basicamente apoios financeiros. Formaram o “Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa” (MPMP) e foram à luta. Comandados por Edward Luiz Ayres de Abreu, jovem compositor e musicólogo, lançaram-se numa aventura plena de desafios e incertezas. Guardando-se todas as devidas proporções, os navegadores dos séculos XV e XVI também não o fizeram? Está no sangue lusíada ser intrépido. Criaram a Revista Glosas e, ao longo de vários posts, externei o meu entusiasmo pela publicação que não encontra paralelo qualitativo no Brasil. Conseguiram chegar ao número 11, sempre nessa batalha insegura em nossos dias, a qualidade sem concessão. Como é difícil, lá como cá, não sucumbir aos apelos desse mal concessivo em detrimento da qualidade!!! A certa altura Edward Luiz e sua equipe buscaram singrar os mares em busca de uma identidade lusíada espalhada pelo mundo. O idealismo tem seu tributo a pagar e o grupo do MPMP bem sabe dessa barreira, mas, de maneira altaneira, está a conseguir com imensas dificuldades seus intentos. Vários núcleos foram criados, formados por especialistas do Brasil, da África e da Ásia. O grupo português já estava consolidado, integrado pelos jovens idealistas. Consultado por Ayres de Abreu, este músico, nos seus 75 anos, teve o prazer de indicar os nomes do núcleo brasileiro. Foi-me confiada uma coluna para cada número, “Ecos d’Além Mar”, sempre a tratar de tema relacionado, de alguma forma, à música portuguesa, permeando-a também, quando se faz necessário, por elementos importantes a envolver a música brasileira. Essa integração provocou acontecimento inédito, diria, pois artigos sobre compositores brasileiros e concernentes ao nosso passado e contemporaneidade foram publicados, redigidos por especialistas pátrios. Constância antes impensável. Um número (9) teve na capa o compositor romântico brasileiro Henrique Oswald e vários textos sobre o músico. No lançamento, em Setembro último, juntamente com dois também jovens talentosos músicos portugueses (Nuno Cardoso, violoncelo e Rita Morão Tavares, soprano), apresentamos récita na belíssima sala dos espelhos do Palácio Foz em Lisboa, unicamente com as obras camerísticas de Henrique Oswald. Entusiasmo e sala repleta, friso, e o leitor saberá as razões da ênfase. Lorenzo Fernandes, Guerra Peixe, Almeida Prado, Ricardo Tacuchian e outros mais já penetraram as mentes dos leitores portugueses através de textos brasileiros sobre suas obras e atuações publicados na revista Glosas. Infelizmente, está a me parecer, mão única.

Após uma longa busca relativa a apoios, enfim obtidos, Edward Luiz e seus colaboradores resolveram atravessar o Atlântico para aqui se apresentar, trazendo na bagagem obras relevantes de vários compositores portugueses do passado à contemporaneidade e realizando palestras. Tiveram guarida em várias capitais brasileiras: Rio de Janeiro, Salvador, Brasília, Goiânia, Belo Horizonte e São Paulo. O grupo se espalhou e, em cada uma das cidades, recitais foram apresentados com repertório camerístico (quarteto de cordas), canto e piano, piano a quatro mãos e piano solo.

Tive o prazer de assistir, no último dia 25 de Março, ao magnífico recital do jovem e promissor pianista português Philippe Manuel Vicente Marques (22 anos) em repertório maiúsculo, pois foram ouvidas obras de Antônio Fragoso (1897-1918), João Domingos Bomtempo (1775-1842) e Fernando Lopes-Graça (1906-1994). Infelizmente, a sala do Centro Cultural São Paulo era imprópria para abrigar repertório inédito de envergadura. Piano sofrível, cadeiras a ranger, ruídos constantes do metrô!!! Primeiramente, expresso a minha alegria ao ouvir o talentoso pianista interpretando criações importantes que um executante em sua idade busca evitar, pois este estará muitíssimo mais preocupado com repertórios sacralizados, a atender a programação dos concursos internacionais e das sociedades de concerto, que mantêm a hegemonia repertorial. São tantos os interesses para que essa programação se  perenize!!! E é nessa fase que tantos valores se integram de corpo e alma às obras que serão repetidas ad nauseam durante toda a vida. Isso é fato comprovado e as temporadas oficiais apenas ratificam a situação, hélas, vigente.

O belo Noturno em ré bemol maior do promissor e infortunado António Fragoso, falecido aos 21 anos atingido pela gripe espanhola, teve interpretação a valorizar os tantos segmentos que se apresentam. Romântica, a obra enriqueceu-se pela variedade de timbres, emprego da dinâmica e da agógica, que demonstraram a maturidade do pianista. Duas sonatas de Domingos Bomtempo foram interpretadas. O compositor, basicamente desconhecido entre nós, tem criações relevantes. Suas mais de uma dezena de Sonatas são muitíssimo bem escritas (Obras para piano – edição facsimilada. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1980) e, não raras vezes, nos fazem lembrar Muzio Clementi (1752-1832) ou J.B. Cramer (1771-1958). Salientaria a Grande Sonata em mi bemol op. 9 nº 1. Bomtempo exibe clareza na construção, virtuosidade característica do período e contido lirismo no movimento central. Philippe Manuel esteve sempre a revelar com segurança e inspiração conteúdos intrínsecos da Grande Sonata, valorizando-os e provocando os ouvintes que, pasmos, ouviam obra inédita qualitativa entre nós!!! O diminuto público conheceu igualmente a Sonata op 15nº 2.

De Fernando Lopes-Graça ouvimos Variações sobre um tema popular português (1927), primeira obra de seu imenso catálogo para piano, em que o compositor já apresenta suas impressões digitais, e o culto reinterpretado do cantar e da rítmica populares portugueses já se fazem presentes, assim com um tratamento timbrístico singular. Philippe Manuel soube diferenciar as 12 variações de maneira convincente. Das seis sonatas para piano de Lopes-Graça, a Sonata nº 2 (1939) caracteriza-se por intensos contrastes, a partir dos acordes dissonantes incisivos e repetitivos iniciais, sempre recorrentes durante o discurso do Allegro giusto. O pianista captou intensamente a mensagem do Andante. Sob outra atmosfera, o hispanismo contido no  Allegro non tanto, uma das páginas que mais revelam a apreensão ibérica, fez valorizar o domínio técnico-pianístico de Philippe Manuel, que apreendeu inteligentemente a magia da flutuação de  andamentos nessa obra singular.

O brilhante recital que, anunciado, deveria merecer público numeroso, contou com cerca de 40 ouvintes privilegiados. Para este intérprete, que está a batalhar há tanto tempo no sentido de revelar a música portuguesa no Brasil, mormente Lopes-Graça, é triste verificar que os músicos de São Paulo não compareceram para ouvir um recital tão significativo. Reiteradas vezes afirmei que a história ainda estará a evidenciar que Lopes-Graça está no patamar maior da composição do século XX. Compositor a dialogar na dimensão exata com os seus grandes contemporâneos europeus e, em termos brasileiros, com Villa-Lobos. Friso, dimensão idêntica. Sem contar o grande pensador que foi, pois deixou vasta literatura sobre música da maior valia. O nosso público se interessou pelo programa? Os nossos intérpretes visitam obras de Lopes-Graça e de outras figuras referenciais portuguesas? Perdida ótima oportunidade. Contudo, nesta nossa cidade imensa, há salas perpetrando a rotina. E para esses auditórios, certamente o público acorrerá. Nada, mas nada a fazer, a não ser lamentar.

No dia 24, Edward Luiz e eu nos deslocamos a Santos, pois o dirigente do MPMP queria entrevistar o notável compositor Gilberto Mendes para publicação posterior em Glosas. Aos 91 anos, Gilberto, sempre arguto, lembrou aspectos da trajetória e sua amizade fraterna com o grande compositor português Jorge Peixinho (1940-1994). Horas de congraçamento sob a égide da música.

Many times in this post I have mentioned Glosas, the magazine that covers the world of classical music in Portugal. Visionary and bold, the group of young musicians responsible for the magazine embarked on a tour in Brazil to promote Portuguese composers, performing in some capital cities. In São Paulo, I had the privilege of listening to the exceptional performance of the young (22) and promising pianist Philippe Manuel Vicente Marques and his daring recital programme: Antonio Fragoso, João Domingos Bomtempo and Fernando Lopes-Graça. Unfortunately, the city lethargic musical milieu did not attend the recital. As I insist in saying, concert-going public and promoters prefer the obvious show pieces, fearing new and untraveled paths. It is the standard repertoire that sells tickets. More-of-the-same is safer and perpetuates the huge mistake of presuming that what’s new is not good.

 

 

Considerações sobre Criação e Descoberta, Arte e Aventura

O conceito “dois”
está estreitamente ligado ao conceito “semelhança”, “repetição”.
O conceito “outro”
com o conceito “diferenciação”, “novo”.
Alexandre Scriabine (Cahier II-91,  1904-1905)

Após o regresso da Europa escrevi posts sobre Sylvain Tesson e suas viagens através do planeta, assim como a respeito do longo estágio do wanderer às margens do lago Baikal, na Sibéria. Um outro foi dedicado à dileta amiga Idalete Giga, especialista amorosa do canto coral. Meu estimado amigo François Servenière, compositor e pensador, admira igualmente os livros de Tesson e a arte de Idalete. Dele recebi e-mail abrangente. Compartilho com o prezado leitor tópicos fundamentais.

“Há muito a dizer a respeito de seus últimos posts. Gostei muito da comparação (post de 15/02/2014) entre a pesquisa concernente às novas partituras (passado e presente) pelo intérprete musicólogo e a pesquisa de novos territórios (do pensamento) pelo geógrafo escritor. Ela causa impacto e estou absolutamente seguro que a sua tese é a coluna vertebral da pesquisa – do tempo perdido (Proust), dos territórios desconhecidos (Tesson), das partituras esquecidas (Martins), etc… Tive anteriormente discussões inflamadas sobre o aprofundamento e as grandes descobertas, que nos levaram a distinguir as buscas fundamentais (que descobrem ou inventam uma realidade, não se sabe), empreendidas por inventores, descobridores, geógrafos, pioneiros, aventureiros… Fiquei impressionado por todas as divergências de apreensões e de definições, acompanhando o propósito da discussão pelo conceito atribuído a Michelangelo Buonarroti. Pretendia ele, como você bem sabe, não estar a esculpir estátuas, mas sim a retirar das entranhas da pedra a criação existente que lá estava reclusa. A reflexão inusitada do imenso artista levou-me a compreender que a criação e as descobertas têm duplo sentido. Elas se abrem sob dedos, olhos, pernas ou espíritos de descobridores ou inventores – diz-se que um descobridor de sepulcros ou grutas pré-históricas é um ‘inventor’, – mas poderíamos também pretender evidentemente, para os espaços geográficos, que eles lá estavam antes de seus descobridores. Poderíamos igualmente afirmar o mesmo concernente à criação musical em geral. Estariam os compositores organizando a matéria segundo esquemas pré-concebidos do universo, aquela que está representada em suas mentes através de programações antediluvianas? Que eu saiba não há foto dessa evidência. Se pretendermos que a música nasça de nosso cérebro, o que é incontornável, colheríamos direitos autorais por ‘trabalho que merece salário’, como quaisquer outros esquemas de DNA – que são na realidade produtos das forjas do Universo -, e,   evidentemente, seríamos induzidos a uma linguagem universal (no sentido primeiro do termo), saída dessas programações primitivas. É para isso que a música serve, religar os seres vivos, todos os seres do Universo, sob uma mesma linguagem ‘universal’, a única, aliás. Idalete não diria o contrário, ela que acredita, como você, na universalidade da música e nos extraterrestres, crendo, ademais que a música será o único elo entre a Terra e outras civilizações, dia mais, dia menos. Julga-se que 50 milhões de planetas existam na Via Láctea e que a probabilidade de outras civilizações extra-terrestres segundo a Equação de Drake, é igual a 1.

Para mim, mesmo que não viva para esse encontro de ‘terceiro grau’, não entenderia uma comunicação com possíveis outros seres do espaço a não ser através da música. É fato que muitos músicos têm inteligência superior. Assim sendo, a música, que possui uma literatura inteligente, a mais avançada no domínio das áreas do conhecimento humanístico, diferentemente de gêneros mais vulgares no próprio segmento, como a música mal feita – esta fatalmente relegada ao esquecimento. A música denominada erudita será o primeiro vetor e testemunho para outros seres vivos do espaço. Como fazê-los compreender Voltaire, Rousseau? Mozart eles compreenderão imediatamente. In fine, os meios primitivos de destruição e de poderio que nos permitirão mudar de dimensão no espaço para a visita a outros sistemas solares saem das despesas militares. Isso é fato, como provaram estudos de economia e política sobre a matéria. Progresso técnico pressupõe, paralelamente, progresso militar ou de destruição. É estranho constatar os limites imediatos desses meios de destruição, se não associados imediatamente ao vetor da paz universal no mundo (e, seguramente, do universo), que é a música. Constatação que parece clara. Para que servem meios de destruição globais e totais, como as bombas mais modernas, se territórios atingidos são esvaziados de toda substância essencial inerente? Construir sobre o deserto destruído? O que restará de um planeta se arrasado pela potência de bombas tão poderosas como o sol? Eis o que me levou esta manhã a refletir sobre os blogs dedicados à Idalete Giga e a Sylvain Tesson. A Arte vocal, a ter Idalete como sacerdotisa, é a Arte fundamental do Universo. Sylvain Tesson faz-nos refletir sobre nossas origens de povos caminhantes e descobridores. Seus últimos posts transportam-nos às origens da vida, da essência do homem e dos povos”. Tradução JEM.

Consideraria que o grande compositor russo Alexandre Scriabine (1872-1915) buscou com empolgação a união das Artes. Para tanto, imaginou um templo esférico que seria construído em um lago na India e onde todas as manifestações artísticas pudessem se manifestar. O projeto visionário tenderia a uma união totalizante com o Cosmo. A morte levou-o antes da concretização de  ideias com as quais se entusiasmara. Contudo, muitas delas podem ser apreendidas através do “L’Acte Préalable”, texto que introduziria a obra maior sobre o tema, “Mysthère”. Nesse Cosmo há profunda influência da teosofia e de textos de Friedrich Nietzsche (1844-1900), Annie Besant (1847-1933), Ana Blavatsky (1831-1891). O Universo idealizado por Scriabine não tem fronteiras espaciais. Não é extraordinário o fato de o compositor, em sua última fase criativa, escrever em 1912 uma obra tão instigante como Vers la Flamme, composição que, se escrita hoje, seria atualíssima? “Há muitas moradas na casa de meu Pai…” (João, cap. XIV, vers. 2).

Convido o leitor a ouvir Vers la Flamme na extraordinária interpretação de Vladimir Horowitz.

In this week’s post I publish an e-mail received from the French composer and intellectual François Servenière with his views on the subjects of similarities between venturing in unknown territories/unknown musical compositions and music as a universal language, understandable to all beings in the universe.

 


Visita que Marcou

Poema Breve
Como um céu protector
a pequena buganvília
estende seus ramos em flor

Beleza pura
e silenciosa
bebendo
as gotinhas de chuva
desta tarde misteriosa
Idalete Giga (Para José Eduardo e Regina, 03/Fev/2014)

Ao longo destes quase sete anos de convívio com o leitor inúmeras foram as oportunidades em que escrevi sobre Idalete Giga, não apenas mencionando-a quando de minhas viagens a Portugal para atividades musicais, mas também inserindo algumas poesias e contos da amiga alentejana.

Foi em casa da notável musicóloga portuguesa Júlia d’Almendra (1904-1992) que conheci Idalete, no longínquo 1981. Admirava sua competência quando, por vezes, substituía a grande mestra na condução do coro gregoriano durante as missas aos domingos na Igreja de Santo Antônio, em Lisboa. Fidelíssima aluna de Júlia d’Almendra, permaneceu sempre a seu lado, a receber ensinamentos e a reconfortá-la quando injusto golpe de ordem ético-moral atingiu a professora que fundara o Instituto Gregoriano de Lisboa. Júlia já adentrara largamente os 80 anos. É Idalete que, após a morte de Júlia d’Almendra, preside com rara dedicação o Centro Ward de Lisboa, dirigindo também, desde 1997, as Semanas de Estudos Gregorianos, tradicional encontro de aprofundamento fundado pela mestra.

Até a morte de Júlia, sempre que me deslocava a Portugal encontrava-a, e inúmeras foram as vezes em que Júlia, Idalete e eu almoçamos ou jantamos no Ribadouro, tradicional restaurante situado na Av. Liberdade, junto ao metrô Avenida. Até presentemente, a cada viagem jantamos, ao menos uma vez, no Ribadouro, hoje acompanhados de Regina e fiéis amigos, entre os quais o notável musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso e sua esposa Manuela.

Alguns dados tornam-se necessários. Natural do Ciborro, freguesia do Concelho de Montemor-o-Novo, essa alentejana da gema tem percurso musical que a recomenda. Licenciada em Ciências Musicais pela Universidade Nova de Lisboa e doutoranda em Ciências da Educação pela Universidade de Évora, Idadele Giga lecionou de 1991 a 2007 no Departamento de Pedagodia e Educação desta universidade. A docência não impediria sua intensa participação na atividade coral, uma de suas especialidades. Considere-se que atuou durante 35 anos como coralista do afamado Coro da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Inúmeros artigos escreveu a abordar suas áreas de atuação e traduziu, adaptando para a Língua Portuguesa, várias obras referentes à pedagogia musical de Justine Ward (1879-1975), pedagoga e pianista americana que criou o conhecido Método Ward, tão eficaz no ensino da Música para crianças do período escolar.

Amante das tradições alentejanas, Idalete participou de livro no qual descreve, entre outras figuras femininas ilustres, o perfil da consagrada poetisa Florbela Espanca (vide post “Mulheres do Alentejo na República”, 28/01/2012). Sonhadora, escreve lindos poemas e, atenta, não perde a oportunidade para a crítica arguta à degeneração ético-moral dos condutores políticos em terras lusíadas, no Brasil e no mundo. Enfim, uma empolgada defensora dos valores que estão, de há muito, estiolando-se.

Quando de minha penúltima viagem a Portugal, em Setembro último, dizia-me Idalete de um curso que ofereceria em fins de Janeiro em Nova Friburgo, no Estado do Rio de Janeiro, a abordar o canto gregoriano, entre outros temas. Regressaria a seguir ao seu país. Convidei-a na oportunidade a passar uma semana em nossa casa, na cidade-bairro Brooklin-Campo Belo. Aquiesceu. Uma grande alegria.

O convívio nesse período serviu para inúmeros gestos de pleno congraçamento com Regina, filhas, netas, genro e  amigos, que tiveram algum tipo de contato com Idalete ao longo dos anos. Apesar da canícula que nos assolou, não faltou alusão ao conhecido verão na planura alentejana, tão intenso quanto o que sofremos ultimamente. Música, tradições de sua região, literatura foram temas debatidos com entusiasmo. A ilustre especialista em canto gregoriano mostrou talentos por mim desconhecidos. Comprou um bandolim em São Paulo, trouxe consigo a sua gaita de boca, instrumento que lhe é caro desde a mais tenra idade, escreveu poemas e instigante texto para jograis. Minhas filhas e eu, em reunião familiar a contar também com poucos amigos da maior estima, recitamos o texto. Um enorme prazer a leitura de Zoprotikaviform e o Reino da Quantidade (sátira para três jograis), em que Idalete, com arguto senso de humor, faz a crítica a medicamentos que, lançados, têm de ser retirados do mercado por apresentar problemas graves à saúde, mas que logo a seguir são substituídos por outros.

A dileta amiga, nessas horas passadas no convívio amistoso, tocou bandolim e gaita de boca. Exímia executante,  brindou-nos com uma série de peças do folclore alentejano, valsas, melodias amorosas e uma polca que, à medida  que acelerava, levou netas, filhas, genro e eu à dança.

Idalete Giga continuará a visitar meus posts, assim como acontece com François Servenière e outros leitores. Eles têm sempre muito a dizer e, quando se faz oportuno, é com alegria que insiro opiniões pertinentes.

A amizade e o congraçamento não continuam a ser esteios que nos levam a ainda acreditar? Em Portugal,  quando amigos são sinceros, escreve-se a palavra com A maiúsculo. Significa tanto…

Idalete Giga and I have been friends since 1981. We first met  at the house of her teacher, the renowned Portuguese musicologist Julia d’Almendra. Both have impressive résumés in the area of pedagogy and choral direction. After giving a seminar in the city of New Friburgo, she spent a few days in my house in São Paulo. After all these years of friendship, she still surprised us with her knowledge of folk music from Alentejo and hidden talents in singing and playing the harmonica and the mandolin.