Considerações sobre Criação e Descoberta, Arte e Aventura

O conceito “dois”
está estreitamente ligado ao conceito “semelhança”, “repetição”.
O conceito “outro”
com o conceito “diferenciação”, “novo”.
Alexandre Scriabine (Cahier II-91,  1904-1905)

Após o regresso da Europa escrevi posts sobre Sylvain Tesson e suas viagens através do planeta, assim como a respeito do longo estágio do wanderer às margens do lago Baikal, na Sibéria. Um outro foi dedicado à dileta amiga Idalete Giga, especialista amorosa do canto coral. Meu estimado amigo François Servenière, compositor e pensador, admira igualmente os livros de Tesson e a arte de Idalete. Dele recebi e-mail abrangente. Compartilho com o prezado leitor tópicos fundamentais.

“Há muito a dizer a respeito de seus últimos posts. Gostei muito da comparação (post de 15/02/2014) entre a pesquisa concernente às novas partituras (passado e presente) pelo intérprete musicólogo e a pesquisa de novos territórios (do pensamento) pelo geógrafo escritor. Ela causa impacto e estou absolutamente seguro que a sua tese é a coluna vertebral da pesquisa – do tempo perdido (Proust), dos territórios desconhecidos (Tesson), das partituras esquecidas (Martins), etc… Tive anteriormente discussões inflamadas sobre o aprofundamento e as grandes descobertas, que nos levaram a distinguir as buscas fundamentais (que descobrem ou inventam uma realidade, não se sabe), empreendidas por inventores, descobridores, geógrafos, pioneiros, aventureiros… Fiquei impressionado por todas as divergências de apreensões e de definições, acompanhando o propósito da discussão pelo conceito atribuído a Michelangelo Buonarroti. Pretendia ele, como você bem sabe, não estar a esculpir estátuas, mas sim a retirar das entranhas da pedra a criação existente que lá estava reclusa. A reflexão inusitada do imenso artista levou-me a compreender que a criação e as descobertas têm duplo sentido. Elas se abrem sob dedos, olhos, pernas ou espíritos de descobridores ou inventores – diz-se que um descobridor de sepulcros ou grutas pré-históricas é um ‘inventor’, – mas poderíamos também pretender evidentemente, para os espaços geográficos, que eles lá estavam antes de seus descobridores. Poderíamos igualmente afirmar o mesmo concernente à criação musical em geral. Estariam os compositores organizando a matéria segundo esquemas pré-concebidos do universo, aquela que está representada em suas mentes através de programações antediluvianas? Que eu saiba não há foto dessa evidência. Se pretendermos que a música nasça de nosso cérebro, o que é incontornável, colheríamos direitos autorais por ‘trabalho que merece salário’, como quaisquer outros esquemas de DNA – que são na realidade produtos das forjas do Universo -, e,   evidentemente, seríamos induzidos a uma linguagem universal (no sentido primeiro do termo), saída dessas programações primitivas. É para isso que a música serve, religar os seres vivos, todos os seres do Universo, sob uma mesma linguagem ‘universal’, a única, aliás. Idalete não diria o contrário, ela que acredita, como você, na universalidade da música e nos extraterrestres, crendo, ademais que a música será o único elo entre a Terra e outras civilizações, dia mais, dia menos. Julga-se que 50 milhões de planetas existam na Via Láctea e que a probabilidade de outras civilizações extra-terrestres segundo a Equação de Drake, é igual a 1.

Para mim, mesmo que não viva para esse encontro de ‘terceiro grau’, não entenderia uma comunicação com possíveis outros seres do espaço a não ser através da música. É fato que muitos músicos têm inteligência superior. Assim sendo, a música, que possui uma literatura inteligente, a mais avançada no domínio das áreas do conhecimento humanístico, diferentemente de gêneros mais vulgares no próprio segmento, como a música mal feita – esta fatalmente relegada ao esquecimento. A música denominada erudita será o primeiro vetor e testemunho para outros seres vivos do espaço. Como fazê-los compreender Voltaire, Rousseau? Mozart eles compreenderão imediatamente. In fine, os meios primitivos de destruição e de poderio que nos permitirão mudar de dimensão no espaço para a visita a outros sistemas solares saem das despesas militares. Isso é fato, como provaram estudos de economia e política sobre a matéria. Progresso técnico pressupõe, paralelamente, progresso militar ou de destruição. É estranho constatar os limites imediatos desses meios de destruição, se não associados imediatamente ao vetor da paz universal no mundo (e, seguramente, do universo), que é a música. Constatação que parece clara. Para que servem meios de destruição globais e totais, como as bombas mais modernas, se territórios atingidos são esvaziados de toda substância essencial inerente? Construir sobre o deserto destruído? O que restará de um planeta se arrasado pela potência de bombas tão poderosas como o sol? Eis o que me levou esta manhã a refletir sobre os blogs dedicados à Idalete Giga e a Sylvain Tesson. A Arte vocal, a ter Idalete como sacerdotisa, é a Arte fundamental do Universo. Sylvain Tesson faz-nos refletir sobre nossas origens de povos caminhantes e descobridores. Seus últimos posts transportam-nos às origens da vida, da essência do homem e dos povos”. Tradução JEM.

Consideraria que o grande compositor russo Alexandre Scriabine (1872-1915) buscou com empolgação a união das Artes. Para tanto, imaginou um templo esférico que seria construído em um lago na India e onde todas as manifestações artísticas pudessem se manifestar. O projeto visionário tenderia a uma união totalizante com o Cosmo. A morte levou-o antes da concretização de  ideias com as quais se entusiasmara. Contudo, muitas delas podem ser apreendidas através do “L’Acte Préalable”, texto que introduziria a obra maior sobre o tema, “Mysthère”. Nesse Cosmo há profunda influência da teosofia e de textos de Friedrich Nietzsche (1844-1900), Annie Besant (1847-1933), Ana Blavatsky (1831-1891). O Universo idealizado por Scriabine não tem fronteiras espaciais. Não é extraordinário o fato de o compositor, em sua última fase criativa, escrever em 1912 uma obra tão instigante como Vers la Flamme, composição que, se escrita hoje, seria atualíssima? “Há muitas moradas na casa de meu Pai…” (João, cap. XIV, vers. 2).

Convido o leitor a ouvir Vers la Flamme na extraordinária interpretação de Vladimir Horowitz.

In this week’s post I publish an e-mail received from the French composer and intellectual François Servenière with his views on the subjects of similarities between venturing in unknown territories/unknown musical compositions and music as a universal language, understandable to all beings in the universe.