Navegando Posts em Música

John Howard (1938-2024)

A arte só beija quem por ela almeja ser beijado.
A arte exige uma liturgia, um ritual,
que se prende com a fonte da dádiva e a aproximação do amor.
Miguel Real (1953-)

Um dos pioneiros da arte do grafite de rua em São Paulo, John Howard nasceu nos Estados Unidos, mas radicou-se no Brasil, tendo sido uma figura rigorosamente singular e um dos artistas mais versáteis da sua geração.

Conheci-o na Secretaria Municipal de Cultura em 1981, período em que o Maestro Walter Lourenção e eu dávamos assistência à programação cultural daquele órgão. Visitou-nos, a dar sugestões. Recordo-me do impacto da sua presença física e de algumas das suas tipicidades. Longos cabelos e barba em desalinho, trajes sem qualquer cuidado, óculos com lentes verdes semiescuras, sandálias, sacola na qual estava o material para o desempenho da sua imaginação criativa, forte sotaque, ironia e senso arguto de observação. Tornamo-nos amigos e assim continuamos durante alguns anos. Naquele período realizou inúmeros desenhos em torno da minha atividade pianística. Após, John empreendeu outros caminhos e seria o criador fundamental dos grafites murais da cidade e mestre de gerações, sendo que eu entrava para a docência na Universidade de São Paulo, sem abdicar do meu convívio diário com o piano. Os contatos diminuíram depois dessas transições, mas jamais a minha admiração pelo seu talento invulgar esmoreceu. Passei a segui-lo pela mídia naquele período da erupção do criativo grafite de rua.

Prestar-lhe homenagem em um dos blogs que estou a dedicar aos artistas que me encantaram com suas belas criações é o mínimo que posso fazer. Alguns desenhos de John Howard, guardados em uma pasta especial durante décadas, ficaram amarelados pelo tempo inexorável.

Ambos nascemos em 1938, e este fato serviu para início de conversações e de uma verdadeira empatia. John Howard, um cidadão livre de quaisquer amarras, um outrora hippie em seu país natal, era figura de natureza aberta e generosa. Tinha uma sólida formação cultural. Frequentou inúmeras vezes a nossa morada e minha mulher Regina e as duas filhas sempre o recebiam com alegria. Gostava de provocar as então meninas, fazendo perguntas que as desconcertavam. Adorava música e a maioria dos desenhos nesse período amistoso foi elaborada em torno dessa relação musical. Por vezes nos visitava para me ouvir estudar piano. Podia ficar por longo tempo a escutar e, por vezes, a desenhar. Acompanhou-me em viagens pelo interior do Estado quando de recitais agendados.

John Howard inseria, em caracteres bem pequenos, a data e outras precisões. Ao clicar sobre cada imagem haverá a ampliação, que possibilitará a leitura.

Entre 1980-1982, preparava-me para a integral da obra para piano de Claude Debussy em quatro recitais no MASP e elaborava o livro “O som pianístico de Claude Debussy” (São Paulo, Novas Metas, 1982). John apaixonou-se pelas criações de Debussy e realizou todas as ilustrações a partir dos títulos poéticos de inúmeras peças. Tornou-se o seu compositor preferido. De interesse a sua curiosidade. Em termos de Debussy, todas as imagens foram criadas após me ouvir tocar algumas de suas obras. Dizia-me que era necessária a escuta. Vendo-me escrever àquela altura o livro, desenhou as mãos.


Um fato marcante em torno dos 12 Études de Debussy ocorreu após eu lhe ter explicado que o compositor francês pensou, para cada Estudo, em um problema técnico-pianístico. Após a minha exposição pediu-me para posicionar a mão direita imóvel a partir do início do primeiro compasso. Surgiu um desenho magnífico, que está entre outros mais no livro em apreço.

Clique para ouvir, de Claude Debussy, o Étude pour les arpèges composés, na interpretação de J.E.M:

https://www.youtube.com/watch?v=VCAH8fYHjSo

Quando da inauguração do Centro Cultural São Paulo participei em dois eventos. Com o meu irmão João Carlos, sob a regência de Roberto Tibiriçá, interpretamos o Concerto em dó menor para dois teclados, aos 11 de Junho de 1982. Três dias após, apresentei recital solo no mesmo local. John Howard registrou os eventos.

Ao selecionar os desenhos para o post semanal, estive a pensar naquele longínquo período em que John e eu estivemos tão ligados. Admirava a sua cultura literária e filosófica. Por vezes citava um de seus eleitos, Shakespeare. Creio que a nossa amizade, estruturada e muito na música erudita, era uma fonte para John me perguntar sempre sobre o porquê de eu estudar determinados compositores fora do grande circuito, a excetuar Claude Debussy, que ambos apreciávamos. Scriabine foi outro compositor de que passou a gostar imenso. Interessou-se pelo pensamento do compositor russo, máxime influenciado pelas teorias teosóficas e o apreço por Nietzsche. O desenho inicial do blog foi traçado com rapidez em traços firmes, enquanto eu interpretava um dos Estudos de Scriabine (op. 42 nº1), cuja integral (26 Estudos) gravaria duas décadas após na Bélgica.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, o Estudo op. 42 nº 1, na interpretação de JEM:

https://www.youtube.com/watch?v=Vz13JKEZKRI

Um desenho bem amarelado guarda, contudo, a única frase que, por si só, já revela a senso de apreciação de John Howard, no caso, a sua admiração por Mozart: “José Eduardo playing Mozart – we were captiveted” (1981).

Como a sua criação jorrava como uma fonte inesgotável, certamente aqueles que conviveram com John Howard devem ter guardado considerável parte dos seus desenhos e esboços. Causava-me forte impressão a sua volúpia em desenhar quando nos ônibus que faziam o trajeto Centro-Santo Amaro. Ao descermos no Brooklin-Campo Belo, vários desenhos tinham sido feitos, focalizando aquilo que ele via e acrescentava no papel: prédios, cartazes, faróis, ônibus, carros, personagens… Disse-lhe certa vez que nos seu desenhos havia algo encontrável nas gravuras japonesas, a ausência da rasura. O traço firme, preciso, sem falhas.

John Howard foi um artista singular. Pioneiros jamais são esquecidos. Orientar legião de seguidores do grafite artístico no correr das décadas corrobora o legado pessoal. Sua memória permanecerá.

John Howard (1938-2024) was a unique artist, one of the most creative I have ever known. In the early 1980s he made countless drawings, spontaneously documenting my musical journey.

Guardo-os com carinho


Amigos e parentes têm insistido ao longo dos anos para que eu escreva blogs sobre artistas voltados às artes plásticas que me privilegiaram, antes e durante recitais de piano e em situações outras, com desenhos e pinturas. Sempre relutei, mas, reorganizando meus arquivos gerais, encontrei uma pasta com diversos desenhos coloridos ou não, que foram realizados por artistas ou amadores em nossas terras ou alhures, máxime durante minhas apresentações pianísticas. Aos 86 anos, após um último apelo de minha mulher Regina e a anuência das nossas filhas, resolvi inserir nos blogs que seguem esses desenhos que me são caros e que cobrem a longa trajetória, não sem antes afirmar que não tenho intimidade com a luz dos holofotes, pois ela poderia camuflar o essencial do meu propósito erigido desde a adolescência, o culto à Música. Retirei os trabalhos artísticos da pasta em que estavam cuidadosamente guardados e os apresento, historiando-os. Necessário dizer que as artes plásticas e a literatura sempre me fascinaram. No primeiro caso, tive a sorte de conviver com artistas de expressão ao longo da existência, apesar de ser nulo com um lápis na mão, talento este que ficou com a nossa filha Maria Fernanda.  Pela literatura sou um aficionado desde a infância, dedicando-me igualmente à literatura musicológica ou voltada aos temas livres desde 2007 nos blogs semanais.

Aos 10 de Dezembro de 1954 dei um recital de piano no Teatro Colombo no Lago da Concórdia, no Brás. Infelizmente, o Teatro, com cerca de 2.000 lugares, não sobreviveu a um incêndio em 1966. Compareceram ao recital músicos relevantes do meio brasileiro: Camargo Guarnieri (1907-1993), Antonieta Rudge (1885-1974), Guiomar Novaes (1894-1979) e Felicja Blumental (1908-1991), pianista polonesa que viveu alguns anos no Brasil. Mencionei-a nos blogs a respeito da Domenico Scarlatti e Carlos Seixas. Ao finalizar a apresentação, a pianista me ofereceu um desenho feito durante a execução sobre o programa distribuido.

Iracy, colega do início do curso clássico no Liceu Pasteur (1955), vinha estudar em casa. Fez um desenho a pormenorizar peças e quadros no quarto de estudos. Findo o curso, não mais tive contato com o bom colega.

Em 1971 apresentei no Teatro Itália, em dois recitais, a integral de Jean-Philippe Rameau para teclado, interpretada ao piano. Dois desenhos foram realizados em torno desses eventos. Mario Zanini (1907-1971), um dos mais significativos pintores do Grupo Santa Helena, foi um amigo muito estimado. Várias vezes visitei-o em sua morada na região do Cambuci. Quando lhe disse dos recitais Rameau, e que estava a preparar o programa impresso, pediu-me para ficar sentado e imóvel, realizando com segurança um desenho que ilustraria o programa distribuído nos saraus. Compareceu aos recitais e, infelizmente, faleceria dois meses após.

Clique para ouvir, de Jean-Philippe Rameau, Les Cyclopes, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=Hl0I3svTKnI&t=12s

O pintor Theodoro Meirelles (1916-2009), cujas telas figurativas externavam o seu de profundis em cenas bucólicas, tranquilas, compareceu aos recitais. Sem fazer parte do Grupo Santa Helena, frequentou-o. Fiquei-lhe grato pelo desenho que fez num dos programas. Disse-lhe na ocasião que ele havia captado a essência da minha concentração ao executar a sublime obra de Rameau. Dez ano após, faria outro desenho quando do recital inteiramente dedicado a Henrique Oswald no MASP em Agosto de 1981.

Menotti Del Picchia (1892-1988), figura ímpar em nossa cultura literária, era casado com a ilustre pianista Antonieta Rudge (1885-1974). O casal compareceu ao recital no MASP (1972), quando da integral das Sonatas Bíblicas de Johann Kuhnau (1660-1722). Dias após, o ilustre literato ofereceu-me um desenho com significativa dedicatória.

Clique para ouvir, de Johann Kuhnau, Sonata nº 5, Gideão, salvador do povo de Israel, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=YD-YqQ2wc80&t=9s

Na apresentação de obras do compositor Willy Correa de Oliveira (1938-) no Museu da Imagem e do Som, compareceu um nosso amigo comum, o crítico musical e artista plástico Enio Squeff (1943-), que concebeu um desenho colorido.

Benedito Lima de Toledo (1934-2019), ilustre arquiteto, urbanista e historiador, foi meu colega uspiano e durante um tempo participamos do Concelho Universitário da Universidade de São Paulo. Desse período, fez um desenho a evocar o nosso convívio amistoso.

No próximo blog abordarei os desenhos idealizados por um dos artistas mais criativos que conheci, pioneiro da arte do grafite em nossas terras, John Howard, falecido recentemente (1938-2024).

O Brasil perdeu no dia 30 último um dos pianistas mais significativos da sua história, Arthur Moreira Lima (1940-2024). Laureado em três dos mais importantes concursos mundiais, Chopin em Varsóvia, Tchaikovsky em Moscou e Leeds na Inglaterra, Moreira Lima deixou gravações absolutamente notáveis. Fomos colegas em Paris, no início da década de 1960, quando sob a orientação dos ilustres Mestres, Marguerite Long e Jean Doyen. Após fixar-se definitivamente no Brasil, incorporou ao seu vasto repertório, clássicos da MPB. Arthur Moreira Lima, um grande pianista.

Lamentável a posição da grande mídia impressa, televisiva e on-line que se desdobra em material sobre personagens do rap, do funk, do sertanejo descaracterizado quando dos seus falecimentos, mas ventilando, como por caridade, as mortes de três grandes  intérpretes pátrios, os pianistas Nelson Freire (1944-2021) e Arthur Moreira Lima e o violoncelista Antônio Menezes (1957-2024), músicos de reconhecimento mundial. Paradoxalmente, os três permanecerão na história.

Clique para ouvir, de Chopin, a Polonaise op.44, na interpretação de Arthur Moreira Lima:

Arthur Moreira Lima | Chopin – Polonaise Op.44 (1985)

Encouraged by friends and relatives, I will dedicate a few blogs to artists or amateurs who have honoured me with drawings or paintings related to my pianistic activity. At the end of this first blog, I mourn the death of one of Brazil’s most significant pianists, Arthur Moreira Lima. We were colleagues in Paris in the early 1960s in the classes of masters Marguerite Long and Jean Doyen.

Comunico aos prezados leitores que foi publicada online no “Estado da Arte” do Estadão (30/10/2024) a entrevista conduzida pelos professores Aurora Bernardini e Valteir Vaz a respeito da minha trajetória. Sinto-me honrado.

https://estadodaarte.estadao.com.br/musica/entrevista-com-jose-eduardo-martins/

 

 

 

 

Conversa que despertou a memória

A percepção nunca está puramente no presente,
pois tem de recorrer à experiência do passado.

Oliver Sachs (1933-2015)
(“Alucinações musicais”)

Ao longo dos anos não foram poucas as vezes em que mencionei Marcelo, amigo que encontro por vezes na feira livre do Campo Belo aos sábados. Lê os blogs semanais e, quando nos encontramos, sempre há perguntas inteligentes que busco responder. Vi-o no início do presente mês em um dos supermercados que frequento e voltamos a conversar prazerosamente. Entre outros assuntos do cotidiano, fez-me conhecer um problema que o atingia relacionado à perda quase plena de audição do seu ouvido esquerdo. Deveria ser operado dias após o nosso encontro. Antes de saber o mal que o acometia, notei que ele, ao me ouvir, virava ligeiramente o pescoço em direção à direita. Causou-me espanto quando ouvi Marcelo comentar o seu desânimo ao ouvir música. É motivo de alegria saber que ele ouve as músicas que insiro nos links dos posts semanais. Disse-me que algo estranho tem ocorrido, pois está perdendo a vontade de ouvir, pois a escuta a partir de um só ouvido “não tem graça”, como me afirmou. Tomamos um curto na lanchonete do estabelecimento e nos despedimos. Soube nesta semana que a cirurgia correu a contento e ele está a se recuperar. Recordei-me de um aluno que teve poucas aulas de piano em tempos idos e que não tinha nenhuma audição em um dos ouvidos desde a infância. Naturalmente inclinava a cabeça para um lado ao executar uma música.

Fiquei a pensar no problema do Marcelo e veio-me à memória um capítulo de um livro do renomado neurologista, psiquiatra, professor e escritor anglo-americano Oliver Sachs (1933-2015), nascido na Inglaterra e que se fixou nos Estados Unidos, tendo uma vasta e diversificada contribuição literária (“Alucinações Musicais”, São Paulo, Schwarcz, 2007).

No capítulo em questão, “Em estéreo ao vivo: por que temos dois ouvidos”, o autor inicia mencionando um médico norueguês, dr. Jorgen Jorgensen, com quem mantinha correspondência e que perdera a audição do seu ouvido direito após cirurgia. Observa o médico escandinavo: “A percepção das qualidades específicas da música – o tom, o timbre – não mudou. Mas a minha recepção emocional da música ficou prejudicada. Tornou-se curiosamente monótona e unidimensional”. Especificações existentes na música, como altura sonora, ritmo, tempo e as curvas das linhas musicais, crescendo e diminuendos, são elementos que podem se  tornar prejudicados quando da escuta através de um só ouvido. Sachs comenta que ocorrem diferenças óbvias na escuta espacial e distingue “cantar em uma sala de concerto ou no chuveiro”. Têm interesse as suas reiteradas chamadas às diferenças de se ouvir em mono ou em estéreo, tendo em conta igualmente a reverberação.

Dr. Sachs insiste que aquele que, por circunstâncias várias, está desprovido da audição plena, desenvolve um efeito “pseudo-estéreo”. Observa: “A genuína percepção em estéreo, seja ela visual ou auditiva, depende da capacidade do cérebro para inferir a profundidade e a distância (além de qualidades como rotundidade, amplitude e volume) com base nas disparidades entre o que está sendo transmitido pelos dois olhos ou ouvidos individualmente – uma disparidade espacial no caso dos olhos, e temporal no dos ouvidos.”

Relevante a analogia que o autor estabelece para aqueles que perdem a visão de um olho. Oliver Sachs explica: “As repercussões da perda da estereoscopia podem ser inesperadamente abrangentes; incluem não só a dificuldade de avaliar a profundidade e a distância, mas também um ‘aplainamento’ de todo o mundo visual, tanto na esfera perceptual como na emocional”. Seria possível entender que a situação, que se estende igualmente à percepção espacial, condiciona adaptações a que o mental pouco a pouco se acostuma, sendo que, se porventura a visão volta a ser binocular, sensações extraordinárias se abrem. Após considerar que o humano, não tendo largamente a acuidade ocular e auditiva da maioria dos animais, acaba aperfeiçoando minimamente os seus sentidos visual e auditivo. Escreve o neurologista: “É a estereofonia que permite aos espectadores de um concerto deleitar-se com toda a complexidade e o esplendor acústico de uma orquestra ou de um coro que se apresenta em uma sala de espetáculo projetada para que a audição seja a mais rica, refinada e tridimensional possível – uma experiência que tentamos recriar, da melhor forma, com dois fones de ouvido, alto-falantes estéreo ou som surround”.

Se existem cidadãos impossibilitados nos casos elencados, há que se entender que, a depender da acuidade e do esforço mental dos que perderam a audição de um ouvido e a visão de um olho, atenuantes existem e o empenho voluntário ameniza as ausências da escuta ou da luz, respectivamente, aos acometidos por esses problemas. Sachs menciona “o aumento da habilidade de fazer avaliações usando um único olho ou ouvido, um uso intensificado das pistas monoculares ou monoaurais”. Continua: “A pessoa que perdeu a estereocopia ou a estereofonia precisa, efetivamente, recalibrar seu ambiente, seu mundo espacial – e, nesse caso, o movimento é especialmente importante, até mesmo os movimentos da cabeça relativamente pequenos, mas muito informativos”. Relata Sachs que, através de muitos esforços mentais, o dr. Jorgensen, mesmo sem a audição do ouvido direito, encontrou, através de um esforço mental, algum resultado que o fez ter um conforto ao ouvir música com apenas o ouvido esquerdo.

Dr. Francisco de Paula Pinto Hartung (1893-1953), renomado otorrinolaringologista, escreveu dois livros de interesse sobre “Chopin – Enfermidade e Arte” e “A Surdez de Beethoven – aspectos clínicos e históricos”. Neste, pormenoriza o mal que acometeu o compositor, causas, consequências, enumerando etapas. Li-os décadas atrás. A leitura da vasta correspondência de Beethoven corrobora interpretações quanto à sua surdez. Se pensarmos que algumas de suas obras mestras, incluindo a possivelmente mais consagrada Sinfonia da história, a célebre Nona Sinfonia, assim como as quatro mais importantes Sonatas para piano solo, opus 106 (Hammerklavier), 109, 110 e 111, e os últimos quartetos, todas essas criações foram concebidas no silêncio auditivo externo a partir de 1819, quando a capacidade auditiva de Beethoven era basicamente nula. Se pensarmos que o cidadão versado minimamente em música, sem se expressar cantarolando, pode rememorar melodias que o agradam, inclusive com as letras desses cantos ao gosto do público. Essas melodias ecoam, pois gravadas na mente. Beethoven criou todas as extraordinárias obras finais da existência apenas com a escuta interna, substanciada por todo o acervo composicional adquirido por uma figura sob a aura da genialidade. Certamente foi um exercício hercúleo transcrever o que estava na mente sem qualquer auxílio instrumental. Teria a Nona Sinfonia a magnitude que dela emana, plena de sentimentos contraditórios e dramáticos, se a audição do Mestre alemão estivesse perfeita? Mistérios.

With regard to a hearing impairment that affected my friend Marcelo, who goes to the same street market as me in Brooklin-Campo Belo, I would like to quote Dr Oliver Sachs, who addresses the subject in his book “Musicophilia – tales of music and the brain”.