Navegando Posts em Personalidades

O piloto-escritor por vocação imperiosa

Refiz todos os meus cálculos.
Nossa ideia é irrealizável.
Não nos resta outra coisa a fazer,
Realizá-las.
Pierre-Georges Latécoère
(fundador das Lignes Aériennes Latécoère)

Nesse segundo comentário do livro em apreço abordarei as duas atividades mais imperativas na breve existência de Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944). Amalgamadas sem a menor possibilidade de separação, literatura e aviação fazem parte de uma maneira única de entender o mundo em que vivemos ou o universo. Essa premissa leva-nos ao O Pequeno Príncipe em seu asteroide, o mais breve dos livros de Saint-Exupéry, mas o que granjearia o maior alcance. Vislumbre estelar imaginário, passível de acalantar os almejos mais recônditos do autor.

A trajetória de Saint-Exupéry voltada à aviação remonta aos seus doze anos de idade, quando, contrariando sua mãe, reiteradas vezes vai ao campo de pouso de pequenos aeroplanos de madeira e tela em Ambérieu. Dizendo-se autorizado por sua mãe, pela primeira vez voa num avião pilotado por Gabriel Wroblewski-Salvez. O maravilhamento da “aventura” seria a origem do fascínio que o seduziria por toda a vida.

Em Les plus beaux manuscrits de Saint-Exupéry, a autora Nathalie des Vallières fixa datas precisas para o envolvimento de seu tio-avô. Vemo-lo, a partir de 1921 até a morte em 1944, basicamente engajado com a aeronáutica, como piloto e, por vezes, como dirigente. Como aviador, naqueles tempos ainda precários em termos de segurança, Saint-Exupéry sofreria vários acidentes, alguns graves. Em 1933 quase se afoga após aterrissar mal. Seria em 1935 a queda que o teria influenciado de maneira mais marcante, quando, ao tentar bater o recorde Paris-Saigon, cai com seu amigo e piloto André Prévot no deserto da Líbia. Já em 1938, ao buscar o recorde Nova-York–Terra do Fogo, sofre queda na Guatemala, ficando gravemente ferido. Em 1940 participa, pela primeira vez como piloto, da Segunda Grande Guerra, sendo atingido pela artilharia antiaérea alemã. Ao todo seriam sete acidentes, o último fatal. Poder-se-ia entender esse número como “antecipações” de progressiva “atração” pela mors certa hora incerta. Corrobora esse desenrolar a morte constante de seus amigos e companheiros.

Presente nos romances e em Citadelle, a imensidão do deserto terá forte impressão no autor. Convidado em Outubro de 1927 para a chefia do aeroporto de Cap Juby (Mauritânia), permanecerá no enclave durante um ano e meio e o convívio com o deserto ser-lhe-á vital. Durante esse período, as poucas distrações, como o xadrez, ajudam-no nas longas horas de silêncio. Período de reflexão e da compreensão da condição do homem. Acidentes aéreos no deserto e a missão de salvar companheiros vítimas de quedas e aterrissagens forçadas, ter a índole do congraçamento e dar-se amistosamente com beduínos, chegando a frequentá-los em suas tendas, escrever cercado pela imensidão do Sahara corroboram o comprometimento amoroso com o ambiente. O acidente mencionado de 1935 é relatado: “O deserto? Abordei-o um certo dia pelo coração. Durante voo em direção à Indochina, fui parar no Egito, nos confins da Líbia, preso nas areias como uma cola e pensei que iria morrer”. Estava em companhia de seu mecânico André Prevot. Durante três dias caminham sem rumo certo, sendo encontrados em estado lastimável por um beduíno. Em Terre des Hommes há a narrativa da quase tragédia. O deserto fá-lo pensar na solidão, na morte e no silêncio: “Um silêncio não se parece com outro silêncio”. Ao deixar Cap Juby sente-se aliviado.

Carta ao amigo Charles Sallés corrobora a admiração de Saint-Exupéry pelo ofício, mas também pela imensidão do deserto e pelos mouros.

“Meu velho amigo, coloque sobre a conta do clima, de uma imperdoável preguiça, de uma impossibilidade de compreender ainda tudo o que há de novo – este silêncio vergonhoso! Escrevi-lhe três ou quatro vezes e minhas cartas não seguiram. Tentava-lhe explicar e não conseguia. É algo maravilhoso e bizarro ao mesmo tempo. A cada voo dos correios, piloto dois mil quilômetros no Sahara para ir, dois mil para voltar. Milhares sobre tribos dissidentes. Imagine essa areia, sempre essa areia. E já passei uma noite, em pane, numa pequena fortaleza isolada. Amo esse isolamento, mas não sei defini-lo. E as tribos mouras e suas fisionomias me encantam. Contar-lhe-ei tudo um dia”.

Considere-se o companheirismo. Saint-Exupéry  teve-o nas figuras, alguma notáveis, ligadas à pilotagem e à navegação da Aéropostale, sucessora da Lignes Aériennes Latécoère. Verdadeiros heróis da aviação, desde a Primeira Grande Guerra tantos deles sucumbiram precocemente em acidentes. Entre eles: Jean Mermoz (1901-1936), a figura mais emblemática da história da aviação francesa; Henry Guillaumet (1902-1940), imortalizado em Terre des Hommes. Saint-Exupéry relata a epopeia do amigo que, após acidente nos Andes, caminharia durante vários dias, moribundo, até ser encontrado. Frase de Guillaumet ao piloto-escritor: “O que eu fiz, eu juro, nenhum animal teria feito”. Ao morrer Guillaumet, Saint-Exupéry se expressa: “Guillaumet morreu. Tenho a impressão de ter perdido meu melhor amigo”. Alguns outros pilotos da Aéropostale mortos tragicamente: Jean Chamsaur (1896-1931); Alexandre Collenot (1902-1936); Germain de Laguerie (1897-1930); Henry Lemaître (1894-1935); Gaston Génin (1901-1936); Marcel Reine (1901-1940); Henri Érable (1903-1936) e Léopold Gourp (1900-1926), aprisionados e mortos pelos mouros. Tantos outros sofreram quedas, mercê em parte do pioneirismo.

O pressentimento da morte se acentua ao assistir ao desenlace de amigos e colegas. Aos 30 de Julho de 1944, um dia antes de seu desaparecimento, escreve ao amigo Pierre Daloz carta que, segundo a autora de Les plus beaux manuscrits de Saint-Exupéry, Nathalie des Vallières, faz dessa missiva um testamento. Após saudações, o piloto-escritor escreve: “Faço a guerra o mais profundamente possível. Certamente sou o decano entre os pilotos de guerra do mundo. O limite de idade é de trinta anos pilotando o tipo de avião de um só lugar que eu piloto. Outro dia tive  pane de um motor a 10.000 metros de altitude sobre Annency, na exata hora em que completava quarenta e quatro anos! Enquanto sobrevoava os Alpes com a velocidade de uma tartaruga, à mercê dos caças alemães, divertia-me docemente pensando nos superpatriotas que proíbem meus livros na África do Norte. Tem graça.

Conheci tudo desde meu retorno à esquadrilha (esse retorno é um milagre). Conheci a pane, o desfalecimento pela falta de oxigênio, a perseguição dos caças inimigos e também o incêndio em voo. Não estou exagerando e me sinto muito saudável. É minha única satisfação! E também de passear, só o avião e sozinho a bordo, durante horas, sobre a França, a tirar fotografias. Tudo isso é estranho.

Aqui, estamos longe do banho de ódio, mas apesar da gentileza da esquadrilha, assim mesmo sinto tudo como um pouco da miséria humana. Não tenho ninguém, jamais, com quem convesar. No entanto, já é alguma coisa ter com quem viver. Mas, que solidão espiritual!

Se eu for abatido, não lamentarei absolutamente nada. O formigueiro futuro me espanta. E eu detesto seu aspecto robotizado. Fui feito para ser jardineiro”.

No dia 31 de Julho de 1944, o Journal de marche (da divisão 2/33 à qual Saint-Exupéry pertencia) comunicava: “Um triste acontecimento acaba de manchar a alegria que todos sentiam com a aproximação da vitória. O comandante Saint-Exupéry não regressou. Saiu às 9 horas para a Savóia, a pilotar o 223. Não regressou até às 13 horas. Os chamados pelo rádio ficaram sem resposta e os radares alertados o procuraram em vão, às 14 h 30 não havia mais esperanças de que ele pudesse estar voando”.

Les plus beaux manuscrits de Saint-Exupéry, carinhosa e criteriosamente escrito pela sua sobrinha-neta, Nathalie des Vallières, através de rica documentação faz com que o leitor compreenda as várias virtudes do notável piloto-escritor.

Seus livros Courrier Sud (1929), Vol de Nuit (1931), Terre des Hommes (1939) e Pilote de Guerre (1942) evidenciam a sublimação do homem diante de uma das mais fatídicas profissões do período, seja como piloto a transportar correspondências e atravessando oceanos e continentes, seja durante as duas Grandes Guerras, quando a morte estrava sempre à espreita. No pós-guerra, os avanços tecnológicos, tornando a aviação muitíssimo mais segura, apenas dimensionam a naturalidade e coragem com que os pilotos de outrora, heróis na acepção, enfrentavam o destino.

This is the second post about the book  “Les plus beaux manuscrits de Saint-Exupéry” (published in English with the title “Saint Exupéry: Art, Writings and Musings”), a collection of letters, drawings, photos and private notebooks of the French writer and aviator (1900-1944) assembled with adoring reverence by his great-niece, the art historian Nathalie des Vallières. Each chapter covers one aspect of Saint-Exupéry’s life: childhood, friendships, relationship with mother, wife and other women, the inventor with many patents to his name, his passion for writing, drawing, flying, his participation in the war, his thoughts about death. One entire chapter is dedicated to Saint-Exupéry’s affectionate correspondence with his mother, extending from childhood to 1944, the year of his death. Another chapter addresses the various women of his life: wife, sisters, friends, romantic liaisons.  A beautiful and richly illustrated edition with reproductions of Saint-Exupéry’s original manuscripts and drawings, in special the omnipresent sketches of “The Little Prince”, maybe an alter ego of the author, the book provides valuable information about life and thoughts of an extraordinary artist and human being.

Livro a corroborar o desvelamento do autor

Nunca compreendi e não compreenderei jamais
que as pessoas trocam histórias que não têm a menor importância,
pois são histórias distorcidas.
Será que teríamos a necessidade de desperdiçar a vida
se já é difícil vivê-la apenas uma vez?
Não vale a pena.
Antoine de Saint-Exupéry
(carta à sua mãe, Marie de Fonscolombe Saint-Exupéry)

Primeiramente, um livro bonito. Toda a montagem desse precioso volume demonstra um profundo culto ao notável piloto-escritor. Nathalie des Vallières, historiadora de arte e sobrinha neta de Saint-Exupéry, teve a colaboração da também historiadora Roselyne de Ayala para a realização da obra.

“Les plus beaux manuscrits de Saint-Exupéry” teve a primeira edição em 2003 e a reedição em 2019 (Éditions de la Martinière). A autora dividiu-o em capítulos precisos, a buscar transmitir parcela considerável da personalidade de Saint-Exupéry. A grande maioria dos leitores conhece apenas O Pequeno Príncipe, livro que alcançou tiragens fabulosas e continua a ter grande aceitação. Parte essencial do pensamento de Saint-Exupéry lá está de maneira extremamente sintetizada, mas a despertar em muitos leitores o interesse por outras obras do autor: Correio Sul, Terra dos Homens, Piloto de Guerra. Raríssimos chegam a desafiar sua obra-prima, a caudalosa Citadelle, tantas vezes mencionada em meus blogs.

A obra, ao apresentar inúmeros manuscritos, escritos a lápis ou caneta, insistentemente preenchidos por singelos desenhos, tantos como esboços àqueles que surgiriam em Le Petit Prince, revela ao leitor o instante do acontecido, momentos em que a ideia flui para o papel, seja ele de qualquer qualidade ou cor, branco, bege, com timbres de hotéis e restaurantes, todo material passível de receber a escrita do piloto escritor. Vem a demonstrar que o autor não deixava uma ideia enclausurada, buscando sempre que possível vertê-la para qualquer tipo de folha à sua disposição. Diferentemente da grande maioria dos escritores, Saint-Exupéry é itinerante, e o “escritório” da escrita tem ampla geografia.  Redigiu textos inclusive em cockpits durante suas travessias aéreas. Também durante voos, algumas das mais profundas reflexões do autor surgiam.

Nathalie des Vallières enriquece cada página manuscrita inserida não apenas com a sua devida atualização digitalizada, adicionando comentários preciosos a cada situação apresentada. Saliente-se que as páginas manuscritas ou datilografadas contêm inúmeras correções do autor, eliminação de palavras ou frases inteiras e tantas delas, numa mesma página, formam verdadeira “teia”, a configurar intenções de aprimoramento reflexivo ou de maior fluência. Saint-Exupéry assim procede nos textos que deverão compor seus livros.

As missivas de Antoine de Saint-Exupéry se estendem da infância a poucos dias antes de seu trágico desaparecimento em missão como piloto durante a segunda grande guerra. Pode-se, através das inúmeras páginas manuscritas, seguir a evolução de seus traços caligráficos que se transformam, mormente em momentos mais estressantes.

Os desenhos que proliferam em suas cartas estariam a demonstrar que há algo pictórico em seu pensamento, a necessitar dessa presença do traço que leva à figura humana ou a determinado objeto. Insistentemente esboços desenhados de O Pequeno Príncipe surgem em cartas à sua mãe ou a amigos em contextos outros. Dir-se-ia que a imagem do personagem mirim, presente em traços diferenciados, representaria o alter ego do autor.

Um capítulo é dedicado às cartas à sua mãe, Marie de Fonscolombe Saint-Exupéry, que se estendem durante toda a vida. Tendo perdido o pai na idade edipiana, concentra seu afeto na mãe. São missivas plenas de ternura, comentando observações do cotidiano, externando amor filial sensível e por vezes, principalmente durante os anos de formação em escolas e no serviço militar, solicitando alguma ajuda financeira. Aos 30 anos, testemunha esse afeto com palavras sensíveis: “No fundo, a ‘mãe’ é o único verdadeiro refúgio dos pobres homens”. Em 1932, casado, escreve: “Minha mãezinha, em Saint-Maurice você foi para Consuelo a mais terna das mães. Sou-lhe infinitamente grato”. Essas palavras carinhosas persistem e, um ano antes da morte trágica, em plena atividade como piloto durante a guerra, Saint-Exupéry escreve: “Espero ansiosamente estar em seus braços daqui a alguns meses, minha mãezinha, minha velha mamãe, minha afetuosa mãe”.

A mente privilegiada de Saint-Exupéry leva-o à invenção desde à infância. Sua irmã primogênita narraria experiências de Antoine para melhorar desempenho de sua bicicleta, assim como de uma outra com asas que acabou explodindo. Futuramente, suas patentes apresentadas relativas à aviação, no sentido de aperfeiçoamento, não foram aplicadas em França, mas algumas, nos Estados Unidos. Nathalie de Vallières comenta: “Uma de suas mais importantes invenções, aquela hoje nomeada DME (Distance Mesuring Equipment), depositada em 19 de Fevereiro de 1940 (com aditivo em 7 de Março), só foi publicada aos 20 de Agosto de 1947 sob o título “Novo método de localizações por ondas eletromagnéticas”. Esse medidor de distância, presente hoje em todos os aviões, não existia até 1940. Saint-Exupéry estabelecera um dos princípios do radar”. Aos 28 de Novembro de 1939, patenteia um “torpedo aéreo” junto ao Instituto nacional de propriedade industrial. Igualmente no campo da matemática mostrou-se capaz.

Um capítulo é reservado à figura feminina na vida de Saint-Exupéry. Independentemente do extremo afeto filial, Saint-Exupéry teve inúmeros romances que não perduraram ou amizades femininas perenes, platônicas ou não, que gravitaram em sua vida. Foi considerado noivo oficial da escritora Louise de Vilmorin, sendo que a vocação do piloto-escritor teria sido um dos motivos da ruptura. Em 1931 há o casamento com a salvadorenha Consuelo Suncin, de “temperamento vulcânico e de menina mimada”, segundo Nathalie des Vallières, sendo que o relacionamento nem sempre foi harmonioso, devido em parte à vida itinerante de Saint-Exupéry. Como fato narrado em “Terre des Hommes”, quando relata o drama de seu amigo  Henri Guillaumet (1902-1940), que, após queda nos Andes nevados, teria caminhado durante cinco dias e sobrevivido mercê da certeza de não ter assinado o seguro de sua mulher, Saint-Exupéry sofre acidente e, após ter sido resgatado no deserto da Líbia, escreve: “É terrível deixar para trás alguém que tenha necessidade de você, como Consuelo”. Um subcapítulo é dedicado à irmã Simone, latinista, arquivista e historiadora, que viveu 25 anos na Indochina em função profissional. Cartas plenas de carinho e, em uma delas, Antoine a estimula ao casamento. Simone nunca se casaria.

Nathalie des Vallières comenta: “Todas as mulheres que ele sublima nas cartas e em seus pensamentos, mas que aparecem raramente em suas obras, exceção à Geneviève em Courrier Sud, a mulher de Fabien em Vol de Nuit e a Rosa do Pequeno Príncipe, iluminaram com uma doce aura a vida de Saint-Exupéry”.

Já narrei, em blog muito anterior (09/11/2007), ter participado com Simone de Saint Exupéry (1898-1978), de reuniões literárias inesquecíveis na morada em Paris de seu primo irmão, Barão André de Fonscolombe . O leitor que quiser acessar o blog “Antoine de Saint-Exupéry” encontrará dados desse período que se prolongou ao longo de 1959:

http://blog.joseeduardomartins.com/index.php/2007/11/page/2/

No próximo blog comentarei Antoine de Saint-Exupéry aviador, suas performances, seus inúmeros acidentes aéreos, seus colegas de profissão e a morte como fixação progressiva. Trechos de cartas e excertos dos livros do piloto-escritor dimensionarão os comentários.

In two posts I’ll write some notes on a book I’ve just finished reading: “Les plus beaux manuscrits de Saint-Exupéry” (published in English with the title “Saint Exupéry: Art, Writings and Musings”), a collection of letters, drawings, photos and private notebooks of the French writer and aviator (1900-1944) assembled with adoring reverence by his great-niece, the art historian Nathalie des Vallières. Each chapter covers one aspect of Saint-Exupéry’s life: childhood, friendships, relationship with mother, wife and other women, the inventor with many patents to his name, his passion for writing, drawing, flying, his participation in the war, his thoughts about death. One entire chapter is dedicated to Saint-Exupéry’s affectionate correspondence with his mother, extending from childhood to 1944, the year of his death. Another chapter addresses the various women of his life: wife, sisters, friends, romantic liaisons. A beautiful and richly illustrated edition with reproductions of Saint-Exupéry’s original manuscripts and drawings, in special the omnipresent sketches of “The Little Prince”, maybe an alter ego of the author, the book provides valuable information about life and thoughts of an extraordinary artist and human being. In the next post I will resume this book, dealing with the chapters in which Saint-Exupéry, in his lyrical and philosophical prose, writes about the fascination and dangers of flying, solidarity among professional colleagues, his obsession with death.


A partir do “trailer” de “O Labirinto da Saudade”

Em todo o caso, que se sinta só;
mas não vá supor que é muito grande;
da sua grandeza, se a tiver real,
fará parte o supor que os outros são pequenos.
Agostinho da Silva
(“Entrevistas”)

Recebi de dileto amigo português, o arquiteto António Menéres, “trailer” do filme de Manuel Gonçalves Mendes, “O Labirinto da Saudade”, a partir do livro homônimo do notável filósofo, ensaísta e professor Eduardo Lourenço (1923- ). Denominado “O Bar da Eternidade”, essa pequena e substanciosa cena de quatro minutos revela temas fulcrais da existência. Há um diálogo de extrema relevância entre Eduardo Lourenço e uma figura igualmente ilustre da cultura em Portugal, o arquiteto Álvaro Siza Vieira (1933- ).

Inicialmente Siza Vieira questiona: “O que ficará de nós, homens e mulheres, se é que alguma coisa fica, quando partirmos em férias?” a receber do filósofo: “Quem dera que a resposta à sua pergunta fosse essa tão lírica e tão futurante como o partir em férias. A nossa própria morte é-nos tão hostil que nós nem em sonhos morremos. A morte verdadeira é a do outro. A do outro que existiu para nós. Que foi tudo para nós, que foi o absoluto para nós. E essa que é a morte real. As outras mortes são ilusórias, mesmo a nossa, sobretudo a nossa”.

Segue-se um diálogo enriquecedor em torno da vida e da morte, das incertezas a envolver a complexa dialética em torno da passagem inexorável, mormente se considerada for a etariedade dos insignes envolvidos.

Siza Vieira observa nada sabermos sobre nascimento, vida e morte, mas sim sobre continuidade através das gerações que se sucedem, “continuidade da vida, e quando um de nós morre há filhos, netos, música para músicos, artes, escrita, literatura… Não desaparecemos completamente. O mundo continua. A História, no fundo, tem esse papel de sugerir ou de fazer real uma continuidade, agora a morte não”. A colocação de Siza provoca resposta essencial de Eduardo Lourenço: “O problema é que, consciente ou inconscientemente, escrevemos como se fôssemos eternos. Sem essa ilusão de eternidade como coisa nossa, nós não escreveríamos nada de realmente grandioso. O que os homens querem é que aquilo se transfigure numa espécie de estátua, que se pode tocar, viver e permanecer através dos séculos”. Após louvar Siza Vieira, dele recebe o testemunho: “Eu faço os meus projetos com a ideia de que… essa ideia de que é para ficar. Mas pensando friamente, não é bem assim. Também a construção, muitas vezes, não é durável. É vulnerável…”. Eduardo Lourenço de imediato afirma: “Hiroshima existia e foi destruída em nove segundos. É como se fossem feridas que a Humanidade faz a si mesma, não é? E essas sem reparação. Porque foram destruídas e não podem ser reconstruídas de nenhuma maneira. Aquilo que de mais belo há na humanidade é que nós somos submersos às mesmas forças que regem realmente o mundo. Porque é que nós escaparíamos, quando tudo o que foi criado está condenado a desaparecer?”, conceitos concluídos por Siza Vieira: “E se assim não fosse talvez se tornasse insuportável”.

Consideremos as observações sobre o legado, esperançosas inicialmente por parte de Siza Vieira, mas com a ressalva “… não é bem assim”. Por sua vez, Eduardo Lourenço, mais cético nesse item, diz “… tudo o que foi criado está condenado a desaparecer”.

O legado de obra física sempre foi mais vulnerável ao desaparecimento através dos séculos. São incontáveis os monumentos, obras de arte, pinturas, bibliotecas que sucumbiram ao tempo por causas naturais, intencionais ou imprevistas. Alguns exemplos são implacáveis: Biblioteca de Alexandria, no período helenístico, teria sido destruída pelo fogo; Biblioteca Real de Lisboa arrasada durante o terremoto de 1755, assim como inúmeros monumentos históricos da cidade; Catedral Notre-Dame de Reims semidestruída pelos bombardeios alemães na guerra 1914-1918; pinturas de Manabu Mabe, que seriam expostas em grande retrospectiva no Japão, perderam-e em acidente aéreo em 1978; O Templo de Baalshamin, edificado no início do primeiro milênio, explodido pelos integrantes do então denominado EI em 2015; Museu Nacional do Rio de Janeiro e seu extraordinário acervo consumido pelo fogo em 2018, assim como parte considerável da Catedral de Notre-Dame de Paris bem recentemente. O tempo inexorável corroeu tantas obras arquitetônicas na Grécia e na Roma Antigas, assim como na Península Ibérica e em muitos outros pontos geográficos. Considere-se ainda a ação de descaso de tantas autoridades espalhadas pelo mundo, que pouco fazem para a conservação de obras de arte expostas às intempéries.

Esses poucos, mas significativos exemplos, ratificam o posicionamento de Eduardo Lourenço. Contudo, exceções ou exceção há nesse legado. Pensando-se na literatura e na música, verifica-se que a herança não se atém à obra de arte material inerte que habita galerias e museus e é vista por legiões de frequentadores. Walter Benjamin, no ensaio publicado em 1936, “A obra de arte na era da sua reprodutividade técnica”, já argumentava que a reprodução em tantos formatos de uma obra de arte causou a perda da “aura”, depreendendo dessa constatação, a autenticidade. O hic et nunc desapareceria para sempre. Considere-se que a obra de arte material, única e autêntica, nessa categoria incluindo-se a pintura, a escultura e a arquitetura, tem sofrido constantemente o lento e inexorável desaparecimento.

Quanto à literatura, ela independe da presença física dos manuscritos, pois obviamente subsiste sem contestação através da reprodução. Os museus, arquivos e bibliotecas dão a guarida necessária aos textos originais, majoritariamente distantes do público leigo e consultados por especialistas quando se faz necessário. Portanto, perdurarão em edições divulgadas em versões para tantas línguas. O teatro, que traduz em cena o que reza segmento literário, vive do intérprete, ou seja, do ator. Este é geograficamente regionalizado, pois sua atuação é realizada frente àqueles que compartilham o mesmo idioma. Sua internacionalização é basicamente exígua, sendo que o texto teatral não o é, pois vertido para outros idiomas encontrará atores de outros países para divulgá-lo e o legado estaria garantido.

Seria a música a única área em que o legado estaria salvaguardado geograficamente em sua abrangência territorial plena. Os sons são compreendidos em todos os rincões e o amálgama compositor-intérprete não tem fronteiras. Todos os povos compreendem a unicidade da Música.

Partituras, assim como textos literários, podem subsistir sob a proteção de entidades que os abrigam. Se essas desaparecerem por múltiplas razões, a reprodução ad infinitum garante parte essencial de acervos, perenidade pois. Para a interpretação o legado teria tempo finito, pois mesmo a saber que processos tecnológicos estariam sempre in progress, haverá um momento, acredita-se, que distorções sonoras quanto às centenárias gravações ocorrerão, como já acontece com muitos registros fonográficos das primeiras décadas do século XX. Saliente-se que extraordinários avanços tecnológicos têm conseguido resultados surpreendentes quanto às antigas gravações.

Num outro patamar, a arte cinematográfica seria aquela, talvez, que mais tem sofrido a ação do tempo. Quão mais antigos os filmes de qualidade, mais ficam restritos a públicos especializados, admiradores da arte específica. Para o grande público, ávido do novo, mais acentuadamente se processa o distanciamento com o passado cinematográfico. Contudo, igualmente no caso, o legado estaria garantido mercê de processos novos, que têm conseguido êxito na restauração de originais. Sob outra égide, o filme se internacionaliza através das legendas ou das dublagens, estas sempre lamentáveis.

Nada sabemos sobre a duração do planeta. Incógnita. A destruição sistemática das reservas naturais, os conflitos os mais generalizados movidos por motivos de várias ordens: religioso, ideológico, racismo; guerras intestinas e terrorismo; descaso; a decadência dos costumes, tudo não estaria tornando a terra uma gigantesca panela de pressão com mínimo escape? Para os mais pessimistas, toda discussão em torno do legado esbarraria nessa desesperança. Todavia, a presença constante da morte, mors certa hora incerta, assim como a necessidade de se pensar em legados, ainda movem a humanidade, apesar da sábia advertência de Eduardo Lourenço: “Porque é que nós escaparíamos quando tudo o que foi criado está condenado a desaparecer?”.

This post discusses views about life, death and human legacy to History. It was inspired by a conversation between philosopher Eduardo Lourenço and architect Álvaro Siza Vieira, two of the most influential Portuguese intellectuals of the 20th and early 21st centuries.