Livro a corroborar o desvelamento do autor

Nunca compreendi e não compreenderei jamais
que as pessoas trocam histórias que não têm a menor importância,
pois são histórias distorcidas.
Será que teríamos a necessidade de desperdiçar a vida
se já é difícil vivê-la apenas uma vez?
Não vale a pena.
Antoine de Saint-Exupéry
(carta à sua mãe, Marie de Fonscolombe Saint-Exupéry)

Primeiramente, um livro bonito. Toda a montagem desse precioso volume demonstra um profundo culto ao notável piloto-escritor. Nathalie des Vallières, historiadora de arte e sobrinha neta de Saint-Exupéry, teve a colaboração da também historiadora Roselyne de Ayala para a realização da obra.

“Les plus beaux manuscrits de Saint-Exupéry” teve a primeira edição em 2003 e a reedição em 2019 (Éditions de la Martinière). A autora dividiu-o em capítulos precisos, a buscar transmitir parcela considerável da personalidade de Saint-Exupéry. A grande maioria dos leitores conhece apenas O Pequeno Príncipe, livro que alcançou tiragens fabulosas e continua a ter grande aceitação. Parte essencial do pensamento de Saint-Exupéry lá está de maneira extremamente sintetizada, mas a despertar em muitos leitores o interesse por outras obras do autor: Correio Sul, Terra dos Homens, Piloto de Guerra. Raríssimos chegam a desafiar sua obra-prima, a caudalosa Citadelle, tantas vezes mencionada em meus blogs.

A obra, ao apresentar inúmeros manuscritos, escritos a lápis ou caneta, insistentemente preenchidos por singelos desenhos, tantos como esboços àqueles que surgiriam em Le Petit Prince, revela ao leitor o instante do acontecido, momentos em que a ideia flui para o papel, seja ele de qualquer qualidade ou cor, branco, bege, com timbres de hotéis e restaurantes, todo material passível de receber a escrita do piloto escritor. Vem a demonstrar que o autor não deixava uma ideia enclausurada, buscando sempre que possível vertê-la para qualquer tipo de folha à sua disposição. Diferentemente da grande maioria dos escritores, Saint-Exupéry é itinerante, e o “escritório” da escrita tem ampla geografia.  Redigiu textos inclusive em cockpits durante suas travessias aéreas. Também durante voos, algumas das mais profundas reflexões do autor surgiam.

Nathalie des Vallières enriquece cada página manuscrita inserida não apenas com a sua devida atualização digitalizada, adicionando comentários preciosos a cada situação apresentada. Saliente-se que as páginas manuscritas ou datilografadas contêm inúmeras correções do autor, eliminação de palavras ou frases inteiras e tantas delas, numa mesma página, formam verdadeira “teia”, a configurar intenções de aprimoramento reflexivo ou de maior fluência. Saint-Exupéry assim procede nos textos que deverão compor seus livros.

As missivas de Antoine de Saint-Exupéry se estendem da infância a poucos dias antes de seu trágico desaparecimento em missão como piloto durante a segunda grande guerra. Pode-se, através das inúmeras páginas manuscritas, seguir a evolução de seus traços caligráficos que se transformam, mormente em momentos mais estressantes.

Os desenhos que proliferam em suas cartas estariam a demonstrar que há algo pictórico em seu pensamento, a necessitar dessa presença do traço que leva à figura humana ou a determinado objeto. Insistentemente esboços desenhados de O Pequeno Príncipe surgem em cartas à sua mãe ou a amigos em contextos outros. Dir-se-ia que a imagem do personagem mirim, presente em traços diferenciados, representaria o alter ego do autor.

Um capítulo é dedicado às cartas à sua mãe, Marie de Fonscolombe Saint-Exupéry, que se estendem durante toda a vida. Tendo perdido o pai na idade edipiana, concentra seu afeto na mãe. São missivas plenas de ternura, comentando observações do cotidiano, externando amor filial sensível e por vezes, principalmente durante os anos de formação em escolas e no serviço militar, solicitando alguma ajuda financeira. Aos 30 anos, testemunha esse afeto com palavras sensíveis: “No fundo, a ‘mãe’ é o único verdadeiro refúgio dos pobres homens”. Em 1932, casado, escreve: “Minha mãezinha, em Saint-Maurice você foi para Consuelo a mais terna das mães. Sou-lhe infinitamente grato”. Essas palavras carinhosas persistem e, um ano antes da morte trágica, em plena atividade como piloto durante a guerra, Saint-Exupéry escreve: “Espero ansiosamente estar em seus braços daqui a alguns meses, minha mãezinha, minha velha mamãe, minha afetuosa mãe”.

A mente privilegiada de Saint-Exupéry leva-o à invenção desde à infância. Sua irmã primogênita narraria experiências de Antoine para melhorar desempenho de sua bicicleta, assim como de uma outra com asas que acabou explodindo. Futuramente, suas patentes apresentadas relativas à aviação, no sentido de aperfeiçoamento, não foram aplicadas em França, mas algumas, nos Estados Unidos. Nathalie de Vallières comenta: “Uma de suas mais importantes invenções, aquela hoje nomeada DME (Distance Mesuring Equipment), depositada em 19 de Fevereiro de 1940 (com aditivo em 7 de Março), só foi publicada aos 20 de Agosto de 1947 sob o título “Novo método de localizações por ondas eletromagnéticas”. Esse medidor de distância, presente hoje em todos os aviões, não existia até 1940. Saint-Exupéry estabelecera um dos princípios do radar”. Aos 28 de Novembro de 1939, patenteia um “torpedo aéreo” junto ao Instituto nacional de propriedade industrial. Igualmente no campo da matemática mostrou-se capaz.

Um capítulo é reservado à figura feminina na vida de Saint-Exupéry. Independentemente do extremo afeto filial, Saint-Exupéry teve inúmeros romances que não perduraram ou amizades femininas perenes, platônicas ou não, que gravitaram em sua vida. Foi considerado noivo oficial da escritora Louise de Vilmorin, sendo que a vocação do piloto-escritor teria sido um dos motivos da ruptura. Em 1931 há o casamento com a salvadorenha Consuelo Suncin, de “temperamento vulcânico e de menina mimada”, segundo Nathalie des Vallières, sendo que o relacionamento nem sempre foi harmonioso, devido em parte à vida itinerante de Saint-Exupéry. Como fato narrado em “Terre des Hommes”, quando relata o drama de seu amigo  Henri Guillaumet (1902-1940), que, após queda nos Andes nevados, teria caminhado durante cinco dias e sobrevivido mercê da certeza de não ter assinado o seguro de sua mulher, Saint-Exupéry sofre acidente e, após ter sido resgatado no deserto da Líbia, escreve: “É terrível deixar para trás alguém que tenha necessidade de você, como Consuelo”. Um subcapítulo é dedicado à irmã Simone, latinista, arquivista e historiadora, que viveu 25 anos na Indochina em função profissional. Cartas plenas de carinho e, em uma delas, Antoine a estimula ao casamento. Simone nunca se casaria.

Nathalie des Vallières comenta: “Todas as mulheres que ele sublima nas cartas e em seus pensamentos, mas que aparecem raramente em suas obras, exceção à Geneviève em Courrier Sud, a mulher de Fabien em Vol de Nuit e a Rosa do Pequeno Príncipe, iluminaram com uma doce aura a vida de Saint-Exupéry”.

Já narrei, em blog muito anterior (09/11/2007), ter participado com Simone de Saint Exupéry (1898-1978), de reuniões literárias inesquecíveis na morada em Paris de seu primo irmão, Barão André de Fonscolombe . O leitor que quiser acessar o blog “Antoine de Saint-Exupéry” encontrará dados desse período que se prolongou ao longo de 1959:

http://blog.joseeduardomartins.com/index.php/2007/11/page/2/

No próximo blog comentarei Antoine de Saint-Exupéry aviador, suas performances, seus inúmeros acidentes aéreos, seus colegas de profissão e a morte como fixação progressiva. Trechos de cartas e excertos dos livros do piloto-escritor dimensionarão os comentários.

In two posts I’ll write some notes on a book I’ve just finished reading: “Les plus beaux manuscrits de Saint-Exupéry” (published in English with the title “Saint Exupéry: Art, Writings and Musings”), a collection of letters, drawings, photos and private notebooks of the French writer and aviator (1900-1944) assembled with adoring reverence by his great-niece, the art historian Nathalie des Vallières. Each chapter covers one aspect of Saint-Exupéry’s life: childhood, friendships, relationship with mother, wife and other women, the inventor with many patents to his name, his passion for writing, drawing, flying, his participation in the war, his thoughts about death. One entire chapter is dedicated to Saint-Exupéry’s affectionate correspondence with his mother, extending from childhood to 1944, the year of his death. Another chapter addresses the various women of his life: wife, sisters, friends, romantic liaisons. A beautiful and richly illustrated edition with reproductions of Saint-Exupéry’s original manuscripts and drawings, in special the omnipresent sketches of “The Little Prince”, maybe an alter ego of the author, the book provides valuable information about life and thoughts of an extraordinary artist and human being. In the next post I will resume this book, dealing with the chapters in which Saint-Exupéry, in his lyrical and philosophical prose, writes about the fascination and dangers of flying, solidarity among professional colleagues, his obsession with death.