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Maurizio Pollini (1942-2024) e Alfred Brendel (1931-2025)

É preciso ter, pela música que se ouve, executa ou compõe,
o mesmo respeito profundo que se tem pela própria existência.
Como se fosse uma questão de vida ou morte.
Pierre Boulez (1925-2016)

A geração de ilustres pianistas nascidos na primeira metade do século XX, que pontificou na cena artística não apenas através das apresentações públicas como pelas gravações, estas, legado que se perpetuará, estiola-se. Em termos pátrios, três relevantes pianistas premiados no primeiro concurso Internacional realizado no Rio de Janeiro – Fernando Lopes (1935-2019), Arthur Moreira Lima (1940-2024) e Nelson Freire (1944-2021) – deixaram-nos, sendo que Nelson Freire teve brilhante carreira internacional constante.

Os recentes falecimentos de Alfred Brendel, aos 17 deste mês, e o de Maurizio Pollini em 2024, causaram forte impressão no meio musical, máxime pela excelência de suas interpretações, mas também pelo extenso repertório de ambos, apesar de approaches diferenciados quanto ao resultado final da execução dos dois mestres do teclado.

A morte de luminares da interpretação pianística nascidos naquele período fez desaparecer a liturgia do ato interpretativo forjado na preocupação primeira, a obra musical sendo mais valorizada do que os holofotes voltados ao intérprete. Havia um padrão a enaltecer o pianista unicamente através do seu culto pleno ao conteúdo existente na partitura, mas que se foi diluindo nas últimas décadas. Logicamente, sempre houve em todas as épocas, a presença de determinados pianistas que se tornaram lendários pela perfeição de suas interpretações. Em blogs bem anteriores dediquei inúmeros posts a notáveis pianistas, todos pertencentes à geração mencionada. Mais recentemente, intérpretes com reais dons agregaram outros elementos ao ato da apresentação, e a maioria do público acompanhou e até saudou essas “inovações”, como gestual exagerado, indumentária chamativa e mesmo, o que é lamentável, arbitrariedades quanto à partitura, sendo que, sob a ótica técnico-pianística e musical, há muitos pianistas com inquestionáveis dons e seguidores da tradição que se apresentam pelo mundo, sem a popularidade dos ungidos pelo sirtema.

Alfred Brendel e Maurizio Pollini pertencem a essa casta excelsa em extinção, ungida pelos pares e pelo público mais conservador. Distanciaram-se diametralmente das gerações seguidas, que priorizam o espetáculo, as composições mais impactantes, a causar forte impressão sobre parte considerável do público que, subjugado, esquece-se da essência musical. Há nos dois que partiram o culto ao sagrado, a transmissão por inteiro da mensagem dos compositores eleitos. Nesse aspecto, Brendel e Pollini se identificam. Se cultuaram o repertório romântico estabelecido a partir do século XIX, diferenças há quanto a determinadas escolhas repertoriais feitas pelos dois pianistas.

Maurizio Pollini foi um dos mais versáteis pianistas da geração ora em extinção. Sua carreira tomou impulso após obter o 1º Prêmio no consagrado Concurso Internacional Chopin em 1960, aos 18 anos. Desenvolveria a seguir uma das mais sólidas carreiras. Pollini não apenas foi intérprete dos grandes compositores românticos, como Beethoven, Schubert, Schumann, Liszt, Brahms, mas também cultivou Debussy, Béla Bartok, Stravinsky, Shoenberg, Webern, Alban Berg, Luigi Nono… Amigo de Pierre Boulez, gravou a 2ª Sonata do compositor.  Essa opção por repertórios distintos não é comum àqueles que se dedicam aos grandes mestres, preferencialmente os românticos.

O vastíssimo repertório de Maurizio Pollini teve a dimensioná-lo seu virtuosismo absoluto, seu respeito pelas concepções dos criadores do passado e do presente e a reserva que o afastou por vocação daquilo que nomeamos holofotes, tão presentes entre muitos da nova geração, luminosidade que, inúmeras vezes, corrobora desvios dos desideratos precípuos dos compositores. Um grande mestre que partiu, deixando como legado uma vasta discografia.

Estou a me lembrar que o único contato que tive com Maurizio Pollini se deu em Vercelli, na Itália, em 1960, pois participei do Concurso Internacional de Piano “G.B.Viotti”, tendo obtido a medalha de prata. Durante o concurso, estava repassando o Estudo de oitavas op. 25 nº10, de Chopin, quando adentra a sala Pollini a tecer palavras elogiosas, bem ele já àquela altura um pianista renomado que, meses antes, obtivera o 1º Prêmio no Concurso Internacional Fréderic Chopin, um dos mais prestigiados do mundo. Palavras que me encorajaram para as provas à frente.

Clique para ouvir, de Fréderic Chopin, Balada nº 4 em fá menor, op. 52, na interpretação de Maurizio Pollini:

https://www.youtube.com/watch?v=UhAxeWrUpy8&t=16s

Alfred Brendel tardou para ter o reconhecimento público pleno. Não participou dos concursos que impulsionam o intérprete. Concentrou-se mais nas gravações, primeiramente nos LPs. Cultuou com o maior rigor as composições de J.S.Bach, Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert, Liszt, este preferencialmente numa primeira fase. Foram as gravações que fizeram inicialmente a sua nomeada nos Estados Unidos. Harold C. Shonberg (1915-2003) afirma que Brendel “…não tocava música francesa, tampouco Chopin, nem música russa – apesar de muitos anos atrás ter gravado os ‘Quadros de uma Exposição’ de Moussorgsky e outras peças russas – e, curiosamente, pouco Schumann ou Brahms”. Entre as suas qualidades maiores, mencione-se o absoluto respeito à ideia do compositor, a técnica a serviço unicamente da expressão maior da obra interpretada. Ao longo das décadas, a crítica especializada salientou esse rigor de suas execuções, mas outros o consideravam muito austero. Alfred Brendel deixou inúmeras gravações, entre elas a que assinala um pioneirismo, a integral para piano de Beethoven. Um verdadeiro intelectual ao piano – no melhor dos sentidos -, como também poeta e compositor.

Uma constante de Alfred Brendel que apreendi da parte de Taki Petrou, excelente afinador dos “Pianos Maene” e do Palais des Beaux Arts em Bruxelas, evidencia o rigor do pianista. Dizia-me Taki que Brendel era o único pianista – entre inúmeros outros oriundos de tantos países que lá se apresentavam – que ficava ao lado do afinador, seguindo atentamente toda a afinação nas várias vezes em que se apresentou no Palais des Beaux Arts. Anualmente Taki afinava o piano que chegava para as minhas gravações ao longo dos anos na Igreja Saint Hylarius em Mullem, na planície flamenga, lançadas posteriormente pelo selo belga De Rode Pomp.

Clique para ouvir, de Franz Schubert, a Sonata nº 18, D 894, em Sol Maior, na magnífica interpretação de Alfred Brendel, que revela nesta gravação uma compreensão somente apreendida por um músico pleno de todas as qualidades possíveis:

https://www.youtube.com/watch?v=cBisjKwg43U&t=108s

O desaparecimento inexorável dos ícones da arte pianística nascidos na primeira metade do século XX leva à reflexão sobre o que se está a presenciar nessas primeiras décadas do século XXI. O avanço sistemático de todas as correntes envolvidas com a música genericamente nomeada popular dá evidências de se tornar irreversível, o que faz com que muitos intérpretes de enorme talento da denominada música erudita utilizem-se de artifícios extras para se manter ainda mais na ribalta. Esvai-se a aura tão presente nas  interpretações de Alfred Brendel e Maurizio Pollini. Suas mensagens musicais, que penetraram na mente e nos corações dos ouvintes, continuam a se infiltrar através de inefáveis gravações, legado a ser conservado.

The recent death of two extraordinary pianists, Maurizio Pollini and Alfred Brendel, leads us to reflect on musical interpretation based solely on absolute respect for the works of great composers. They were two great masters belonging to a generation that is dying out, because pianists of the new generation tend to introduce extramusical elements in their public performances. The aura has been lost.

 

“Carlos Seixas, estrela de Coimbra”

Encarna Carlos Seixas um estilo individual,
um estilo e uma estética portuguesa,
diferentes da arte italiana, francesa, alemã, inglesa, espanhola ou polaca.
Santiago Kastner
(“Carlos Seixas”, 1947)

Recebi com alegria artigo do notável medievalista João Gouveia Monteiro, professor titular jubilado da Universidade de Coimbra, abordando um dos mais importantes compositores europeus que escreveram para cravo, Carlos Seixas (1704-1742), hoje interpretado igualmente ao piano e ao órgão. Ao longo de mais de 18 anos de blogs hebdomadários, publicados ininterruptamente desde Março de 2007, tenho salientado a majoritária presença do  repertório sacralizado nas programações de recitais. Mentes têm relutância em apresentar compositores extraordinários, mas que não tiveram as graças do tripé formado pelo agenciador de concertos, intérprete habituado à eterna repetição de compositores em seus programas e o Estado, este  carente de verdadeiros especialistas com ampla visão da cultura humanística, figuras raríssimas ao longo do tempo.

João Gouveia Monteiro, exemplo de lhaneza, permitiu que incluísse em meu blog o artigo “Carlos Seixas, estrela de Coimbra”, publicado no “Diário de Coimbra” no dia 11 de Junho. Sabia o dileto amigo que tanto o genial Carlos Seixas, assim como o meu saudoso Pai (1898-2000) e este pianista nasceram no dia 11 de Junho.

Motivo fundamental, já observado em blogs há mais de uma década, testemunha o meu apreço às composições para cravo de Seixas. Quando adolescente, recebi da ilustre pianista polonesa Felicja Blumental (1908-1991) um LP com Sonatas para cravo de Carlos Seixas interpretadas ao piano. Fiquei totalmente subjugado pela beleza daquelas criações.

Clique para ouvir, de Carlos Seixas, Sonata em Sol menor, na interpretação de Felicja Blumental:

https://www.youtube.com/watch?v=gHLjftKaMDY&t=7s

Em 2004, o selo belga De Rode Pomp lançou um álbum com dois CDs e 23 Sonatas de Carlos Seixas que gravei em Mullem, na Bélgica Flamenga. Ao longo das décadas, não poucas vezes abri meus recitais em vários países interpretando Sonatas de Carlos Seixas. Em 2004, centenário do excelso músico, a Universidade de Coimbra prestou justíssima homenagem ao ilustre filho nascido na cidade. O professor João Gouveia Monteiro era, naquele período, Pró-Reitor da Cultura. O renomado  musicólogo José Maria Cardoso (1942-2021), saudoso amigo, professor da Universidade, teve a feliz ideia de programar as Sonatas de Carlos Seixas em três instrumentos diferentes: cravo, destino original da criação, órgão e piano. O cravista norueguês Ketil Haugsang, o organista espanhol José Luis Gonzalles Uriol e eu apresentamos Sonatas do notável compositor em três dias sucessivos, na Biblioteca Joanina (cravo e piano) e na Capela Real (órgão).

Clique para ouvir, de Carlos Seixas, a Sonata em Si bemol Maior (78), na interpretação de J.E.M:

https://www.youtube.com/watch?v=E8GX3qIjfLI&t=20s

O texto claro e de síntese do professor Gouveia Monteiro, expõe dados fundamentais do músico conimbricense: “O voo do condor – Carlos Seixas, estrela de Coimbra”:

“Carlos Seixas é para muitos o maior músico português de sempre. Nasceu em Coimbra a 11.VI.1704, ou pouco depois (o batismo foi a 10.VII). A família veio de Tomar, pois em 1699 o pai, Francisco Vaz, foi contratado pelo Cabido como organista da Sé. A família instalou-se na Alta, na Rua da Ilha, e aí deve ter nascido o prodígio.

Francisco Vaz casara com uma senhora de Tomar, Marcelina Nunes. Antes de José António Carlos, o casal teve um filho (Francisco) que estudou Medicina e faleceu em 1711. A análise da sua candidatura à UC permitiu ao saudoso Abílio Queirós (a quem devo estes dados) apurar a existência de alguns religiosos na família de Seixas, cujo avô materno fora alfaiate.

É pouco o que, apesar de Barbosa Machado («Bibliotheca Lusitana», s. XVIII), sabemos sobre José António Carlos «de Seixas» (nome usado por um primo que estudou Cânones em Coimbra). Porém, é certo que quando o pai faleceu, tinha ele 14 anos, foi a escolha do Cabido para organista da Sé! Cumpria-se a boa regra: o organista titular devia preparar o sucessor…

A formação musical de Seixas fez-se à sombra da Sé Velha, do Mosteiro de Sta. Cruz e das capelas da UC. Não existia uma escola para formar organistas, mas as lições do Mestre de Capela da Catedral foram cruciais na sua aprendizagem do canto e da teoria musical. Certo é que o portento se destacou, rumando à capital c. 1722.

Seixas ensinou em casas particulares de Lisboa e tornou-se organista da Santa Basílica Patriarcal. Teve assim acesso à corte de D. João V e D. Maria Ana de Áustria. Manuel C. Brito subdividiu os espaços musicais da Lisboa desse tempo em cinco grupos: música sacra, de corte, (semi)privada, teatral e pública de ar livre. Seixas só não terá intervindo nos dois últimos, beneficiando dos mecenatos do rei e do Visconde de Barbacena.

Como organista, compôs obras vocais religiosas, mas o grosso das suas sonatas destinou-se a instrumentos de tecla de corda, como o cravo ou o clavicórdio! Em Santa Cruz fizeram-se cinco livros de cópias da sua música, de que a UC conserva dois (58 sonatas). Mas a maioria dos Ms. estão fora de Coimbra: todos os de música vocal (arquivos de Viseu, Lisboa, Elvas e Évora) e vários com a sua música instrumental (Bibliotecas Nacional e da Ajuda).

Na corte joanina, Seixas encontrou Domenico Scarlatti (em Portugal entre 1719-1729), célebre compositor que nutriu grande admiração por ele. Porém, afirmou um estilo próprio. O grande pianista J. Eduardo Martins disse que Seixas captou a alma lusitana, com alguns andamentos bem lentos a par de terminações em andamentos rápidos, modulações e uma constante ‘culminância emotiva’.

O isolamento português e a partida de Scarlatti estimularam a sua originalidade, de que a Inf.ª Maria Bárbara, futura rainha de Espanha, terá sido a maior beneficiária. Mas Seixas morreu em 1742, aos 38 anos, de febre reumática, deixando mulher e cinco filhos. Um mês depois, os círculos cultos da corte dedicaram-lhe solenes exéquias, do que resultou a famosa gravura de J. Daullé sobre retrato de Vieira Lusitano, estudada por A. Filipe Pimentel.

A obra de Seixas (coeva de Bach, Händel, Rameau) foi pouco conhecida durante muito tempo. O próprio cravo, embora o seu repertório fosse muito apreciado, viveu tempos difíceis no século XIX, esmagado pelo triunfo do pianoforte e do piano. Coube ao musicólogo inglês Santiago Kastner resgatar o legado de Seixas: as 1.as edições da sua obra para teclado seriam publicadas pela Schott em 1935/1950.

Em 1980/1992, a FCG editaria 105 sonatas de Seixas para instrumentos de teclas. A Ivo Cruz, G. Doderer, Cremilde Fernandes, J.P. Alvarenga, João Vaz, Pedrosa Cardoso e J. E. Martins, entre outros, se devem contributos preciosos para iluminar o génio desta estrela maior de Coimbra, que vale a pena celebrar e ouvir em órgão, cravo ou piano 321 anos depois. Ouça ainda hoje o seu concerto em Lá maior!”.

Clique para ouvir, de Carlos Seixas, o “Concerto em Lá Maior” para cravo, na interpretação do cravista norueguês Ketil Haugsang, acompanhado pela Orquestra Barroca da Noruega:

https://www.youtube.com/watch?v=B-meg1tT2J0

O resgate inicial de Carlos Seixas realizado por Santiago Kastner, inicialmente com a edição de Sonatas e Tocatas (Schott, 1935-1950), após com o livro “Carlos Seixas” (Coimbra, Coimbra Editora, 1947) e bem posteriormente com a edição do conjunto de Sonatas (Fundação Calouste Gulbenkian, 1980-1992), corroboraram para a divulgação ainda tímida, diga-se, da obra do notável compositor. Kastner apreende em seu livro algo fundamental a respeito de como captar a essência da música de Carlos Seixas: “Quer a arte de Seixas ser manuseada com afeto e delicadeza. A querençosa bonança, a transparente boniteza desta música pede ser enquadrinhada com o gosto requintado do ‘connoisseur’ ou do provador selecto”.

Clique para ouvir, de Carlos Seixas, Sonata em lá menor, na interpretação de J.E.M. Gravação do recital na Igreja do Convento Nª Senhora dos Remédios, em Évora (11/11/2011):

https://www.youtube.com/watch?v=BP3Aic2bvac

The distinguished professor at the University of Coimbra, João Gouveia Monteiro, recently wrote an article about the great Portuguese composer Carlos Seixas (1704-1742) and published it in the Diário de Coimbra on June 11, the date of the remarkable musician’s birth.

Tchaikovsky e Debussy

“Eu sou russo, russo, russo até a medula!
(carta de Tchaikovsky ao seu irmão Modeste)

Poderia não haver ligação de programa dedicado a Piotr Illitch Tchaikovsky (1840-1893) e Claude Debussy (1862-1918). Tênue razão, se considerarmos apreciação feita pelo compositor russo a uma primeira peça para piano criada por Debussy, a “Danse Bohémiemme” (1880). A protetora de Tchaikovsky, Nadejda von Meck (1831-1894), viúva do construtor-proprietário das duas primeiras ferrovias russas, admiradora inconteste do compositor, proporcionou-lhe a tranquilidade financeira durante muitos anos. Em duas temporadas seguidas, durante as férias escolares de verão (1880-1881), Nadejda von Meck teve a presença do jovem Claude na Rússia como acompanhador ao piano e orientador de alguns dos seus seis filhos e seis filhas. Envia ao seu protegido a primeira composição para piano do jovem compositor francês, a “Danse Bohémienne”. Sem jamais ter conhecido Tchaikovsky, apenas tendo mantido vastíssima correspondência, dele recebe comentário sobre a peça: “Uma bonita obra, mas muito curta. Nenhuma ideia que esteja desenvolvida até o fim. A forma é estranha e carece de unidade”. A inclusão no “Sexto Recital” de outras três curtas e belas peças de Debussy, compostas até 1891, evidencia uma linguagem ainda distante das magníficas criações a partir dos anos 1890. Minha mulher Regina interpretará quatro peças do compositor francês desse primeiro período. Debussy manteria, a partir do final do século, um descrédito relacionado às composições de Tchaikowsky. Um dos “Recitais privés” em 2026 será inteiramente dedicado às obras maiúsculas de Claude Debussy.

As três peças do “Álbum para crianças” op. 39 (1878), coletânea com 24 peças, referem-se a três “estágios” de uma boneca: a boneca doente (6), a morte da boneca (7) e a nova boneca (9). Considere-se aquilo que Léon Davydov, sobrinho de Tchaikovsky e conservador do museu que leva o nome do seu tio em Klin, gravou e enviou ao musicólogo Michel-Rostislav Hofmann (1915-1975): “Toda a minha infância é inseparável da lembrança de Piotr Illitch, que até 1885 viveu constantemente na família de sua irmã Alexandra Davydov, ou seja, minha mãe. Nós o adorávamos. Colocava toda a sua alma em tudo o que fazia, mesmo quando se divertia com as nossas brincadeiras infantis. Ele organizava espetáculos dos quais meus irmãos e minhas irmãs participavam em diversas funções. Impossível não o amar, graças à sua luminosidade, generosidade, seu caráter alegre, tão diferente de sua música, entendida como melancólica”. O depoimento do sobrinho de Tchaikovsky relacionado às crianças contrasta com a realidade do compositor, inclinado à depressão nervosa.

“As Estações” de Tchaikovsky, compostas entre 1875 e 1876, atenderam ao pedido de Nikolai Matveïevitch Bernard, editor de uma revista mensal sobre música de São Petesburgo, que fazia publicar partituras como suplemento do periódico. Duas peças do compositor já tinham sido publicadas em 1873, mas, sob a sugestão do editor, Tchaikovsky compôs mensalmente uma peça, completando assim os meses do ano. Há testemunhos referentes à feitura rápida de cada criação da coletânea. O editor Nikolai Bernard, que sugeriu o título “As Estações”, selecionou para cada mês epígrafes escritas por poetas russos. Ciclo completo, a edição ficou disponibilizada para os assinantes, “As Estações op. 37ª”. Frise-se que o op. 37 corresponde à extensa e, assim entendo, magnífica “Grande Sonata em Sol Maior”, composição infelizmente pouco frequentada pelos pianistas. Lembraria que no centenário da morte de Tchaikovsky, em 1983, apresentei durante o Festival de Campos do Jordão, no Teatro Cultura Artística – recitais também foram realizados em São Paulo – , “As Estações”, a “Grande Sonata em Sol Maior” e “Dumka”.

“Dumka” – cenas rústicas russas – é uma das mais felizes criações para piano de Tchaikovsky. A peça descortina várias motivações voltadas ao sentimento russo. Melodias contrastantes dão espaço às minivariações temáticas, processos que levam a um estágio feérico a anteceder uma cadência de concepção virtuosística. Tratamentos outros encaminham Dumka ao espírito do início da peça, finalizando com acordes de dó menor em fortíssimo. Apesar dos temas originais, o espírito da obra se coaduna em parte com o pensamento do Grupo dos Cinco, formado por Rimsky Korsakov (1844-1908), Modest Moussorgsky (1839-1881), Mily Balakirev (1837-1910), Alexander Borodine (1833-1887) e Cesar Cui (1835-1918), pois seus contemporâneos pregavam, entre outros argumentos, o debruçamento sobre as raízes musicais russas. O musicólogo Michel Rostislav-Hofmann (1915-1975) observa: “Por vezes criticam Tchaikovsky pelo fato de sua música não ser suficientemente russa. Mas o que é realmente ser russo em sua música? Não estão à busca do exotismo a todo custo? Não estariam sido levados a considerar a música russa como um gênero, ao invés de compreendê-la simplesmente como música? Ela é mais ‘erudita’ do que a do Grupo dos Cinco, entretanto a distância que separa Tchaikovsky do cenáculo de Balakirev não é tão grande”.

“Dumka” é uma das obras para piano solo mais interpretadas do compositor, e peça obrigatória no Concurso Internacional Tchaikovsky, em Moscou.

Clique para ouvir, de Tchaikovsky, “Dumka” op. 59, cena rustica russa” (1886), na interpretação de J.E.M. Gravação realizada ao vivo no Conservatório Tchaikovsky em Moscou (Abril de 1962), durante o Concurso mencionado:

https://www.youtube.com/watch?v=S1IQtIpZCJA&t=5s

A respeito da “devoção” de Tchaikovsky à sua amada Rússia, um fragmento de carta do compositor à Nadejda von Meck revela o essencial: “Qual seria a razão para que uma simples paisagem russa, um passeio através do campo, a floresta ou a estepe ao anoitecer emocionem-me a ponto de me fazer deitar sobre a relva, invadido por um torpor, por um élan de amor pela natureza, por esta atmosfera acinzentada de uma inexplicável doçura que me envolve, vinda da floresta, da estepe, do riacho, do vilarejo distante, da humilde pequena igreja – em síntese, de tudo o que constitui a pobre decoração da minha Rússia Natal”.

Glorificado até o advento do modernismo, que depreciou sua música por julgá-la impregnada de um melodismo “exagerado”, Tchaikovsky readquiriu sua posição entre os grandes compositores da História. Inúmeras obras de Tchaikovsky permanecem indeléveis: Concertos para piano e orquestra e violino e orquestra, as Sinfonias 4 e 6, os Balés o Lago dos Cisnes, A Bela Adormecida, O Quebra Nozes e a Ópera Eugène Oneguine. O restabelecimento dos acertos históricos felizmente ainda existe.

The “Sixth Private Recital” will be dedicated to Tchaikovsky. The Russian musician’s appreciation of a composition from  Debussy’s youth  led me to include three other works from Debussy’s first phase.