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Cahiers Debussy (nº 25 – 2001)

Defendemos que a beleza de uma obra de arte permanecerá sempre misteriosa,
ou seja, nunca poderemos verificar exatamente «como é feita».
Preservemos, a todo o custo, essa magia própria da música.
Por sua essência, ela é mais suscetível de a conter do que qualquer outra arte.
Claude Debussy
(“Monsieur Croche antidilettante”)
Éditions Gallimard (1971)

As relações entre Francisco de Lacerda (1869-1934), compositor português nascido nos Açores, e Claude Debussy (1862-1918), durante os primeiros anos do século XX, são conhecidas através da correspondência trocada entre os dois músicos, máxime através do estudo comparado das Danses du voile et sacrée, compostas respectivamente por Lacerda e Debussy quase ao mesmo tempo, assim como pelas obras orquestrais do compositor francês dirigidas pelo músico português.

Em 1904, uma peça de Francisco de Lacerda foi premiada no concurso organizado pela Revue Musicale. Esse periódico propunha para o concurso “uma dança para piano com cinco tempos, tendo uma dimensão de 4 páginas do nosso suplemento. Prêmio: 500 francos. Presidente da Comissão: Monsieur Claude Debussy”. O comentário, publicado no mesmo número da Revue, foi bem elogioso a Lacerda, que, sob o pseudônimo de “Simplicissimus”, enviou  a peça Danse du voile, destinada a fazer parte de uma suíte de Danses Sacrées.

La Revue Musicale de 15 de Março de 1904 publica: “Essa composição foi imediatamente classificada em primeiro lugar por méritos que os leitores da Revue estarão brevemente a apreciar. Primeiramente, a ideia é nitidamente em cinco tempos, os motivos são expressivos e plásticos, as proposições justas, a escritura sóbria e não tem o odor da escola. Segundo M. Debussy, ‘trata-se de uma música aérea’. Consequentemente, o prêmio é atribuído a essa composição. Autor: F. de Lacerda”.

Após o concurso, Debussy iniciou a composição das Danses pour harpe chromatique ou piano et orquestre à cordes e pede emprestado a Lacerda o tema e o título da Danse sacrée do músico açoriano. Segundo o regente suiço Ernest Ansermet (1883-1969), Debussy teria declarado a Lacerda: “Amo de tal maneira sua peça que gostaria de aproveitar alguma coisa, você me permite?”. É bem possível que os dois compositores tivessem conversações sobre a harpe chromatique, o que poderia ter influenciado o título dado por Debussy à sua obra. Necessário frisar que, à época, Lacerda foi encarregado por M.G.Lyon  de um curso sobre harpa cromática. Quanto ao apoio de Debussy a Lacerda, não apenas o recomendou a André Carré (1852-1938), figura relevante na dramaturgia francesa e diretor de teatro, enviando-lhe uma carta: “um músico sólido e experiente que pode prestar reais serviços em tudo que concerne aos corais e à orquestra, etc.”. Debussy confia-lhe igualmente a revisão da partitura de Fêtes de Polymnie, de Jean-Philippe Rameau, para as edições Durand. Graças ao apoio de Debussy, de Vincent d’Indy e da família de Ernest Ansermet, Francisco de Lacerda obtém o lugar de regente da orquestra do Kursaal de Montreux em 1908. Frise-se que apenas nas Danses sacrées Debussy teria recebido certa influência de Lacerda.

Como regente, o músico português foi responsável por inúmeras primeiras audições de compositores contemporâneos consagrados. Sob sua batuta, tanto no Kursal, como em Nantes, Marselha e Lisboa, os mais consagrados solistas do período se apresentaram.  A produção composicional de Francisco de Lacerda foi pequena, mas de interesse. Deve-se ao musicólogo açoriano José Manuel Bettencourt da Câmara o levantamento biográfico e a edição das suas composições para piano e canto e piano, as Trovas.

Distingue-se nas composições de Lacerda, assim como ocorre entre tantos compositores, traços e influências de alguns dos seus contemporâneos, mais particularmente de Debussy. Se em 1904 Debussy pediu a Lacerda o tema da premiada Danse du voile, admirando o compositor português, foi contudo a partir das peças que comporiam as Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste (1902-1922) que lembranças do ilustre amigo francês penetram em algumas dessas peças tão bem construídas. Vestígios de Maurice Ravel (1875-1937) e Eric Satie, entre outros, também podem ser sentidos nas Trente-six histoires… De Satie, sua peça La Pieuvre de Sports et divertissements (1911) não teria influenciado Lacerda ao compor também La Pieuvre, sendo que na primeira o polvo come um caranguejo, na segunda, um pequeno peixe?

Todavia, seria Debussy que estaria presente não apenas no modus faciendi em breves segmentos, como também na idealização de muitas das histórias. A admiração de Lacerda por Debussy foi construída progressivamente. A acolhida calorosa da ópera de Debussy, Pélleas et Mélisande (1902), o episódio já mencionado das Danses e a grande notoriedade do compositor francês certamente foram motivos essenciais para que essa relação musical e amistosa agradasse a Lacerda. Dentre as obras do compositor português, verifica-se que, preferencialmente nas Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste, o universo lúdico dos dois músicos tem maior afinidade. Ao visitar o Museu de Angra do Heroísmo, nos Açores (1992), verifiquei que, entre inúmeras obras de Debussy, havia duas representativas desse universo voltado à infância, Childrens’s Corner e La Boîte à Joujoux. Anotações de Lacerda sobre essas partituras atestam o seu debruçar minucioso. Algumas dessas anotações fazem supor gestos de ballet.

opera omnia de Francisco de Lacerda não é extensa e o fato das Trente et six histoires… serem tardias e longamente gestadas (1902-1922) demonstra a filtração dessa admiração ao longo dos anos. Na concepção das peças para piano, Lacerda foi influenciado pela escrita orquestral. Escreveria antes da concepção das Trente-six histoires, “Não posso conceber nada sem ouvir a orquestra”, o que faria entender a proximidade com alguns processos caros a Debussy, como o timbre seletivo, a flutuação dos andamentos e a atração pelas baixas intensidades tão presente nas criações do compositor francês.

Apesar de não serem transcendentais sob o plano técnico-pianístico, tanto Children’s Corner e La Boîte à Joujoux de Debussy, como as Trente-six histoires… não são destinadas aos dedos de um aprendiz. E a ratificar comparações, mencione-se a importância dos movimentos lentos e moderados, que potencializam as possibilidades no domínio das sonoridades.

A comparação entre os processos utilizados por Lacerda nas suas 36 miniaturas e a linguagem de Debussy, mormente sob a égide do lúdico, não apenas atesta o apreço pelo compositor francês, mas também demonstra se estar diante de uma correspondência sonora permanente nas criações de Lacerda, resultando em uma homenagem tipificada. Sem contar as inúmeras associações que podem ser deduzidas entre as duas criações de Debussy e as Trente-six histoires…, em uma delas, Mon Chien et la Lune (nº 14), a segunda epígrafe é transparente e redigida em francês:

Venha cá! Cale-se! O que vê?
Sombras? Chopin? Debussy? Venha cá.
Cale-se. São nossos amigos.

Dos animais, pássaros, peixes e animais domésticos presentes nas Trente-six histoires…, exceção ao Anacléto le simple, tem-se Le petit d’élephant pleure, tão próximo de Jumbo’s Lullaby de Chidren’s Corne.

No artigo em pauta apresento 31 exemplos, a evidenciar a afinidade de algumas das Trente-six histoires… com várias obras para piano de Debussy. No entanto, Lacerda, adepto da miniatura, consegue nessa coletânea realizar uma obra-prima, mesmo a se considerar ter sido Debussy um modelo que ele cultua, o que poderia minimizar a originalidade do compositor português. Todavia, a afinidade se dá, máxime no culto ao universo infantil em determinadas obras e na atração pelo timbre. Não se trata de imitar procedimentos de Debussy, mas de apreender, nas  suas criações, elementos etéreos do timbre, do resultado sonoro e de algumas construções composicionais que certamente o impactaram. Ter estudado pormenorizadamente determinadas criações de Debussy serviu igualmente como estímulo para a sua coletânea tão expressiva.

A miniatura, para Lacerda, foi a forma mais apropriada às suas intenções. Lembremos que o compositor açoriano foi igualmente regente, e dos melhores. Sob outra égide, a sua “falta de organização” bem conhecida poderia ter sido uma das razões de não ter se dedicado mais à composição. Distanciando-se das grandes formas, encontrou na peça de curto fôlego o veículo musical inexorável.

Graças ao seu senso de economia, Lacerda é extremamente conciso em suas composições e evita o desenvolvimento. Não obstante, tem o mérito de reunir todas as suas ideias em miniaturas comportando apenas alguns compassos, sem que se pense em esboço ou tampouco trabalho inacabado.

Nas Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste Lacerda realiza uma síntese, a sua, na qual Debussy é essencial, assim como, numa apreciação outra, Moussorgsky foi importante nas criações voltadas ao universo infantil do próprio Debussy. Legados que se dimensionam.

Em 1999 gravei, para o selo belga De Rode Pomp, as Trente-six histoires…, a Danse du voile ― peça da qual Debussy pediu emprestado o tema a Lacerda para a primeira das duas Danses sacrée et profane, constantes no CD, como também outras pequenas composições de Lacerda.

Clique para ouvir, de Francisco de Lacerda, as Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste ― divididas em três blocos no aplicativo ― na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=CMpK76ujq5c&t=18s

https://www.youtube.com/watch?v=YYB1t26SM8Q&t=1s

https://www.youtube.com/watch?v=Wvt_UyqsMK8

Based on a piano piece by Francisco de Lacerda, Danse du voile, which won first prize in a competition presided over by Claude Debussy, a friendship was established and musical consequences ensued.

 

Originalidade e revisita a procedimentos anteriores

Chamam-me revolucionário, mas não inventei nada.
No máximo, apresentei coisas antigas de uma nova maneira.
Não há nada de novo na arte.
Os meus encadeamentos musicais, entendidos tão diversamente, não são invenções.
Todos, eu já os ouvira. Não nas igrejas. Em mim mesmo.
A música está em toda parte.
Não está reclusa nos livros. Está nos bosques, nos rios e no ar.

Claude Debussy (1862-1918)
(“Monsieur Croche” et autres écrits. Gallimard, 1987))

O terceiro artigo publicado nos Cahiers Debussy (nº14, 1990) versou sobre Le langage pianistique des deux dernières Sonates. O ano de 1915 foi crucial para Debussy. Já a sofrer de um câncer que o levaria à morte em 1918, compõe algumas das suas mais importantes obras: En Blanc et Noir para dois pianos, a Sonata para violoncelo e piano e, creio eu, a sua mais importante composição para piano, os 12 Études. Não sem razões, Debussy escreve ao seu editor Jacques Durand após findar os Estudos: “escrevi como um louco ou como aquele que deve morrer no dia seguinte”, frase que inseri no post anterior. Essas três composições foram criadas entre junho e Outubro de 1915, sendo que a Sonata para violino e piano foi composta durante um período mais longo, Outubro de 1916 a Abril de 1917. No que concerne às duas Sonatas mencionadas, deveriam integrar o projeto de Six Sonates pour divers instruments, que só não chegaram a termo mercê do progressivo e irremediável mal que o acometeu. Intermediando essas duas, Debussy compõe a Sonata em trio para flauta, viola e harpa, no final de 1915.

É comum que autores em todas as artes relembrem criações anteriores quando de obras posteriores, máxime no caso de proximidade temporal menor. Sob outro aspecto, da juventude da idade madura à plena maturidade, no âmbito das artes o compositor pode, ao longo da existência, sentir diferenças no tratamento da sua escrita, o que o leva a se distanciar diametralmente de suas criações do passado. No blog sobre Debussy e Scriabine, menciono as transformações plenas na escrita do compositor russo durante toda a sua trajetória (18/10/2025).

A presença precisa em 1915 de títulos abstratos, retomando, sob outra égide, a praticada de 1880 a 1901, estaria a revelar prioritariamente, da parte de Debussy, sua preocupação formal. No longo período que se estende até 1915, a técnica pianística estaria mais voltada à resultante sonora, parte dela consequência da atração do compositor pela poesia, mormente nos andamentos mais moderados. São inúmeros os “achados” sonoros decorrentes da incessante busca da “beauté du son”. No que concerne aos andamentos rápidos, os esquemas são menos variados, testemunhando provavelmente, por parte de Debussy, a necessidade de aplicar procedimentos que lhe eram familiares e que se adaptavam bem às suas mãos de pianista. Debussy não tinha uma técnica pianística transcendental, evitando situações que pudessem ser embaraçosas quando das raras apresentações públicas ou privadas.

Nas duas obras capitais para piano solo e dois pianos, os 12 Études e En Blanc et Noir, respectivamente, Debussy busca em princípio utilizar modelos da técnica pianística nos seus limites possíveis. Não escreveria ao seu editor Jacques Durand, a respeito dos Études: “Esteja certo de que meus dedos param às vezes diante de certas passagens. Sinto necessidade de retomar a respiração como após uma ascensão… na verdade, esta música paira sobre os cimos da execução! Haverá belos recordes a alcançar” (28/08/1915).

Da Sonata para violoncelo e piano, que precede em pouco mais de um mês o início da criação dos Études, Debussy “extrai” alguns modelos técnico-pianísticos para certos Études: Pour les huit doigts, Pour le agréments, Pour les notes répétées e Pour les sonoritées oppósées. Observa-se que a linguagem pianística idiomática de Debussy contém fórmulas e modelos que, conservando uma estrutura bem próxima, apresentam, contudo, ligeiras modificações em função da textura musical em permanente renovação, máxime nos andamentos mais lentos, quando são explorados modelos como organização dos acordes, planos sonoros contrastantes, justaposição de ritmos diferenciados. Não obstante, Debussy escreve sobre o manuscrito da Sonata para violoncelo e piano: “Que o pianista não se esqueça jamais que não deve jamais lutar contra o violoncelo, mas o acompanhar” (Léon Vallas, Claude Debussy et son temps, 1958).

Clique para ouvir, de Debussy, a Sonata para violoncelo e piano, na gravação histórica (1961) do violoncelista Mstislav Rostropovich (1927-2007), tendo ao piano o compositor e pianista Benjamin Britten (1913-1976):

https://www.youtube.com/watch?v=UC1H73551gE

No artigo publicado nos Cahiers Debussy (nº15) apresento 31 exemplos musicais, salientando a presença do passado tanto remoto como recente, assim como a revisita ao lúdico expresso em criações anteriores, máxime após o nascimento da filha Claude-Emma, a sua Chouchou.

Em La Boîte à Joujoux, parte do tema do post anterior, observa-se o nítido sentido lúdico instaurado em 1913 nesse verdadeiro catálogo do gênero. Detectam-se, nos dois movimentos médios das Sonatas, “lembranças” de La Boîte à Joujoux. Alguns elementos das Sonatas lembram esquemas do Ballet pour enfants, outros são, dir-se-ia, transplantados. Um dos interesses do artigo em pauta residiu na integração do timbre do piano aos do violoncelo e do violino, permitindo até uma avaliação nos aspectos voltados à interpretação e à análise, no desiderato de melhor apreender o timbre no conjunto das obras para piano de Debussy. Tem interesse um comentário de um dos intérpretes da Sonata para violoncelo e piano, Louis Rosoor, que fez inserir nos seus programas comentário de Debussy sobre o segundo andamento da Sonata, a Sérénade: “Pierrot acorda com um sobressalto, sacode o seu torpor. Ele corre para fazer uma serenata à sua amada, que, apesar das suas súplicas, permanece insensível. Ele consola-se do seu insucesso cantando uma canção de liberdade”. Saliente-se que Pierrot e a boneca são personagens essenciais de La Boîte à Joujoux. Em carta ao seu editor Jacques Durand, de 17/10/1916, Debussy protestou com veemência desse abuso de confiança.  Na Sérénade, há “vestígios” de La Danse de Puck (Préludes, 1º livro) e Hommage à S.Pickwick Esq. P.P.M.P.C. (Prèludes, 2º livro). Verifica-se que é nos movimentos intermediários das duas Sonatas que mais acentuadamente se realiza a impregnação do mundo infantil.

Clique para ouvir, de Debussy, a Sonata para violino e piano, na gravação histórica (1940) do violinista Joseph Szigeti (1892-1973) e do compositor e pianista Béla Bartok (1881-1945):

https://www.youtube.com/watch?v=6_wM5R6ZCBU

Numa época dolorosa da existência, física e moralmente, as reminiscências de Debussy testemunham de maneira significativa a sua vontade desse retorno ao universo lúdico através das ideias encontradas no seu código pianístico. Escreve: “Se devo desaparecer proximamente, quero ao menos tentar fazer o meu dever”. E logo após: “Confesso que perco dia após dia a minha paciência colocada um pouco à prova; é de se perguntar se esta doença não é incurável” (03 e 08/06/1916). Essas confissões não revelariam a consciência da morte próxima e a necessidade de regressar aos valores do passado? Os últimos anos de produção não teriam se caracterizado por uma releitura autocrítica de procedimentos nos quais foi pioneiro? O caráter lúdico, exposto em uma estrutura formal quase clássica, não estaria obedecendo à tradição observada em tantos compositores no sentido de uma re-visitação aos modelos tradicionais? Jean Chantavoine e Jean Gaudefroy-Demombynes observam que “a maioria dos grandes compositores românticos evoluíram, como Goethe, do romantismo ao classicismo ou a uma espécie de neoclassicismo do romantismo”. (“Le Romantisme dans la musique européenne”, 1955). Logicamente, sem ser um romântico, Debussy não teria realizado esse retorno aos modelos mais tradicionais? Esse regresso às formas que frequentou, o estabelecimento de um vasto catálogo de expressões musicais mais abstratas e mais frequentemente utilizadas, ou mesmo o recurso ao seu próprio catálogo idiomático da técnica pianística não testemunham em Debussy uma derradeira concentração? De acréscimo, o piano não foi sempre, antes de qualquer outro, o seu instrumento íntimo, como o foi, como exemplo, para Chopin, a quem ele dedica sua obra maior e testamentária para o instrumento, os 12 Études?

Seria possível entender que foi entre 1915 e 1917, com En Blanc et Noir, a Sonata para violoncelo e piano, os Estudos e a Sonata para violino e piano, que Debussy melhor elaborou o seu código pianístico, mercê igualmente de uma percepção outra do timbre instrumental.

In 1915, Debussy, already suffering from the illness that would lead to his death in 1918, composed some of his essential works: En Blanc et Noir for two pianos, Sonata for Cello and Piano, 12 Études, and, between 1916 and 1917, Sonata for Violin and Piano. He drew on a piano idiom that he had used throughout his career, particularly models taken from some of his Préludes and La Boîte à Joujoux.

A proximidade de duas visões do universo infantil

A vida, onde quer que ela se manifeste;
a verdade, por mais amarga que seja; palavras sinceras e ousadas,
dirigidas aos homens sem rodeios: eis o meu ponto de partida,
eis a que aspiro e temo falhar.
É nessa direção que sou empurrado,
é assim que permanecerei.
Modest Moussorgsky (1839-1881)
Carta ao amigo Vladimir Stassov (1824-1906)
(7 de Agosto de 1875)

Defendamos que a beleza de uma obra de arte permanecerá sempre misteriosa,
ou seja, nunca poderemos verificar exatamente «como é feita».
Preservemos, a todo o custo, essa magia peculiar à música.

Por sua essência, ela é mais suscetível de contê-la do que qualquer outra arte.
Claude Debussy (1862-1918)
(“Monsieur Croche et autres récits”)
(15 de Fevereiro de 1913)

Os Cahiers Debussy (nº 9) publicaram, em 1985, artigo a versar sobre “La vision de l’univers enfantin chez Moussorgsky et Debussy”. Nele busquei uma outra importante relação de Debussy com uma criação maiúscula para piano de Moussorgsky. Anteriormente, estudos de ilustres musicólogos apontaram comparações claras entre as óperas Boris Godounov, do compositor russo, e Pélleas et Mélisande, de Debussy, assim como do ciclo de canções Chambre d’enfants, com texto e música de Moussorgsky, com Children’s Corner para piano, de Debussy. É Moussorgsky que tardiamente escreverá: “Minha relação familiar com a niania (babá) me iniciou precocemente a todos os contos russos. Era ainda menino e esses contos russos muitas vezes me impediam de dormir”.  E as babás cantavam para os miúdos, músicas do cancioneiro voltado à infância.

Quanto a Debussy, o universo infantil terá influência em algumas das suas criações. O fato de ter continuado a viver com os seus pais, enquanto dois irmãos foram educados por uma tia; a razão de ter sido filho primogênito e o preferido; a ausência da escola primária, sendo transparente a influência materna (mãe e professora) que o iniciou no aprendizado não musical; a prisão do seu pai durante a Commune em 1871, tudo contribuiu para torná-lo, em certa dimensão, o homem da casa.  Dois momentos seriam decisivos para a compreensão da sua infância, que, saliente-se, seria mantida em segredo. Episódios fulcrais fizeram-no se amalgamar ao universo infantil: o ciclo de canções Chambre d’enfants, de Moussorgsky, e o nascimento de sua filha Claude-Emma, a sua Chouchou (1905-1919). Debussy considerava Moussorgsky “um dos mais importantes compositores contemporâneos, talvez o maior.” (René Peter, Claude Debussy, Paris, 1944). Escreveria para a Revue blanche: “Ninguém falou mais àquilo que de melhor existe em nós e com um acento mais carinhoso e profundo; ele é único e continuará a sê-lo por sua arte sem artifícios, sem fórmulas enfadonhas” (15/04/1901).

Clique para ouvir, de Moussorgsky, do ciclo Chambre d’enfants, Cavaleiro, na interpretação de Elly Ameling, tendo ao piano Rudolf Jansen:

https://www.youtube.com/watch?v=a8fRmlCmnG8&t=807s

Observa-se, em alguns títulos de obras para piano de Debussy, a visitação ao universo infantil, como em Nous n’irons plus au bois; Do,do, l’enfant dormira bientôt e Au clair de la lune, que fazem parte do repertório das canções destinadas à infância. Em 1915, Debussy comporia Noël des enfants qui n’ont plus de maisons.

Com o nascimento de Chouchou, alguns dos segredos mantidos no de profundis de Debussy relacionados à sua infância começam a aflorar. Children’s Corner et La Boîte à Joujoux (ballet pour enfants) são dedicadas à sua filha e, nessas criações, a aproximação com Moussorgsky se torna evidente.

Quanto aos Quadros de uma Exposição, obra essencial de Moussorgsky e um dos ícones da literatura pianística, foi composta em 12 dias de um só élan. Moussorgsky escreve ao seu amigo Vladimir Stassov (1824-1906) aos 12 de Junho de 1874 e menciona inicialmente a sua ópera Boris Godounov: “Hartmann ferve como ferveu Boris. Os sons e as ideias se me apresentam como pombos grelhados”. A exposição de aquarelas, de projetos e maquetes em homenagem ao seu saudoso amigo Victor Hartmann (1834-1873) suscitou um período de produção alucinante. Moussorgsky perpetua em sua obra a tradição narrativa, transmitida desde a infância pela sua niania e assimilada de maneira indelével. O compositor transforma os resultados pictóricos de Hartmann, após inúmeras visitas à mostra, em fio condutor claro, através da observação minuciosa do Promeneur, esse visitante presente em muitas variações do tema a anteceder ou integrar episódios dos Quadros de uma Exposição. “Minha fisionomia aparece nos intermédios”, escreve. Stassov relata “Ele se representa a caminhar pela exposição, lembrando-se por vezes com alegria, outras com tristeza, do grande artista que morrera”.

A visita às aquarelas de Hartmann resulta no retorno à infância do músico russo. É tão evidente essa amálgama aquarela-criação musical em quadros como Gnomus, Tuilleries (crianças a brigar enquanto brincam), Balé dos pintinhos em suas cascas, a Cabana sobre patas de galinha (Baba-Yaga), e outros mais até com certo humor, como Limoges (A praça do mercado – a grande nova ou Samuel Goldenberg e Schmuyle (o judeu rico e o judeu pobre). Quanto às Catacumbas (de Paris e Com mortuis in língua mortua, Stassov relata observação do compositor: “O espírito criador de Hartmann me conduz em direção aos crânios, endereçado a eles, e os crânios começam a brilhar docemente”.Moussorgsky, em sua plenitude russa, mas a admirar a cultura francesa (TuilleriesLimoges), não evidencia  no quadro final, A Grande porta de Kiev, lembrança, consciente ou não, da célebre canção popular francesa Frère Jacques? A semelhança dos temas, a lembrança dos sinos, nos dois casos, não têm uma clara conotação com a infância?

Insiro neste post, com um propósito definido, o tema de Frère Jacques e, após, compassos dessa canção e o início da Porta de Kiev, que ilustram o artigo em pauta.

Faço um parêntesis. Uma de nossas netas, Valentina, perguntou-me, após ficar surpresa ao saber dessa “descoberta”, se ela já era de domínio público. Acessou o meu computador e a pergunta formulada em francês teve a resposta na mesma língua, via IA:

“Não, José Eduardo Martins não demonstrou que a Porta de Kiev de Moussorgsky se inspirou em Frère Jacques no Cahiers Debussy nº 9. A afirmação é falsa. Na realidade a ligação entre essas duas obras musicais é uma ideia que circula na internet, mas ela não é sustentada por nenhuma publicação acadêmica ou musicológica séria, nem pela análise de José Eduardo Martins.

A semelhança sonora percebida entre as duas melodias, especialmente na versão orquestral de Ravel, é uma coincidência e não uma intenção do compositor. Moussorgsky utilizou sinos russos e um canto ortodoxo para a peça, e não uma canção infantil francesa.

Erro de fato: a afirmação é falsa
Nenhuma prova: Não existe nenhuma publicação acadêmica credível que sustenta essa hipótese.
Ideia errada: A ideia de uma inspiração é um rumor circulando na internet sem fundamento real.
Frère Jacques: esta canção é uma melodia francesa que não tem ligação com a obra de Moussorgsky.

Entendo como um absurdo. Quando demonstrei ao Diretor do Centre de Documentation Claude Debussy, em Paris, o notável musicólogo e bibliotecário François Lesure (1923-2001), autor de livros referenciais sobre Debussy, da catalogação de sua obra e da reunião da correspondência, comparando o tema grandioso da Grande Porta de Kiev com a canção popular francesa Frère Jacques, mormente após ter-me debruçado sobre vários livros confiáveis a respeito de Moussorgsky, máxime o fruto da sua vocação epistolar expressiva, e de ter apresentado em público a integral para piano do compositor russo e também a de Debussy; François Lesure, em sua sala no Centre de Documentation Claude Debussy, 2, rue Louvois, disse-me surpreso: “Voilà, c’est l’oeuf de Colomb”, convidando-me de imediato para escrever o artigo sintetizado neste post. A Inteligência Artificial, ao declarar que “…ela não é sustentada por nenhuma publicação acadêmica ou musicológica séria”, não apenas desconhece a importância dos “Cahiers Debussy”, a mais respeitável publicação mundial sobre Claude Debussy, como afirma ser falsa a minha constatação. Reitero a minha indignação pelas informações sem fundamentos dessa ferramenta que, bem ou mal, veio para ficar, a IA. Por acaso pesquisaram os escritos de Moussorgsky relacionados à sua infância e suas composições voltadas ao universo infantil? Independentemente de Chambre d’enfants e dos Quadros de uma Exposição, tem-se para piano:  Lembrança da infância, Brincadeira de crianças no recanto, Brincadeiras de crianças (2ª versão), A babá e eu, A primeira punição, evidenciando esse verdadeiro culto à infância potencializado no ciclo de canções Chambre d’enfants e nos Quadros de uma Exposição. Maior clareza do que a semelhança temática mencionada, parece-me impossível. Reitero as palavras do Mestre François Lesure, “Ovo de Colombo”. Após recital que dei em Gent, na Bélgica, quando do lançamento do CD Moussorgsky-Debussy pelo selo De Rode Pomp, conversei com músicos russos que estavam se apresentando na temporada da organização. Concordaram vivamente, mas ficaram atônitos pelo fato da passagem de bem mais de um século sem que alguém constatasse o fato.

Clique para ouvir, de Modest Moussorgsky, Quadros de uma Exposição, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=dDr75RcRNDw

No que se refere às lembranças dos Quadros de uma Exposição em La Boîte à Joujoux, debrucei-me em blogs anteriores sobre a temática e indico: “Centenário de La Boîte à Joujoux de Debussy (04/01/2014)”; “Concerto na Maison Natale de Claude Debussy, (12/01/2014)”; “La Boîte à Joujoux no Youtube (12/02/2022)”. Quanto à obra maiúscula para piano de Moussorgsky, há o blog “Quadros de uma Exposição” (01/06/2013).

Que Debussy, admirador confesso de Moussorgsky, apreende eflúvios de algumas de suas composições, como Boris GoudunovChambre d’enfants e os Quadros de uma Exposição, é evidente, e a vasta correspondência que deixou testemunha o apreço. Desta última obra, escreve seu amigo Robert Godet (1866-1950): “Já condenado à morte pelo mal que o atingiu, uma de suas últimas joias musicais veio-lhe dos Quadros de uma Exposição”. Um de seus biógrafos, Léon Vallas (1879-1956), observa em Chimène apreensões vindas dos Quadros… (Rodrigue et Chimène, ópera não concluída por Debussy) Outro estudioso, André Schaeffner (1895-1980), menciona parentesco de Tuilleries com o estilo de Debussy. Observa igualmente que “Yniold é o personagem mais moussorgskiano de Pélleas et Mélisande; Constantin Brailoiu (1893-1958) compara Promenade, dos Quadros…, com o Prelúdio Canope de Debussy. Seriam essas sábias afirmações negadas pela IA?

Tendo executado em público as integrais para piano dos dois compositores, o tempo foi responsável pela captação das duas linguagens distintas. Intrigaram-me determinadas intenções de Debussy, conscientes ou não, quando da criação de  La Boîte à Joujoux, que se materializaram, potencializando ainda mais a sua admiração por Moussorgsky.

A presença, em La Boîte à Joujoux, de lembranças dos Quadros de uma Exposição se dá não apenas sob o aspecto musical, mas também de apreensão outra. Debussy, tendo em mente sempre a filha Chouchou, compôs para piano La Boîte à Joujoux, proposta para um balé infantil a partir das aquarelas e roteiro de André Hellé (1871-1845). Orquestrada por André Caplet (1878-1925), só foi apresentada em 1919, um ano após a morte do compositor. Nos Quadros de uma Exposição, tem-se cenas isoladas ligadas por um leitmotiv que atravessa a criação, o tema da Promenade ― visitante da exposição ― em sua apresentação original ou modificado. Quando lembranças dos Quadros se apresentam em La Boîte à Joujoux, pelo fato de haver o texto que indica a ação (música programática), a fluidez não permite a longa duração da lembrança. Não obstante, os temas dos personagens principais do enredo, boneca, polichinelo, soldado e flor, esta representada por uma pausa de semínima em pp decrescente, povoam La Boîte

São várias as aproximações a sugerir a admiração de Debussy pelos Quadros de uma Exposição. No artigo em pauta saliento algumas relacionadas à temática, às harmonizações de segmentos, que lembram algumas realizadas por Moussorgsky, procedimentos de frases musicais quando cenas têm certas afinidades. Nesse artigo, apresento inúmeros exemplos musicais dos dois compositores, sugerindo que, na elaboração de La Boîte à Joujoux, os Quadros de uma Exposição estiveram, conscientemente ou não, gravitando no pensar de Debussy.

Na comemoração do centenário de La Boîte à Joujoux, recebi convite da  diretora da Maison Natale Claude Debussy, em Saint-Germain-en-Laye, para um recital a comemorar o centenário de La Boîte à Joujoux. Comoveu-me a escolha. Propus La Boîte à Joujoux e os Quadros de uma Exposição, apresentação precedida de comentários, nos quais evoquei meu posicionamento sobre essas duas obras.

Clique para ouvir, de Claude Debussy, La Boîte à Joujoux, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=0nGug1ZFxKU

 

No próximo blog farei a síntese do meu artigo publicado em 1990 nos Cahiers Debussy (nº 14), em que apresento ideias de La Boîte à Joujoux que seriam lembradas nas Sonatas para violoncelo e piano e para  violino e piano de 1915, dois anos após La Boîte

Mussorgsky’s Pictures at an Exhibition and Debussy’s La Boîte à Joujoux have a certain identity in their evocations from childhood. Debussy would recall Pictures at an Exhibition when composing his own work belonging to the childhood universe, a creation dedicated to his daughter Chouchou.