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Um outro olhar


Consiste o progresso no regresso às origens:
com a plena memória da viagem.
Agostinho da Silva (“Espólio”)

A maioridade civil e a maioridade penal no Brasil são ambas alcançadas aos 18 anos, desde 2002, quando foi publicado o novo Código Civil. Antes disso, a maioridade civil era aos 21 anos. Nesse dia 2 de Março completo 18 anos de posts publicados no blog, ininterruptos, sempre aos sábados. Nenhum interregno, naquilo que repetidamente comento a dizer que a respiração não pede férias. Essa maioridade numa atividade que aprecio, a de cronista, a contrapor a de pesquisador – através de incontáveis textos sobre música para revistas especializadas do país e de alhures -, considero-a vital para meu equilíbrio mental. Coincide a data com a mudança definitiva de morada, após 60 anos num lar de que guardo lembranças caras e definitivas. Digito o texto já no apartamento e, assim como na casa já em processo de demolição, adapto-me à realidade. Pela janela, em frente à tela do computador, continuo a vislumbrar a nova paisagem, sempre que respiro a sedimentar novas ideias.

A rapidez da destruição do imóvel faz-me lembrar do pensamento do notável filósofo português Eduardo Lourenço (1923-2020): “Hiroshima existia e foi destruída em nove segundos. É como se fossem feridas que a Humanidade faz a si mesma. E essas sem reparação. Porque foram destruídas e não podem ser reconstruídas de nenhuma maneira. Aquilo que de mais belo há na Humanidade é que nós somos submetidos às mesmas forças que regem realmente o mundo. Por que é que nós escaparíamos, quando tudo o que foi criado está condenado a desaparecer?”. Guardando todas as proporções devidas, bastará um tempo ínfimo para que a antiga morada caia por terra.

Numa visão mais específica, diria que quase todos os 952 posts publicados surgiram durante corridas de rua; hoje, nos meus 86 anos, apenas longas caminhadas. No ritmo das passadas, para um músico que vive a seguir outros acalentados ritmos, nascem novas categorias de temas.

De um leitor atento recebi há tempos mensagem a considerar a originalidade. Ela existe, mas impossível não retornar, em princípio sob outra égide, às reflexões que foram publicadas anteriormente. Se os temas essenciais, música, artes, literatura e cotidiano, estão sempre a me surpreender, desvio-me daqueles polêmicos, a preponderar a política e a justiça, pois não mais creio em ideologias, em conflagrações e nem na real imparcialidade de tantas decisões da justiça. Assim foi durante toda a já longa existência. Alienação? Talvez em parte; descrença, certamente. Todavia, o retorno às ideias que já foram expostas faz parte do trilhar e impossível a originalidade em cada passo. Que o digam os geniais J-P. Rameau (1683-1764), J. S. Bach (1685-1750), W.A. Mozart (1756-1791) e tantos outros compositores.

Sacha Guitry (1885-1957), renomado ator e dramaturgo francês, escreveu algo a anunciar um LP lançado pela Decca em meados do século XX, com gravação de seus pensamentos e de escritores célebres, a corroborar esse regresso pessoal às ideias frequentadas anteriormente: “Durante esta gravação, se por acaso eu citar duas vezes o mesmo pensamento ou a mesma máxima, por favor não se dê ao trabalho de me assinalar – mas lembre-se de que, numa ocasião semelhante, Voltaire respondeu: “Sim, essa coisa eu já tinha dito… e repeti-la-ia até que a compreendessem!’ “.

O blog nunca foi para mim veículo de promoção assistida por patrocinador. Jamais o tive, a contrapor a esmagadora maioria dos blogs existentes. Sonhador? Talvez seja. Contudo, tenho a plena liberdade do pensar. O número de leitores torna-se menor, mas certamente aqueles que frequentam este espaço me privilegiam com observações criteriosas e inteligentes. Preciso desejar mais?

Dezoito anos passados e, por curiosidade, percorri alguns posts de 2007. É evidente que houve mudanças quanto às abordagens, mas o estilo permanece. George-Louis Leclerc, o conde de Buffon (1707-1788), já professava que Le style, c’est l’homme même, “o estilo é o homem”, e difícil dele se distanciar, máxime radicalmente. Nesse longo espaço de tempo abordei música, artes, cultura como um todo, cotidiano e literatura – foram centenas de livros resenhados –, sempre a pensar no leitor atento que prestigia os meus posts.

Estou a me lembrar de um amigo português que seguia os blogs em 2010. Eram passados três anos de publicações. “Até quando?”. Respondi-lhe que em nenhum momento pensei interromper as publicações. Ratifico os termos de 2 de Março daquele ano. Dizia àquela altura que pinçava por vezes ideias que surgiam após o olhar e o sentir o presente sob tantos aspectos, assim como o resultado da filtragem das leituras: “Esse maravilhamento deverá continuar a passear pela tela. Doravante, você leitor está convidado a realizar essa viagem. Que sejamos cúmplices. Bem haja!”. Continuarei. Jiddu Krishnamurti (1895-1986) apregoava: “somos viajantes a contemplar a existência sem nos deter”.

This week I’m celebrating 18 years of uninterrupted blogging, always published on Saturdays, with reflections arising after looking at and feeling the present. I will carry on…, but for how long?

 

 

 

 

Quando a vontade sucumbe

São Paulo precisa parar de crescer
José Carlos de Figueiredo Ferraz (1918-1994)
(Prefeito de São Paulo – 1971-1973)

Recentemente mencionei a sanha avassaladora das construtoras quando almejam determinado “território”. Uma blitz acontece e, pouco a pouco, moradores são “convencidos” a deixar suas casas e todo o processo é conduzido de acordo com a legislação vigente. Se um morador insiste em não negociar com uma incorporadora, inevitavelmente ficará completamente isolado entre edifícios que atualmente proliferam nos bairros Brooklin e Campo Belo. Uma visita a esses bairros constatará o número extraordinário de novos lançamentos, alguns ultrapassando os trinta andares e edificados quase rentes às calçadas. Nas minhas duas caminhadas de cerca de 8 km pelas ruas dos dois bairros, deparo-me nesses últimos meses com inúmeros distribuidores de folders que anunciam novos empreendimentos na área, lançamentos considerados “únicos na excelência”.

Após 60 anos morando na mesma casa e sofrendo insistência desde 2019 de três construtoras que, ao final de tratativas, sucessivamente desistiram, não houve possibilidade de resistir ao assédio de uma quarta, que conseguira a anuência de todos os meus bons vizinhos. “Resistir quem há de?”, como reza o verso de Luís Guimarães Júnior (1845-1898) em “Visita a casa paterna”.

Reiteradas vezes mencionei uma resposta do escritor, ator e jornalista Plínio Marcos (1935-1999) que, em programa televisivo, perguntado sobre sua cidade, Santos ou São Paulo, onde morava, respondeu que havia anos era de Santa Cecília, seu bairro. Verdade absoluta, que nos levou a não deixar a região após seis décadas, pois depois de tantos anos estabelecemos relações inquestionáveis de amizade e de convívio com um sem número de moradores.

Apesar de comodatos acertados com os meus vizinhos, a construtora, sempre poderosa, diga-se, ainda pressionou alguns para que saíssem antes do prazo final. Há meios de fazê-lo e deles se utilizaram.

O desmonte dos dois bairros contíguos se faz avassaladoramente. Perde-se na história a tradição da região, que inicialmente teve uma considerável parcela de moradores de ascendência germânica, sendo que muitas casas mantinham inclusive semelhanças com as construções da região europeia.

Fato consumado, partiremos, Regina e eu, para a fase final da existência. Quiséramos permanecer, mas, sob outra égide, é a inaudita violência que impera no Brasil com a complacência de órgãos superiores, situação diariamente decantada pela mídia, que nos impele para um apartamento, para gáudio de filhas e netas.

Uma das filhas me perguntou se, morando na mesma rua, a cerca de quinhentos metros de distância, teria eu a coragem de passar diante da casa sendo demolida e após, durante as várias fases de construção de mais um edifício. Fomos realmente felizes nessas tantas décadas e a morada permanecerá indelével no meu de profundis, independentemente das transformações do entorno. Assim foi com tantos livros, gravações e objetos que nos foram caros, mas que terão outros olhares, pois doados aos nossos descendentes, às pessoas que nos privilegiam com a amizade e às entidades culturais. Material que já foi arquivado na nossa mente. Faz-me lembrar uma conversa que mantive com o psicanalista Eduardo Etzel (1906-2003), nome maior da pesquisa da arte sacra popular no país. Analisou-me durante 10 anos sem que eu soubesse, durante a década na qual fiz pesquisas no Vale do Paraíba sobre essa fundamental temática popular. Dizia ele que, quando nos desprendemos de um objeto de estimação, ele já está sedimentado em nossa mente após tantos olhares, e a simples lembrança o faz ressurgir por inteiro em nossos pensamentos.

A vida não será alterada, pois frequentarei os mesmos locais de sempre, cruzarei diariamente com pessoas que muito prezo, continuarei os meus estudos pianísticos, as pesquisas, as tantas outras leituras, os quilômetros andados pelo bairro, a escrita dos blogs e outros textos e estarei junto da família, eixo paradigmático de tudo. Regina e eu disso sabemos. Nova e definitiva etapa.

After being pressed for some years by greedy construction companies into selling our houses, my neighbors and I were finally forced to give in. After 60 years in the same house, I’m reluctantly moving into an apartment in the neighborhood. Life won’t change, because I’ll go to the same places as always, I’ll meet people I value very much every day, I’ll continue my piano studies, my research, my readings, my runs twice a week, the writing of blogs and other texts, and I’ll be close to my family, the backbone of everything. A new and definitive stage.

 

 

A redescoberta de um longo relato

À pergunta para saber se sou feliz, otimista ou pessimista,
respondo que, com o meu conhecimento, sou pessimista,
mas pela minha vontade e inspiração, sou otimista.
Albert Schweitzer (1875-1965)

Carolina Ramos (1924-), professora, escritora, trovadora, poetisa, contista, musicista e artista plástica, esteve por duas vezes presente neste espaço através de dois livros: “Canta Sabiá” e “Feliz Natal”. Surpreende novamente ao publicar “Viagem à Itália – Peregrinação Ano Santo 1950” (Santos-Comunicar, 2024).

No acervo acumulado durante a existência, quantos não são os itens que permanecem ocultos durante décadas e que podem ser resgatados, tantas vezes por mero acaso? Foi justamente isso que ocorreu com Carolina Ramos ao reencontrar pormenorizado relato de uma peregrinação que realizou com um grupo no desiderato de vivenciar, como católica praticante, a atmosfera plena do Ano Santo no Vaticano em 1950. Na contracapa há a imagem das folhas amareladas, algumas semidestruídas, devido ao distanciamento de quase três quartos de século! No prólogo Carolina Ramos justifica: “Com grata surpresa, setenta e quatro anos depois, ou seja, no final de 2023, releio páginas perdidas, quase esquecidas e, agora, prazerosamente encontradas”.

Ter redescoberto, após tantas décadas, relatos escritos com o fim de documentar visitas a algumas cidades portuguesas e inúmeras cidades e vilas italianas, colocou à luz aquelas folhas, à maneira de um diário, e que, num hipotético futuro, poderiam ser publicadas sob o título “Viagem à Itália”. Centenária, Carolina comenta: “E foi assim que me dispus a arregaçar as mangas, decidindo defender a árdua, mas extremamente agradável tentativa de recompor o que naquelas desordenadas páginas fora esboçado, facultando a mim mesma o prazer de bisar gratas emoções adormecidas ao longo do tempo e sem querer tirar os pés de casa”. A autora revisou aqueles textos sequenciais, tendo a colaboração preciosa de Cida Micossi.

Preliminarmente, “Viagem à Itália” não é uma obra de erudição e nem seria esse o objetivo. Assim não sendo, pois desprovida do “jargão” acadêmico, Carolina Ramos desfila a apreciação, a pormenorizar a transcrição de tudo o que observa e que lhe provoca emoção ou espanto. A peregrinação de cunho religioso, mas a propiciar o olhar da jovem turista atenta à geografia e à arte, possibilita ao presente leitor dessas folhas “esquecidas” no tempo degustar apreciações de temas voltados às ramificações da cultura humanística, seja na arquitetura, ou na estatuária e na pintura, seja na interpretação da natureza durante o itinerário percorrido. Extasia-se. É Carolina que, por vezes, interfere no texto original, a argumentar finalidades: “O que vai descrito foi captado, face a face, por olhos ávidos e comprovado pela emoção que trouxe de volta. Tentar inflar com pesquisas o que está além do que foi visto seria fugir à finalidade destas notas, por tantos anos perdidas e encontradas, quase que miraculosamente, setenta e tantos anos depois, como convém relembrar. Assim, o que aqui vai nada mais é do que a cópia fiel do que foi captado naqueles dias de deliciosa euforia. Muita coisa já foi esquecida e em parte reativada pelas fiéis anotações daquela jovem peregrina que, se muito viu, bem mais gostaria de ter visto naquele longínquo e abençoado Ano Santo de 1950”.

Torna-se evidente que as incontáveis interpretações que Carolina apresenta daquilo que viu e sentiu têm a naturalidade do deslumbramento pessoal. Das inúmeras observações sobre as cidades italianas visitadas, Florença pontifica, máxime suas famosas galerias, a do Pallazzo Pitti e a do Palazzo degli Uffizzi, que são pormenorizadas em suas coleções de telas realizadas por grandes mestres, comentadas não com a verve tão comum do especialista, mas com a emoção de uma moça sensível que se emociona frente à magnificência da obra de arte, algo raro na juventude atual. Nessa apreciação da peregrina encantada pela arte, mencionaria um pequeno segmento sobre a Galeria degli Uffizzi: “A exemplo do que acontecia na Galeria Pitti, repetiram-se as salas repletas de telas preciosas, onde a expressão de um momento perdura através dos séculos, imortalizada pelo pincel de insuperáveis mestres. A presença de Rafael continuava, sensivelmente viva. A cada passo nos deparávamos com frutos da sua fecunda vida artística, tais como S.Giovanni nel DesertoMadonna del Cordellino, obras dignas de tal talento. Também Tizziano ali estava, graças à admirável ‘Flora’ e dois nus artísticos – Venere del CagnolinoVenere detta dell’Amorino. Magnífica, a famosa Anunciação – obra de Da Vinci, dispensa maiores comentários – assim como O nascimento de Vênus, Madonna Magnificat e Primavera, de Sandro Boticelli, obras também resguardadas no Palazzo degli Uffizzi, entre outras preciosidades”.

Apreciações pertinentes de uma peregrina turista aos 26 anos, o detalhamento de cada obra de arte faz-me lembrar da antítese que presenciei em 1959 em uma das tantas visitas ao Musée du Louvre, quando dos meus estudos pianísticos em Paris. Estava pela primeira e única vez a olhar a célebre Mona Lisa (pintura a óleo sobre madeira, 77cm x 53cm), certamente a obra mais conhecida de Da Vinci, quando ouvi barulho rápido de passos que se agigantava. Eram turistas japoneses. Àquela época ainda era possível o flash. Diante da pintura, dispararam incontáveis flashes e, imediatamente após, deram meia volta e desapareceram. As criações extraordinárias ao longo do extenso corredor sequer tiveram um mísero olhar. Não é essa a mentalidade da grande maioria dos turistas de todos os rincões?

“Viagem à Itália no Ano Santo de 1950” é livro a ser degustado por inteiro. A finalidade essencial, o jubileu do Ano Santo e as comemorações no Vaticano, Carolina Ramos, jovem de fé intensa, degusta cada instante e descreve o impacto vivido: “Afinal, chegamos à Basílica, ansiosos e transpirando por todos os poros. Dali para frente, entretanto, acabaram-se as torturas físicas. Não que deixassem de existir, mas porque foram esquecidas, ignoradas, sobrepujadas por um interesse maior, absolutamente monopolizador e que não dava margem a dispersões. Acomodados num alto patamar, tínhamos ampla visão do templo, embora situados por detrás do palanque papal… Lá embaixo, derramada pelas diversas naves, fervilhava multidão incalculável de fiéis de todas as raças, vindos de todos os lados, numa emocionante comunhão de preces e anseios”.

Se um ou outro parágrafo traz algo depreciativo, isso não se dá com o que Carolina Ramos estava a viver através do olhar ávido da descoberta. Salta, o “ex-transporte de tropas americano que levou o grupo à Europa, ora adaptado à marinha mercante argentina”, teve inúmeros problemas mais ou menos graves durante quase todo o trajeto. Em terra, mínimos dissabores que serviram de lição para o grupo, particularmente para a “escriba”. Quanto à experiência como um todo captada no delicioso “diário”, maravilhamento para Carolina e agradabilíssimos momentos para o leitor ao “participar” daquela excursão tão marcante.

Carolina Ramos (1924-), a writer and poet, has once again given us an extensive account, recently rediscovered, of a pilgrimage to the Vatican on the occasion of the Holy Year of 1950..