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Università degli Studi di Firenze

Mais custa quebrar a rocha do que escavar a terra;
mais sólido, porém, o edifício que nela se firmou.
A grandeza da obra é quase sempre devida
à dificuldade que se encontra nos meios a empregar.
Agostinho da Silva (1906-1994)

Alvissareira a notícia de mais uma tese de doutorado sobre o nosso mais importante compositor romântico, Henrique Oswald (1852-1931). Nos Estados Unidos, na França e presentemente na Itália, Henrique Oswald foi tema de teses de doutorado. Da primeira, defendida por mim na FFLECH-USP no longínquo 1988, são hoje diversas apresentadas em nossas terras.

A “tesi di dottorato in Storia delle Arti e dello Spettacolo” foi sustentada pelo excelente pianista italiano Marco Rapetti junto à “Università degli Studi di Firenze”. Há poucos anos atrás recebi mensagem de Marco Rapetti – nosso primeiro contato -, conhecedor de minhas gravações e meu livro “Henrique Oswald – músico de uma saga romântica” (São Paulo, Edusp, 1995). Um profícuo diálogo via whatsapp perdurou, graças à escolha do tema de Rapetti para a sua tese. Veio ao Brasil para pesquisar os acervos da Bibliotena Nacional e do Arquivo Nacional no Rio de Janeiro, da Universidade de São Paulo e da documentação que acumulei a partir de 1978, fonte de permanente aprofundamento.

Marco Rapetti estudou em Gênova, Florença e Nova York. Realizou mestrado e doutorado na Julliard School. Obteve vários prêmios internacionais e se apresentou na Europa, América do Norte, Japão e Austrália. Gravou para vários selos, entre os quais Dynamic, Stradivarius, Naxos e Brilliant. Entusiasmou-me o interesse do pianista exemplar, autor de inúmeras gravações em CDs, prioritariamente focalizadas em integrais de compositores extraordinários, mas pouco ventilados, fato a ser absolutamente louvado. Essa busca pelo repertório pouco frequentado foi mais um elo para o nosso ótimo entendimento. Mencionaria suas gravações de obras completas para piano dos russos Alexander Borodine (1833-1887), Anatoly Lyadov (1855-1914) e do francês Paul Dukas (1865-1935), entre tantos outros importantes registros. Marco Rapetti é professor do Conservatório de Florença, cidade na qual Henrique Oswald e sua mãe se estabeleceram em 1868. Buscou conhecer nas instituições florentinas dados fundamentais sobre o compositor, que em Florença viveu cerca de três décadas. Lembraria ao leitor que Henrique Oswald se casaria com uma nativa, Laudomia Gasperini. O casal teve quatro filhos, sendo que Alfredo foi excelente pianista e Carlos, quando na juventude da idade madura, se estabeleceria no Rio de Janeiro, tornando-se o pioneiro da gravura em metal no Brasil e autor dos desenhos preliminades que resultaram da elaboração do Cristo Redentor, no Corcovado.

Chamou-me a atenção o relevante contributo de Marco Rapetti, penetrando profunda e fisicamente, no primeiro caso através de cuidadosa pesquisa e, em segundo lugar, na sua presença, durante a elaboração da tese, nos espaços vividos pelos Oswalds. Das tantas teses sobre o compositor, é a primeira desenvolvida sob os ares florentinos. Como curiosidade, Rapetti vive em uma morada em Florença bem próxima da casa em que viveu Henrique Oswald durante um bom período.

Clique para ouvir, de Henrique Oswald, “Il Neige!” (1902), na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=n0RxYeQbBbo

Extraí algumas passagens incluídas na tese e que posicionam a música em Florença nos tempos de Henrique Oswald. Escreve Rapetti: “Embora a pesquisa musicológica dos últimos anos tenha questionado o conceito de ‘renascimento instrumental italiano’, normalmente usado para se referir à geração de músicos que trabalhou na Itália pós-unificação, também é verdade que os principais compositores de piano e música de câmara considerados representativos desse suposto renascimento não vêm do antigo Grão-Ducado da Toscana, paradoxalmente o berço de uma grande tradição instrumental revigorada pela influência austríaca e na vanguarda do debate crítico e da abertura à Europa. Enquanto em Nápoles, o centro pianístico mais avançado junto com Milão, encontramos uma figura como Martucci, em Bolonha Golinelli, em Roma Sgambati e em Cosenza Rendano, a Toscana é geralmente mencionada apenas por ser o berço de Busoni, um compositor que, embora ilustre, na verdade pertence mais ao mundo germânico do que ao italiano. A peculiaridade de Florença, capital pro tempore do Reino da Itália e cidade cosmopolita por excelência, é ter visto a presença de dois pianistas-compositores florentinos por adoção, Edgardo Del Valle De Paz e Henrique Oswald, que, embora plenamente inseridos nesse ‘renascimento’, foram completamente esquecidos após o advento do fascismo”. Edgardo Del Valle De Paz (1861-1920) nasceu no Egito. Continua Rapetti: “Se no primeiro caso as leis raciais tiveram impacto, no segundo o especioso problema da nacionalidade desempenhou seu papel. Nascido no Brasil em 1852, filho de pai suíço e mãe toscana, e radicado na Itália aos dezesseis anos, Oswald acabaria retornando definitivamente ao Rio de Janeiro em 1911, permanecendo sempre profundamente ligado a Florença, onde estudou, viveu e trabalhou por mais de trinta anos. É a esta figura — hoje amplamente revalorizada pela musicologia brasileira, mas ainda praticamente ignorada pela musicologia italiana — que se dedica esta investigação, com base em fontes e documentos, em grande parte inéditos, conservados em Florença e no Brasil. Partindo da história dos laços culturais entre a Toscana e o país sul-americano, e de uma investigação genealógica da família Oswald-Cantagalli, o estudo descreve o ambiente musical de Livorno no início do século XIX, em que viveu a mãe de Oswald, para, em seguida, partir para uma análise ampla do ambiente florentino, no qual o músico ‘ítalo-suíço-brasileiro’ se viu imerso por longo tempo, primeiro como estudante e depois como concertista, compositor e professor. O capítulo final é dedicado aos últimos vinte anos passados por Oswald no Rio de Janeiro, onde se consolidou como um dos músicos mais importantes de sua geração, embora tenha sido condenado ao ostracismo pela crítica nacionalista da década de 1920 por ser ‘excessivamente’ europeu”. Essa última observação sobre a nuvem cinzenta sobre a obra de Oswald só foi dissipada paulatinamente, após o “redescobrimento” da composição oswaldiana a partir da segunda metade do século XX.

A elaboração de uma tese de doutorado, a meu ver, deve pressupor sempre o ato amoroso e jamais, como princípio, aquele voltado unicamente à progressão na carreira. Os almoxarifados das universidades estão abarrotados de teses defendidas que nunca serão consultadas. É a dedicação ao tema escolhido, a demandar empenho e entusiasmo, que definirá a qualidade do trabalho e, doravante, o seu efeito salutar para os pesquisadores futuros. Acompanhei o intenso labor de Marco Rapeti. Sua tese resgata algo fundamental para o desvelamento maior de Henrique Oswald, pois, apesar dos diários familiares conservados em instituições do Rio de Janeiro, é a primeira vez que o compositor é resgatado sob a competência de um extraordinario pianista italiano, que vive no solo que foi tão caro ao nosso excelso compositor. Oxalá, a partir dessa tese referencial, outras incursões na bela cidade da Toscana possam trazer revelações ainda ocultas a respeito de Henrique Oswald.

Marco Rapetti apresentou, em Livorno, a primeira audição moderna do Quarteto op. 5 de Oswald. Enviou-me a gravação via WheTransfer, mas, por motivos ligados ao tempo escasso que a plataforma online fixa para que uma transferência permaneça e à minha inépcia internética, não consegui anexar ao blog. Tão logo consiga, após ajuda, anexarei a um blog futuro. No entanto, apresento duas gravações referenciais extraídas dos inúmeros CDs gravados por Marco Rapetti, pianista e pesquisador vocacionado.

Scriabine, “Valsa” op.1 in fá menor

https://www.youtube.com/watch?v=0ixMOOsREFs

Franz Liszt “Bagatela sem tonalidade”

https://www.youtube.com/watch?v=vBr64M7bH8I&t=1s

The excellent Italian pianist and researcher Marco Rapetti has defended his doctoral thesis at the Università degli Studi di Firenze on our greatest romantic composer, Henrique Oswald. It’s a magnificent thesis, the first in Florentine soil, precisely in the city where Oswald lived with his family for thirty years.

Um compositor a ser sempre lembrado

Escuta, escuta: tenho ainda uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai salvar o mundo,
não mudará a vida de ninguém,
mas quem é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido da vida de alguém?

Eugénio de Andrade (1923-2005)
(ilustre poeta português)

Primeiramente, apresento uma mensagem da sensível Eliane Ghigonetto Mendes, viúva do notável compositor Gilberto Mendes, que me privilegiou ao longo dos anos dedicando-me 30 peças para piano, que tive o prazer de apresentar em público em nossas terras e no Exterior, gravando algumas dessas preciosas criações. Eliane ratifica exemplarmente o conteúdo do blog anterior, após assistir a um vídeo no qual uma conhecida composição de J.S. Bach é interpretada de maneira acrobática, logo após uma execução num andamento tradicional. “Num dia desses assisti no Film & Arts um concerto em Nova York, mesclando jazz com música erudita. O ‘Solfeggietto’ foi uma das músicas escolhidas, primeiro sendo tocada no andamento moderado em uníssono, pela orquestra e pela pianista, em seguida com apenas ela tocando em altíssima velocidade que mal se podia distinguir a música, soando apenas como um ‘turbilhão’ de notas. Era uma pianista jovem, oriental, mostrando sua virtuosidade e, com o público aplaudindo, concentrado apenas em sua virtuosidade, não importando a música que estava sendo tocada. O foco, cada vez mais, é o intérprete, tanto por parte do público como do executante, com os concertos funcionando mais como uma ‘olimpíada’, onde os ‘atletas’ competem entre si pela maior velocidade, deixando a emoção e o sentimento da interpretação cada vez menos presentes. Poucos ousam fazer a íntegra da Arte da Fuga de Bach, como fez recentemente um jovem pianista russo num concerto em Berlim, fazendo-nos imergir no mais profundo espiritual do nosso divino Ser. Enfim, o ‘vazio’ presente em todas as áreas, até mesmo na música…”.

Um dos leitores, José Afonso, fez uma provocação: “Professor, o senhor tem priorizado compositores estrangeiros. E os nossos?” Veio-me à mente nosso maior compositor romântico, Henrique Oswald, algumas vezes presente nos blogs hebdomadários ao longo dos anos, mas ainda a ser difundido de maneira mais ampla.

Estava em meus planos lembrar novamente de Henrique Oswald, um grande mestre da música. A mensagem do leitor e a consequente presença de várias gravações minhas inseridas no Youtube pelo prestigiado Instituto Piano Brasileiro fizeram com que antecipasse um primeiro approach oswaldiano, contextualizado nessa temática sobre obras maiúsculas pouco frequentadas pela grande maioria dos pianistas, independentemente da dificuldade técnico-pianística maior ou menor. Estou a me lembrar de afirmação do nosso saudoso pianista, o notável Nelson Freire (1944-2021), que rezava ser mais difícil gravar uma obra lenta do que uma de movimento rápido. Confesso que, ao longo das gravações dos meus 25 CDs no Exterior, vinha-me sempre a lembrança da assertiva de Nelson Freire, mesmo tendo eu gravado CDs com as integrais dos Estudos de Claude Debussy (1862-1918) e de Alexander Scriabine (1872-1915), assim como três outros só de Estudos de autores contemporâneos pátrios e de diversos países, alguns de alta transcendentalidade.

Numa oposição visceral ao conteúdo do blog anterior, tipificado através das composições de Charles-Valentin Alkan e a virtuosidade plena em tantas de suas criações, provocadoras de recordes a serem batidos, o presente blog homenageia Henrique Oswald nessa visão onírica em tantas de suas obras para piano, nas quais a expressividade em seu limite é detectável desde os primeiros compassos, exemplificada nos “Six morceaux op. 4”, compostos em Florença na juventude da idade madura, criações em que Oswald evidencia um talento singular no campo melódico e na configuração escritural.

Clique para ouvir, de Henrique Oswald, “Six Morceaux op. 4”, na interpretação de J.E.M.:

Valse

https://www.youtube.com/watch?v=efR9ENaw50I

Rêverie

https://www.youtube.com/watch?v=kQVASBH6oRM

Menuet

https://www.youtube.com/watch?v=mJw238kXbZk&list=PLKya-u1rrLoojQjyqYoU1nqYtlSLT0nNn&index=9

Berceuse

https://www.youtube.com/watch?v=0yU3gEcXvVU&t=6s

Barcarole

https://www.youtube.com/watch?v=AVZCFB_v_ro&t=8s

Impromptu

https://www.youtube.com/watch?v=HW5wC-wlFbw

O extraordinário da composição destinada ao piano é a diversificação, da criação mais simples, mas substanciosa, ao ilimitado proposto por Charles-Valentin Alkan. Toda obra desses grandes mestres esconde um mistério. O filósofo-musicólogo Vladimir Jankélévitch bem considerou a diferença entre segredo e mistério: aquele pode ser desvelado, o mistério é indecifrável e o instante do acontecido da criação é insondável. Mesmo para aqueles pianistas preservadores do que foi composto e que tiveram longa existência, fácil é notar que a execução se transforma com o avanço da idade e que nesse longo percurso o mistério da criação permanece. Estou a me lembrar do pensamento sobre esse “Mistério” formulado pela nossa mais expressiva pianista, Guiomar Novaes (1895-1979), quando ao tocar para ela o Carnaval de Viena op. 26, de Schumann, em sua residência. Afirmou a excelsa pianista ao jovem de 17 anos que a minha interpretação tinha arroubo e entusiasmo, mas que ela iria se transformar com o passar dos anos, finalizando que, ainda adolescente, interpretara o Carnaval op. 9 do compositor alemão, tendo executado inúmeras vezes mundo afora, mas que ainda tinha dúvidas quanto à interpretação de determinados segmentos. Ficou-me como verdadeira lição de vida.

Corroboro o pensamento de Nelson Freire, pois uma das composições mais complexas que gravei, mercê da infinidade de matizes sonoros, foi a magnífica “Résonances”, de Daniel Gistelinck (1948-), compositor belga.

Clique para ouvir, de Daniel Gistelinck, “Résonances”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=4XflfeoeAl8

Uma brilhante tese de doutorado, a versar sobre Henrique Oswald, foi defendida  na Universidade de Firenze pelo excelente pianista e pesquisador italiano Marco Rapetti. Oswald viveu cerca de 30 anos na bela cidade da Toscana. Debruçou-se Rapetti sobre o compositor, justamente na cidade em que é professor, tendo acesso a inúmeros documentos inéditos. O próximo blog será destinado à essência dessa magnífica tese.

In contrast with virtuosity taken to its highest level, the more intimate piano creations written by excellent composers throughout history reveal treasures that deserve greater attention by pianists in their public performances. Henrique Oswald, our greatest romantic composer (1852-1931), is still awaiting greater public recognition.

Um tema da atualidade

Se há uma fisionomia de artista
original e curiosa a ser estudada entre todas,
é com certeza a de Charles-Valentin Alkan,
cujo interesse é redobrado
por uma espécie de enigma a penetrar.
Antoine-François Marmontel (1816-1898)

Após centenas de blogs sobre música, priorizando inúmeros aspectos da área e o piano a preponderar, recebo mensagem de uma leitora atenta, Ana Sílvia, que gostaria que considerado fosse um post a abordar a virtuosidade plena, máxime após ter ouvido no blog anterior gravação de Yuja Wang exibindo uma composição de Rimsky Korsakov (1844-1908), “O voo do besouro”, transcrita por György Czifra (1921-1994). Menciona o surgimento de jovens pianistas, mormente de origem asiática, com técnicas voltadas ao extremo da virtuosidade pianística e o fazendo com a maior naturalidade. Este preciso enfoque já salientara em “José Eduardo Martins – Un pianiste brésilien”, Université Paris-Sorbonne, Observatoire Musical Français, Série Témoignages, nº4, 2012.

A alusão à virtuosidade plena me fez lembrar de um compositor entre aqueles pouco ventilados, máxime pela extrema dificuldade de suas criações. Trata-se de Charles-Valentin Alkan (1813-1888), um compositor francês de origem judaica muito considerado em seu tempo, graças também às suas qualidades como exímio pianista e professor. Privou da amizade de músicos e literatos como Victor Hugo (1802-1885), Lamennais (1782-1854), Georges Sand (1804-1876) e, por consequência, de Fréderic Chopin (1810-1849). Com o passar do tempo tornou-se misantropo e hipocondríaco, agravado pelo fato de que uma de suas aspirações, ser professor do Conservatório de Paris, não se realizou, mercê da nomeação de Antoine-François Marmontel (1816-1898), que se tornaria o nome referencial do ensino de piano em França. De temperamento ao menos nervoso, com o passar dos anos viveu praticamente no isolamento, reclusão voluntária, que não o impediu de continuar a compor. Não obstante, recebia visitantes, entre eles Franz Liszt (1811-1886) e Anton Rubinstein (1829-1894), quando esses notáveis músicos estagiavam em Paris. Sua biografia salienta a causa de sua morte, ocorrida após consultar livros em estante elevada da sua biblioteca, que desabou sobre ele. É lamentável verificar que determinados livros sobre a música francesa das primeiras décadas do século XX ignoram Alkan por completo.

Escreveu majoritariamente para piano e seus Estudos e Prelúdios se destacam pela presença da técnica pianística levada tantas vezes aos extremos da dificuldade e de um estilo absolutamente pessoal no que tange à feitura de suas composições. Outro aspecto a salientar é a longa extensão de muitos dos seus Estudos para piano. Joseph d’Ortigues, crítico de “La France Musicale”, escreveria em 1844: “O Sr. Charles-Valentin Alkan é um grande talento, um talento eminente, fora de série… Se M. Alkan não goza da reputação que merece, é porque é ouvido muito raramente.  Suas composições desviam-se das formas em voga pela maioria dos solistas; o resultado é que uma ou duas audições não são suficientes, e o público fica confuso e dificilmente  consegue compreendê-lo”.

Em diversos concursos internacionais de piano nessas últimas décadas, ditados quase sempre pela tradição, quando solicitam aos candidatos a execução de Estudos de virtuosidade, fazem-no quase sempre privilegiando Estudos de Chopin, Liszt, Debussy, Scriabine e Rachmaninov. Alkan, longe de ter a notoriedade dos citados, possivelmente deveria estar entre eles, mercê do tratamento singular que dá ao Estudo.

É salutar verificar que, mais presentemente, pianistas jovens se debruçam sobre as criações virtuosísticas de Alkan, reveladoras do alargamento da forma, destemor na escrita, sem qualquer concessão ao intérprete no quesito virtuosidade. Poder-se-ia dizer, numa visão imaginária, que Alkan compôs visando ao futuro da técnica pianística voltada às dificuldades extremas. E esse futuro se faz presente, mercê da difusão progressiva de sua obra empreendida desde meados do século XX.

O pianista francês Bernard Ringeissen (1924-2025) foi um dos poucos cultores naquele período, entre as décadas de 1950-1960.

Clique para ouvir, de Alkan, “Saltarelle op. 23”, na interpretação de Bernard Ringeissen:

https://www.youtube.com/watch?v=QBySSdzwTk8

Marc-André Hamelin (1961-), relevante pianista canadense,  debruçou-se em alto nível sobre as criações de Alkan, interpretando-as em público e gravando suas obras.

Clique para ouvir, de Alkan, “Le Festin d’Esope” op. 39, nº 12, inusitado tema com variações onde se tem bravura e virtuosidade extrema, jocosidade e lirismo, na interpretação de Marc-André Hamelin:

https://www.youtube.com/watch?v=SSxbao_Chq0

Se considerada for a atração que a virtuosidade desperta, mormente no Extremo Oriente, o futuro parece promissor àqueles que desenvolveram as habilidades técnico-pianísticas no mais alto grau. Mencionei, anos atrás, as palavras de um professor francês que dirigia o Conservatório de Pequim. Dizia ele que, em pouco tempo, os chineses seriam imbatíveis sob o aspecto técnico-pianístico, os mais velozes (sic).

Clique para ouvir, de Charles Valentin-Alkan, “Le Chemin de Fer”, na interpretação do pianista japonês Yui Morishita (1981):

Yui Morishita – Le chemin de fer, Étude pour Piano (Alkan)

Clique para ouvir, de Alkan, o 4º movimento da Sinfonia para piano solo, na interpretação de Kit Armstrong (1992-), pianista americano de ascendência britânico-taiwanesa:

https://www.youtube.com/watch?v=v7tM9eukKDk

Antolha-se-me que a velocidade extrema que se faz presente mais recentemente nas interpretações de alguns pianistas da nova geração, mormente oriundos do Extremo Oriente, poderia ser uma característica das muitas influências advindas de outras áreas em mutações constantes a resultar na maior rapidez concernente às comunicações. Se observarmos a execução de Bernard Ringeissen, acima mencionada, interpretava o ilustre pianista “Saltarelle op. 23” de Alkan em um andamento considerado previsível. As composições de Alkan sempre foram consideradas de altíssima virtuosidade e, talvez pelo fato, ficaram “à margem” das programações habituais. Mark-André Hamelin impulsionou ou, sob outra égide, “restituiu” os andamentos de Alkan e as novas gerações com raízes na China e Japão, prioritariamente, entendem hoje Alkan como desafio. Esses “velocistas”, seguindo contudo a condução das frases musicais de maneira tradicional, o que é corretíssimo, têm tudo para prosseguir quebrando recordes. Não o fariam no âmbito do repertório tradicional, apesar de tentativas nesse desiderato, e a história da interpretação pianística evidenciou com clareza determinados pianistas que suplantaram isoladamente andamentos fixados, mas não tiveram epígonos, mercê da força da tradição.

Na esfera esportiva, atletas não têm tentado quebrar o recorde do jamaicano Usain Bolt para os 100 metros rasos (9,58 segundos no Campeonato Mundial em Berlim em 2009), que por sua vez ultrapassara o do norte-americano Karl Lewis, que mantinha o recorde desde 1991 (9,86 segundos no CM em Seul)? O que é salutar, no que concerne ao repertório pianístico, é a presença mais acentuada das criações de Charles-Valentin Alkan. Um expressivo compositor do século XIX em plena ascensão num compartimento singular da arte pianística e, poder-se-ia acrescentar, um imenso “laboratório” voltado à quebra de recordes. É só aguardar.

Charles-Valentin Alkan (1813-1888) composed works, mainly piano studie, exploring the limits of virtuosity. Little by little, he is being discovered by technically gifted pianists who see his creations as challenges, records to be broken.