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Patrimônio Mundial da Humanidade

Cinco joias de Coimbra  é uma revisitação carinhosa de cinco espaços
particularmente emblemáticos da cidade de Coimbra,
todos eles classificados pela UNESCO entre 2013 e 2019.
João Gouveia Monteiro
(extraído do prefácio de “Cinco joias de Coimbra”)

La bibliothèque la plus fastueuse que j’aie jamais vue.
Germain Bazin (1901-1990), notável historiador de arte.
(Comentário sobre a Biblioteca Joanina)

Não poucas vezes neste espaço comentei a respeito da imperiosa necessidade de se preservar patrimônios materiais que sinalizam a passagem do homem em suas aspirações maiores. O legado físico ganha outra dimensão quando acompanhado pelos porquês da existência e o consequente longo caminho até a concretização final, a encantar gerações através dos séculos.

“Cinco Joias de Coimbra”, sob a coordenação de João Gouveia Monteiro, ilustre medievalista, professor catedrático da Universidade de Coimbra e autor de obras referenciais em sua área resenhadas neste espaço, e de Maria Leonor Cruz Pontes, licenciada em História (variante de Arqueologia) e mestre em Museologia e Patrimônio Cultural, titulações pela Universidade de Coimbra, é primeiramente um belo livro pleno de interesse que transcende (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2022). As cinco joias estão presentes no livro através de textos redigidos por renomados especialistas, que remontam às origens dos temas abordados. O prefácio, de autoria dos coordenadores, sinaliza a importância da obra documental, ricamente ilustrada. Não apenas realizam um abrégée do conteúdo da publicação, como inserem posicionamentos precisos numa área que lhes é familiar.

A Biblioteca Joanina, a Capela de São Miguel, o Órgão da Capela de São Miguel, o Jardim Botânico e o Museu Nacional de Machado de Castro são desvelados em seis capítulos riquíssimos, plenos de informações, muitas delas jamais vindas a público. Ourivesaria intelectual.

Dois capítulos são reservados à Biblioteca Joanina, o primeiro, “Contar como foi: Sobre a construção da Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra”,  escrito pelo ilustre professor jubilado, especialista da história setecentista da Universidade de Coimbra, Fernando Taveira da Fonseca. Debruça-se sobre o tema, desenvolvido anteriormente em 1995, ora acrescido. No presente, há preciosa documentação indicadora da atenção dada ao financiamento, às etapas construtivas e pormenores do pórtico à magnífica pintura de Giorgio Domenico Duprá (1689-1770), ricamente emoldurada, retratando D. João V (1689-1750). Entre esses documentos basilares, um precioso, enviado por Nuno da Silva Teles (II) Reitor da Universidade de Coimbra entre 1715-1718, ao rei D. João V, expondo a necessidade de um novo prédio, a abrigar uma vasta e recente coleção merecedora do empreendimento. O lançamento da primeira pedra se deu em 17 de Julho de 1717. Taveira da Fonseca acompanha o desenvolvimento da empreitada, destaca as relações dos mestres de obra e dos muitos artistas com os contratantes.

António Filipe Pimentel, Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, renomado historiador da arte, máxime na especialidade da arte barroca – dirigiu vários museus fundamentais portugueses -, assina “A Biblioteca enquanto espelho – Arte e Poder”.

Inicia a historiar a constituição de uma biblioteca em Portugal a partir do século XV, em Lisboa, e as várias coleções que viriam a enriquecer o acervo. Em 1548 é aberta a “livraria pública” em Coimbra com ainda um pequeno acervo. Instalada não em ambiente propício, foi somente entre 1717 e 1728, com o encerramento das obras da nova livraria, que se concretizavam tantas esperanças.

Escolhido o terreno, apesar de desníveis, lentamente seria erguida a casa a abrigar os acervos literários. Escreve Pimentel: “A empreitada da pedraria ficaria concluída em 1722, altura em que, todavia, já se haviam iniciado os trabalhos interiores de construção das estantes e demais carpintarias”. Enfatiza a seguir a ação dos trabalhos artísticos que consagrariam a Biblioteca Joanina na sua singularidade. Frise-se a pintura extraordinária e decorativa dos tetos das três salas, verde, vermelha e negra, separadas por arcos comunicantes. Pimentel aborda o tratamento artístico das madeiras com seus sugestivos entalhes. Externa que “… bronzistas, latoeiros, vidraceiros e um sem número de artistas e artífices eram paralelamente utilizados, nos mais diversos ofícios, destacando-se entre estes o italiano Francesco Realdino, ele também estabelecido na corte, contratado em 1725 para a realização dos seis sumptuosos bufetes ou mesas de leitura, obras-primas da marcenaria setecentista, realizados em madeiras preciosas e concluídos dois anos depois”. António Filipe Pimentel nomeia alguns artistas em suas respectivas atividades e se estende através das décadas, conduzindo o leitor ao nome do primeiro bibliotecário da Joanina, António Ribeiro dos Santos, em 1777.

Os coordenadores bem pensaram nesses dois preciosos contributos, de Fernando Taveira da Fonseca e António Filipe Pimentel. Os dois textos se complementam harmoniosamente..

No terceiro capítulo, “A Capela de São Miguel da Universidade de Coimbra: do Paço Real ao Real Paço das Escolas”, assinado pelo Professor Gabriel Pereira, mestre em História da Arte, Patrimônio e Turismo Cultural pela Faculdade de Letras da UC, o autor parte das origens da Capela, que remontam ao século XI. Acompanha as etapas posteriores, percorre o século XVI com a reforma promovida no paço de Coimbra. Gabriel Pereira escreve: “Após a finalização das obras da capela de São Miguel, tornava-se necessário dotá-la de um conjunto de elementos fundamentais para a celebração do culto religioso, uma vez que era através de obras como os retábulos, as pinturas, as esculturas ou as peças de ourivesaria que se constituía uma narrativa cristológica e mais facilmente se cumpria uma função didática junto da comunidade acadêmica”.

A seguir, Gabriel Pereira se debruça resumidamente sobre várias das inúmeras obras de arte da Capela de São Miguel: “O retábulo da capela-mor, A decoração das paredes e do teto, esculturas e ourivesaria, O lugar da música”.

Algo de suma importância que o Professor salienta refere-se ao fato de que, no decorrer de cinco séculos, a Capela de São Miguel foi se adequando aos gostos de tantos artistas, da vontade dos reis e autoridades acadêmicas. Contudo, o histórico templo mantém uma “unidade” que seduz o visitante.

Dado o espaço a que me proponho, comentarei no próximo blog as três outras joias conimbricenses contempladas no magnífico livro.

A leitura de “Cinco joias de Coimbra” acentua ainda mais o privilégio que sinto ao lembrar dos dez recitais de piano que apresentei na Biblioteca Joanina, de 2004 a 2022, sendo que, na primeira récita, com um programa inteiramente dedicado ao genial compositor conimbricense Carlos Seixas (1704-1742), num colóquio a homenagear o tricentenário de nascimento. Graças à ação do notável e saudoso musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso, Sonatas para cravo foram apresentadas em três recitais contemplando cravo (Ketil Haugsand – Noruega), piano (José Eduardo Martins), órgão (José Luis Gonzáles Uriol – Espanha), os dois primeiros na Biblioteca Joanina, o de órgão, na Capela de São Miguel da UC. Confesso que, nos meus 70 anos de atividade pianística, a Biblioteca Joanina foi certamente o espaço que mais me impactou pela beleza única e sua aura inefável.

Clique para ouvir de Carlos Seixas, Sonata nº 78 em Si bemol maior, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=E8GX3qIjfLI

Five Jewels of Coimbra, World Heritage is an affectionate revisitation of particularly emblematic spaces in the city of Coimbra, all of which were classified by UNESCO between 2013 and 2019.

 

O leitor como partícipe

Il est plus aisé de connaître l’homme en général
que de connaître un homme en particulier.
La Rochefoucauld  (1613-1680)
(“Réfléxions ou sentences et maximes Morales”)
Máxima inserida no primeiro blog.

Neste preciso 2 de Março completamos 17 anos de blogs ininterruptos, publicados semanalmente, sempre aos sábados. Ao todo, exatamente hoje, chegamos aos 900 posts. Foram tantas as vezes em que comentei que, assim como a respiração não pede férias, as crônicas hebdomadárias também. Durante esse longo período, mesmo em situações difíceis, temas surgiam e eram digitados tão logo o arcabouço se formava em minha mente. Meu saudoso amigo Luca Vitali (1940-2013), artista exemplar, sempre que lhe apresentava um tema do post da semana que lhe era caro, dias após me enviava um desenho.

O primeiro blog publicado no longínquo 2007 teve como título “Praeambulum”. Reproduzo frases contidas no post inicial: “Pareceria cristalino que parte do meu de profundis estará a ser desvelado e, assim, tantos segredos virão a ser decifrados. Manter a periodicidade será fruto prazeroso. Após a sedimentação do blog, o hábito e o consequente afeto ao mister”.

Nessas centenas de crônicas, houve períodos em que determinados temas me levaram a dedicar séries que paulatinamente pontuavam intercaladas por assuntos outros, geralmente sem continuidade. Assim sendo, quantos não foram os livros do geógrafo, escritor e andarilho francês Sylvain Tesson (1972-) ou das aventuras de sucesso ou trágicas empreendidas por sonhadores na cadeia do Himalaia?  Essas intrépidas figuras permeavam minhas leituras desde a adolescência, juntamente com os grandes escritores do passado, neste caso orientado pelo meu saudoso Pai, que sempre entendeu a leitura dos clássicos como alicerce para a formação humanística.

A série sobre grandes pianistas do passado surgiu espontaneamente. À medida que pianistas desfilavam no meu blog, lembrava-me de outros mais, notáveis todos. A reverência ao passado glorioso desses músicos extraordinários sempre teve uma razão fulcral, o profundo respeito às partituras professado por esses intérpretes. Igualmente havia a gestualidade econômica, pois o essencial era a transmissão a mais fidedigna das obras executadas. Luminares de antanho, quando vocacionados às letras, deixaram, além das gravações excelsas, depoimentos que servem como bússolas àqueles novéis que tendem a trilhar o caminho da interpretação.

A temática sobre o repertório que gravei, máxime na Bélgica, povoou vários blogs, estes sempre acompanhados por explicações concernentes à origem da criação e do porquê de estar a gravar. Prioritariamente gravei obras extraordinárias do passado, pouco ou nada frequentadas pelos intérpretes. Quanto à música contemporânea, gravei peças de várias tendências, contudo me ative mais acentuadamente àquelas que não buscavam “suprimir as referências de outros períodos artísticos”, no dizer do ilustre compositor francês François Servenière (1961-).

Clique para ouvir, de François Servenière, Promenade sur la Voie Lactée, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=LSfmHoqmjoo

Bem mais de uma centena de posts dediquei à Cultura portuguesa, mormente à música. Não tenho dúvidas de que esse afeto teve origem na pregação de nosso Pai, minhoto, aos valores de Portugal. Ao longo das décadas, na  medida em que penetrava nessa Cultura, mais a admirava. É um privilégio ter dois livros publicados pela Imprensa da Universidade de Coimbra sob o título “Impressões sobre a Música Portuguesa e outros temas” (I e II). Grandes compositores de Portugal, Carlos Seixas (1704-1742), Francisco de Lacerda (1869-1934), Fernando Lopes-Graça (1906-1994), Jorge Peixinho (1940-1995) e Eurico Carrapatoso (1962-) não apenas pontuaram inúmeros posts, como deles gravei obras referenciais, algumas delas hoje no Youtube. Só lamento a quase absoluta ausência da música de concerto, clássica ou erudita portuguesa nos repertórios de nossos intérpretes. Infelizmente, as representações – oficiais ou não – de Portugal pouco ou nada divulgam a música erudita do seu país em nossas terras. Fato.

Clique para ouvir de Carlos Seixas, Sonata nº 34 em mi menor, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=QXoSKycVA5k&t=14s

A leitura – assim como a exponencial música – também faz parte do meu respirar. Desses 900 posts, mais de 250 foram resenhas de livros que me encantaram (vide lista no menu do blog: Livros – Resenhas e comentários). Quantas vozes têm pregado a necessidade da leitura, infelizmente, máxime pelas novas gerações, reduzida basicamente às engenhocas telemóveis. Pouco a fazer.

Nesses 17 anos, as corridas de rua tiveram espaços em meus blogs. A partir do início de 2022 só realizo caminhadas de oito a dez km duas vezes por semana, após duas centenas de corridas de rua em São Paulo, cidades vizinhas e Bélgica. Acatei a sábia opinião do notável ortopedista Dr. Heitor Ulson, após uma queda que sofri durante treinamento e que teve como consequência a quebra da cabeça do úmero do braço esquerdo. Felizmente, o acidente não prejudicou minha prática pianística. Das corridas do passado às caminhadas atuais, os temas frequentam a minha mente no ato da prática esportiva, e em plena madrugada, meus dedos visitam um outro teclado.

Quanto ao cotidiano, que por vezes aflora como temática, devo ao hábito de observar desde a adolescência. Foram muitos os posts sobre viagens e decorrências devidas às atividades musicais. Acredito que observar é um dos dons fundamentais do homem e se amalgama perfeitamente à curiosidade. Através desta última chegamos às investigações, descobertas e resultados, mesmo que tímidos, fundamentais para o homem a fim de um conhecimento mais abrangente.

Instigado por diversos leitores para que me pronuncie sobre política em meus blogs, declino sempre. Há especialistas, alguns ilustres, que realizam análises inteligentes. Um deles, meu querido irmão, o jurista Ives Gandra Martins, uma das mentes mais brilhantes deste país.

Ficam neste espaço meus agradecimentos efusivos aos leitores que têm me acompanhado nessa já longa viagem. É sempre motivo de alegria a recepção de mensagens vindas de tantos rincões diferentes. Seguirei a publicar os blogs sempre aos sábados. Estímulo não falta, mormente nesses tempos tão estranhos que estamos a viver. Grato também à Regina Maria, vizinha desde os anos 1980 e dileta amiga, que faz a revisão de meus blogs, pois gralhas existem e, no dizer do nosso grande compositor romântico Henrique Oswald (1852-1931), “o pior revisor é o autor e, entre esses, sou o pior”. Por fim, Regina, minha mulher, pianista também e que sempre teve a paciência de me entender nessas viagens pelo imaginário. Ela e o querido clã familiar corroboram a travessia.

On March 2nd my blog completes 17 years of continuous weekly publication. I haven’t missed a single Saturday. Thanks to all my readers for their constant encouragement.

 

Transformações no século XXI

Viva sempre o presente com discernimento,
assim o passado será uma bela lembrança
e o futuro não se apresentará como um espantalho.
Franz Schubert (1797-1828)

O blog anterior suscitou uma série de questionamentos por parte de fiéis leitores. Se a música em suas essencialidades, respeito à partitura ou arbitrariedade, divide os intérpretes, os seguidores que acompanham os blogs semanais estariam interessados também em aspectos que intervêm na trajetória do músico, como o empresário, personagem que o agenda, mas cujos interesses majoritariamente são outros. Será ele que entrará em contato com agentes locais ou espalhados pelo mundo, cuidará da divulgação frente aos meios precisos, dos cachês a serem recebidos e estará atento à recepção pública. Questionam igualmente sobre a gravação e suas transformações sob o aspecto tecnológico. Um leitor ponderou se ela se manterá perene.

A se considerar a índole do intérprete. Muitos são os fatores que distanciam os executantes mediáticos que se adaptam aos desideratos do mercado, daqueles que,  buscando caminhos outros não recebem a atenção maior desse sistema sempre em ebulição. Inúmeras biografias de intérpretes que se notabilizaram retratam a relação nem sempre adequada entre o artista e o agente, pois choques podem ocorrer, mercê do “compromisso” deste com o gosto vigente. Como qualquer empresário atuando em ramos os mais diversos, interessa-lhe os resultados. Esse tema relevante, tratado anos atrás em posts sobre a interpretação, adquire importância maior no presente, fruto das transformações dos costumes, do gosto e da proliferação sempre acentuada da música de altíssimo consumo e descartável que atrai as novas gerações. Contrariamente, o pouco espaço planetário à Música de Concerto, por vezes, cede à participação de músicos que praticam gêneros populares em suas apresentações. Diria, mão única.

Um aspecto preocupante relativo às gravações, faz-me lembrar da frase do ilustre arquiteto português António Menéres, dileto amigo, que em seu livro “Crônicas contra o Esquecimento” comenta: “Sempre que posso olho os meus livros, quer as lombadas simplesmente cantonadas, a sua cor, os títulos das obras: mesmo sem os abrir adivinho o seu conteúdo e, quando os folheio, reconheço as leituras anteriores, muitas das quais estão sublinhadas, justamente para me facilitar outros e novos convívios” (vide blog: “Crônicas contra o esquecimento”, 29/07/2007). Creio basilar esse testemunho a valorizar o livro físico percorrido no passado e que o simples olhar sua lombada faz reviver lembranças… Esse olhar a ativar a memória faz-me lembrar da adolescência, dos discos 78 rotações substituídos pelos Lps, um avanço considerável nessa compactação do tempo. Destes tinha meu Pai cerca de 3.000, dedicados à música clássica ou erudita nas suas várias configurações. Cada capa de Lp nos fazia antever a escuta.

Entre 1979 e 1988 gravei cinco LPs a privilegiar a obra do nosso notável compositor romântico Henrique Oswald (1852-1931) para piano solo e camerística. Das fronteiras do século XX-XXI a 2019 foram 25 CDs gravados no Exterior, Bulgária, Portugal e majoritariamente na Bélgica. O CD representou um avanço tecnológico e os ouvintes mantinham coleções, havendo inclusive móveis especiais a venda para abrigá-los. Em nossas terras e alhures, amigos e colegas músicos mantinham com certo orgulho suas coleções privilegiando seus respectivos gostos. O selo para o qual gravei na Bélgica, De Rode Pomp em Gand, do meu diletíssimo amigo, André Posman, lançava anualmente uma série de CDs impecavelmente gravados e interpretados por músicos europeus e da Rússia. Eu era o único das Américas a gravar. Jamais André sugeriu um programa a ser gravado, dando-me total liberdade na escolha do repertório, fato raríssimo entre os selos internacionais que inúmeras vezes indicam o repertório a ser gravado, geografia mutante e tempo de duração das sessões de gravação. Hoje o CD, em seus suspiros finais, não deixa sucessor físico, palpável, e todo o acervo colecionável e registrado dos primórdios do século XX em gravações rudimentares e fundamentais à qualidade atual se esvai, situadas que estarão doravante nas nuvens, na impalpabilidade online. Aparelhos de CD não mais se encontram na maioria das grandes lojas. Acredito que a menção a esses fatos evidencia a etapa final do objeto físico, CDs no caso. Durante os 17 anos escrevi vários blogs comentando cada CD gravado e as causas que motivaram a escolha do repertório.

Em programa televisivo que assisti em França, debatedores comentavam lá pelos anos 2010 que a música erudita ou clássica representava cerca de 4% de adeptos nesse amplo universo sonoro, considerando-se os ouvintes presenciais ou através das gravações. Antolha-se-me que, pelo fato de todo esse extraordinário acervo acumulado em de mais de um século, não mais estar à disposição fisicamente, mas através do streaming, poderá causar a diminuição maior de aficionados. As lombadas dos livros que abriam a memória de António Menéres ao já lido “…mesmo sem os abrir adivinho o seu conteúdo…”, a visualização das capas dos CDs que descortinavam o sonoro neles contidos, reativando a memória e essa presença física dos itens, corroboraram a retenção dos conteúdos. Os livros ainda persistem, os CDs saem de cena.

Teria o público de concerto envelhecido? Estou a me lembrar de um concerto magnífico na Antuérpia em que era apresentada pela orquestra de Flandres uma Sinfonia de Gustav Mahler. O público que lotou a sala mais parecia um campo de neve onde preponderavam cabeças brancas. Sinais do tempo, preocupantes.

É sempre bom lembrar que a grande maioria dos ouvintes de música erudita ou de concerto não é representada pela juventude, sendo que aqueles acima da meia idade, cultores da música clássica, erudita ou de concerto têm maior dificuldade de se adaptar à vertiginosa caminhada em direção à inteligência artificial. Sob outro prisma, as novas gerações, como um todo, sofrem tantos impactos sonoros dos gêneros “musicais” de alto consumo que fatalmente as desviam dos conteúdos clássicos consagrados. O mesmo se dá com a Cultura literária atingida no cerne por tantas obras rigorosamente descartáveis, mas que atingem tiragens elevadas.

Gerações futuras só conhecerão auditivamente o extraordinário acervo criativo dos compositores que permanecem e dos intérpretes do passado através do imaterial. E esse imaterial já se afigura como preocupante realidade.

In response to questions from readers, in this post I discuss the manager role in relation to the performer, marketing influences on the music industry, and the issue of recording with the end of the CD, after so many transformations of sound recording technology through time.