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Uma obra maiúscula

Se há algo surpreendente na evolução de Maurice Ravel,
é a rapidez com que ele alcança a perfeição.
Vladimir Jankélévitch
(“Maurice Ravel”, Éditions Rieder, 1939)

Os dois Concertos, em sol maior (vide blog anterior) e o para mão esquerda, foram terminados num mesmo período, segundo semestre de 1931, e são bem contrastantes, sendo que o pour la main gauche, bem mais austero, tem origem singular, sem a qual ele certamente não existiria. Essa singularidade existe em um sem número de composições ao longo da história, motivada por estímulos os mais diversos.

Maurice Ravel (1875-1937) aceitou a encomenda do pianista austríaco Paul Wittgenstein (1887-1961), irmão do filósofo Ludwig Wittgenstein (1889-1951), pois perdera o braço direito durante a Primeira Grande Guerra. No desiderato de continuar a carreira, vários compositores escreveram Concertos para a mão esquerda e orquestra dedicados ao pianista, alguns  encomendados. Entre estes últimos, as composições de Richard Strauss (1864-1949), Benjamin Britten (1913-1976), Sergei Prokofiev (1891-1953) e Maurice Ravel. O poeta e musicólogo belga José Bruyr (1889-1980) concebe pertinentes comparações entre o Concerto em sol e o Concerto para a mão esquerda: “Dia e noite, classicismo e romantismo, o lazer e a obrigação, a despreocupação e o desespero” (“Maurice Ravel ou le lyrisme et les sortilèges”, Paris, Plon, 1950).

 

Após a estreia parisiense do Concerto em sol maior para piano e orquestra (14/01/1932), Ravel e Marguerite Long, dedicatária do Concerto, empreenderam uma longa turnê pela Europa em apresentações dedicadas unicamente às obras do compositor, sempre tendo o Concerto em sol para piano e orquestra no programa.

Tem interesse a narração da pianista Marguerite Long (1874-1966) a respeito da reação de Ravel ao ouvir o pianista Paul Wittgenstein meses após a première em Viena do Concerto para a mão esquerda, que se deu em 27 de Novembro de 1931. “Em Viena, fomos convidados para um grande jantar em casa de Paul Wittgenstein, seguido de uma apresentação musical. Executaram o Quarteto e o dono da casa tocou o Concerto para a mão esquerda acompanhado por um segundo piano, para que Ravel pudesse finalmente ouvir a sua obra. Eu estava um pouco preocupada, pois, sentada à direita de Wittgenstein durante o jantar, ele me confidenciou que teve de fazer alguns ‘arranjos’ no Concerto. Desculpando-o no meu coração, pois acreditava que seu enfraquecimento físico fosse o responsável por essas liberdades, aconselhei-o a informar Ravel com antecedência. Ele não o fez. Durante a execução, acompanhava na partitura o Concerto que ainda não conhecia e podia apreciar no rosto de Ravel, que se tornava cada vez mais sombrio, os malefícios das iniciativas do nosso anfitrião. Terminada a récita, fiquei a conversar com o embaixador Clauzel, a fim de evitar um incidente. Infelizmente, Ravel se aproximou lentamente de Wittgenstein e lhe disse: ‘Mas, não é nada disso’! O anfitrião respondeu, a se defender: ‘Sou um velho pianista e o Concerto não soa bem!’ Era a única coisa que ele não poderia ter dito. ‘Sou um velho orquestrador e sei que ele soa bem’, replicou Ravel. Imaginemos o mal estar! Estou a me lembrar de que o nosso amigo ficou em tal estado de nervos que dispensou o carro da embaixada e retornamos a pé, sob um frio rigoroso, para amainar a contrariedade. Embora  concordando com ele quanto ao princípio sagrado do respeito pela obra por parte do intérprete, não pude deixar de lamentar essa discussão e defendi a causa desse infeliz, cujo apego à música era, afinal, muito comovente. Mas não consegui convencer Ravel, que mais tarde se opôs à vinda de Wittgenstein a Paris para tocar o Concerto. Justamente furioso, este lhe escreveu: ‘Os intérpretes não devem ser escravos!’ E Ravel respondeu-lhe: ‘Os intérpretes são escravos!’ Na verdade, Wittgenstein só tocou a obra em Paris em 1933. Apenas em 1937 o Concerto ficou acessível a outros, pois obra encomendada; foi então, e de acordo com o meu desejo, interpretada pelo meu querido discípulo Jacques Février com um grande e legítimo sucesso”. Tive o privilégio de ter sido aluno de Jacques Février (1900-1979) e de Jean Doyen (1907-1982), igualmente ex-alunos de Marguerite Long e intérpretes do Concerto para a mão esquerda.

A posição de Maurice Ravel é perfeitamente compreensível, pois a partitura possibilita a interpretação e esta tem a chancela da individualidade sob restrições. Dois instrumentistas executarão uma obra diferentemente, pois impossível serem essas execuções rigorosamente idênticas. Não obstante, a partitura é única e, por livre arbítrio, alterá-la significa maculá-la. Mormente a partir do século XIX, os compositores incorporaram às suas criações sinais e termos relativos à articulação, à intensidade, à acentuação, ao timbre e ao andamento e suas flutuações, majoritariamente seguidos pelos intérpretes. O desrespeito a essas sinalizações já indica arbitrariedade. Modificar a estrutura da partitura, acrescentando a bel prazer notação extra ao que está sinalizado, é inobediência. Nas últimas décadas principalmente, essas violações são frequentes e aceitas por parte do público menos conhecedor da definição da partitura. Em “La civilización del espectáculo”, de Mario Vargas Llhosa, há a exata situação do declínio da cultura erudita na atualidade e, no caso da Música, as evidências relacionadas à permissividade são sensíveis. Ravel compareceu ao evento na Ópera de Paris (04/05/1930), no qual sua conhecida composição Boléro teve como regente Arturo Toscanini (1867-1957) com a Sinfônica de Nova York. No final da apresentação, dirigiu-se ao camarim e ouviu do célebre regente as razões que o levaram a alterar progressivamente o andamento indicado, 60 a semínima, considerando que o público vibrou ao término da execução. Ravel ficou compreensivelmente furioso, pois uma razão basilar da obra é a manutenção, do início ao fim, da medição metronômica implacável, a dimensionar não apenas o crescendo do início ao fim, como também o enriquecimento instrumental.

Concerto para a mão esquerda e orquestra é uma obra extraordinária em termos de construção. Ravel conseguiu, numa criação de um só movimento, introduzir diversos elementos que se coadunam à perfeição. Se há passagens que sugerem algo sombrio – possivelmente o drama de Paul Wittgeinstein -, há apelos ao jazz e à virtuosidade a percorrer o teclado, dando até a impressão de ter sido escrito para as duas mãos, tão impactante a feitura da composição.

Clique para ouvir, de Maurice Ravel, o Concerto para a mão esquerda na interpretação histórica de Jacques Février (1900-1979), acompanhado pela Orchestre Nationale de la Radio Française, sob a regência de Georges Tzipine (1907-1987). Considerem-se os recursos tecnológicos precários, em termos atuais, da tomada de som em 1958:

https://www.youtube.com/watch?v=ZAqc2ab9ktY

Em Abril de 2001, meu irmão João Carlos ― com a mão direita comprometida, e, pouco tempo após, também a mão esquerda, mercê da distonia focal, doença neurológica que afeta os movimentos das mãos ― e eu realizamos uma turnê na Romênia e nos apresentamos em  Bucareste, Craiova e Cluj Napoca, sendo que na primeira parte interpretei obras do meu repertório e, na segunda, João Carlos executou com brilhantismo o Concerto de Ravel para a mão esquerda, enquanto eu, num segundo piano, a redução da orquestra realizada por Ravel.

The Concerto for the Left Hand and Orchestra, commissioned from Maurice Ravel by the Austrian pianist Paul Wittgenstein, is an extraordinary and unique work and the story behind it has some dramatic moments.

 

Uma história bem documentada

A música escapa a qualquer existência permanente
e só a interpretação pode dar-lhe vida,
uma vida deliciosamente e desesperadamente efêmera.
Marguerite Long (1874-1966)
(“Au piano avec Maurice Ravel”)

Um dos concertos para piano e orquestra mais executados no mundo é certamente o Concerto em sol maior para piano e orquestra, de Maurice Ravel (1875-1937). Após muitos anos, voltei a ouvir, agora via Youtube, uma gravação histórica do referido Concerto para piano com a dedicatária da obra, a lendária pianista Marguerite Long, ao piano e o autor Maurice Ravel a reger a orquestra sinfônica. Realmente uma interpretação excelsa. A gravação foi realizada em 1932 e a tomada de som, longe da qualidade atual, não impede que se depreenda o mérito da interpretação da solista. Em 1952, o Concerto seria regravado com outros recursos sonoros, sendo que Marguerite Long teve a orquestra Lamoureux conduzida por Georges Tzipine (1907-1987), regente da Orquestra Colonne, com quem que tive o privilégio de tocar o Concerto nº 3 de Beethoven em Março de 1960 em Paris.

Na bibliografia de Maurice Ravel, intérpretes renomadas que foram dedicatárias de obras fundamentais do compositor, a saber, a violinista Hélène Jourdan-Morhange (1888-1961), Sonata para violino nº 2, e Marguerite Long, Concerto em sol maior para piano e orquestra, deixaram testemunhos valiosos do convívio com o notável músico. O livro “Marguerite Long au piano avec Maurice Ravel” (Paris, Julliard, 1971) revela a intimidade da pianista com a obra para piano do compositor, máxime sobre o Concerto em sol maior. Marguerite Long aponta as palavras primeiras de Ravel a ela reveladas: “Uma noite, em um jantar na morada de Mme de Saint-Marceaux, cujo salão era ‘um bastão de intimidade artística’, segundo Colette, Ravel me disse à queima roupa: ‘estou no momento compondo um Concerto para você. Se importaria que eu o terminasse em pianíssimo e com trinados?’ Mas certamente, respondi-lhe, muito feliz de realizar o sonho de tantos virtuoses”.

Ravel, após compor o célebre Bolero (1928), passa longo tempo sem criar outras obras. Apesar de pensados em 1929, somente em 1931 nasceriam os dois Concertos para piano e orquestra, bem antagônicos, o Concerto em sol maior e o Concerto para a mão esquerda. Alguns traços comuns, contudo, são evidentes nos dois Concertos, entre os quais lembranças de sua estada nos Estados Unidos concernentes ao jazz e à vida mais agitada, se comparada à sua vivência em França. A um correspondente do Daily Telegraph, Ravel narra a “epopeia” de escrever os dois Concertos tão diferentes: “Foi uma experiência interessante conceber e realizar dois Concertos ao mesmo tempo. O primeiro, no qual participarei como intérprete (na realidade Marguerite Long foi a pianista), é um Concerto no sentido mais exato do termo, escrito no espírito dos Concertos de Mozart e Saint-Saëns. De fato, penso que a música de um Concerto pode ser alegre e brilhante, e que não é necessário que pretenda ter profundidade ou que vise a efeitos dramáticos. Diz-se de alguns grandes músicos clássicos que os seus Concertos são concebidos não para o piano, mas contra ele. De minha parte, considero este julgamento perfeitamente justificado. Inicialmente, tive a intenção de denominá-lo Divertimento. Então refleti que não era necessário, considerando que o título Concerto é suficientemente explícito no que diz respeito ao caráter da música que o compõe. Em certos pontos, o meu Concerto não deixa de apresentar algumas semelhanças com a minha Sonata para violino; traz alguns elementos emprestados do jazz, mas com moderação” (in Alfred Cortot, “La musique française de piano”, deuxième série, Paris, Presses Universitaires de France, 1948).

Mercê de problemas de saúde, Ravel tardou a terminar o Concerto em sol maior, declarando ao seu amigo Zogheb: “Resolvi não mais dormir um segundo sequer. Finda a obra, então repousarei neste mundo… ou em outro”. Ravel, pianista, gostaria de ser o primeiro intérprete, mas, devido às dificuldades técnico-pianísticas reais do Concerto em sol, convidou Marguerite Long para estreá-lo e ela se expressa: “compreenderão qual não foi a minha intensa emoção ao receber o telefonema de Ravel, aos 11 de novembro de 1931, a anunciar a sua vinda imediata à minha casa com o seu manuscrito do Concerto. Estava a me ajeitar quando Ravel chegou repentinamente com as preciosas folhas do Concerto. Confesso que fui diretamente à última página: o pianíssimo e os trinados foram transformados em fortíssimo e percutantes nonas! A obra é árdua, mas o movimento que me deu mais trabalho foi o segundo, aparentemente sem armadilhas”. Estudei com Mme Long o Concerto em sol maior. Disse-me ela que, graças à lenta evolução do segundo movimento e à sua métrica, a possibilidade de falha de memória do pianista ocorre com frequência.

A primeira apresentação mundial se deu em Paris, na Salle Pleyel, aos 14 de Janeiro de 1932. Nessa estreia, Ravel regeu a Pavane, o Boléro e acompanhou o Concerto. Marguerite Long afirma “que não estava tão orgulhosa pelo fato, infelizmente, da sua regência ter sido realizada com a partitura do piano, resultando em uma condução incerta”.

Mme Long escreve: “A Salle Pleyel estava completamente lotada. Tudo correu bem e o sucesso foi considerável, a ponto de termos de repetir o terceiro movimento. Tendo muitas vezes solado o Concerto em sol em França e no estrangeiro, sempre, sem exceção, tivemos de bisar o terceiro movimento”.

Clique para ouvir, de Maurice Ravel, o Concerto em sol maior para piano e orquestra sinfônica, na interpretação de Marguerite Long, sob a regência do compositor (1932):

https://www.youtube.com/watch?v=WSA_MR2Gw_s

Tem interesse o testemunho da pianista ao avaliar o Concerto em sol maior: “Obra-prima autêntica onde a fantasia, o humor, o pitoresco cravam uma das mais tocantes cantilenas que o coração humano jamais sussurrou. Talvez o seu maior encanto resida num conjunto de qualidades que fazem esta obra essencialmente nossa. Colocar as descobertas harmônicas, rítmicas e melódicas mais originais no quadro mais tradicional, despertar os múltiplos setores da nossa sensibilidade com um toque discreto e reservado, falar uma linguagem nova na sombra tutelar de Mozart e Bach, evocar e sugerir sem nunca impor, esconder sempre com pudor a sua própria personalidade e construir tudo com uma perfeição constante e surpreendente foi dar à música uma obra absolutamente francesa”.

Após a grande acolhida pública do Concerto em sol, Maurice Ravel e Marguerite Long partiram em viagem a vários países europeus e as apresentações foram inteiramente dedicadas às criações do compositor. Bélgica, Áustria, Romênia, Hungria, Checoslováquia, Polônia, Alemanha e Holanda aclamaram com o maior entusiasmo as interpretações.

Sob outra égide, no livro mencionado, Marguerite Long escreve sobre os esquecimentos de Ravel no que concerne ao cotidiano nessas viagens pela Europa. “Eu começava, então, a verdadeiramente tomar conhecimento da legendária distração de Ravel, cujo bom humor, a sua melhor característica, contrastava com as consequências às vezes catastróficas de suas imprudências. Juntamente com o cansaço das viagens de comboio, dos concertos, das recepções e das angústias que Ravel me causava frequentemente durante a regência das orquestras, esses incidentes me esgotaram e eu realmente achei que voltaria caquética dessa digressão”! São inúmeros os casos relembrados por Mme Long com boa dose de humor, como esquecer objetos em hotéis, confundir-se com cartas e bilhetes colocados nos bolsos, assim como tantos outros percalços ocasionados também pela distração.

No próximo blog focalizarei o Concerto para a mão esquerda, criação bem contrastante se comparada ao Concerto em sol maior.

After listening to a historic recording of Maurice Ravel’s Concerto in G major for piano and orchestra recorded in 1932, with Marguerite Long, the dedicatee of the work, as pianist and Ravel himself conducting the orchestra, I revisited the book “Au piano avec Maurice Ravel,” written by the legendary pianist.

Admiração pela bela carreira na aviação comercial internacional

Do homem, não me pergunto «qual é o valor das suas leis»,
mas sim «qual é o seu poder criativo»?
Antoine de Saint-Exupéry
(“Carnets”)

Recebi muitas mensagens que me sensibilizaram, pois entenderam que, no post anterior dedicado ao impecável comandante César Sfoggia Júnior, eu homenageava in adendo toda uma extensa classe de pilotos que desafiam as alturas com destemor e profissionalismo. Alguns jamais pensaram no piloto e em suas atribuições, mas apenas nas viagens. Aqueles que assim pensaram, felizmente, escreveram que abrirão as mentes para a missão do piloto e, ao que tudo indica, serão leitores dos livros preciosos de Saint-Exupéry. Oxalá isso ocorra.

Confesso que, sempre que atravessava o Atlântico, pensava nessa proteção inequívoca de profissionais responsáveis que escolheram a profissão, majoritariamente por vocação. Vinha-me a imagem do meu primeiro voo, quando, após recital de piano em Botucatu no segundo lustro dos anos 1950, a convite do Arcebispo Dom Henrique Golland Trindade (1897-1974), regressei a São Paulo num avião Paulistinha com apenas dois lugares, do piloto e do passageiro, e cujas portas eram de uma espécie de lona. Lentamente chegamos à cidade. Verdadeiro deslumbramento.

Eliane Ghigonetto Mendes, inúmeras vezes presente neste espaço, escreveu: “Fascinante todo esse relato do Comandante César Sfoggia. ‘Voei’ com vocês dois, ‘planando’ a cada momento…”. O professor titular da FFLECH-USP, Gildo Magalhães ponderou: “Realmente, o tema pode surpreender, mas não é insólito, para quem conhece o interesse do amigo pela experiência humana e talvez haja mais de um ponto em comum entre atravessar o céu e atravessar um concerto. Muito bom”.

Reuni alguns questionamentos dos leitores que prestigiam o blog semanal e os transmiti ao comandante César Sfoggia.

Q. “Nas importantes empresas aéreas internacionais, qual o papel do comandante em relação ao comportamento indevido de determinados passageiros?”. R. “A tripulação de comissários tem treinamento para esses casos. O comandante em hipótese alguma sairá da cabine de comando. Em situações extremas será feito pouso não programado para desembarque do passageiro pelas autoridades policiais. Existem empresas que exigem ressarcimento nesses casos”.

Q. “Qual a autoridade do comandante frente a toda a tripulação?” R. “Ele é o responsável com plenos poderes pela operação e segurança da aeronave e é também o representante da Empresa/Empregador. Todas as decisões finais estão sob seu cargo. Autoridade outorgada pelo código brasileiro de aeronáutica (Lei 7565/1986)”.

Q. “Qual a idade limite para a atividade de um comandante nesses voos internacionais? R. “O limite de idade do comandante para voos internacionais é de 65 anos”.

Q. “Num voo transoceânico, qual o período de descanso da tripulação para o retorno ao aeroporto inicial?”. R. “Está tudo relacionado na Lei 13.475/2017. Jornada de trabalho de até 15 horas, 16 horas de repouso, este começando após o corte dos motores mais 45 minutos. Jornada de mais 15 horas, idem para o início do repouso, ou seja, no caso, 24 horas. No retorno ao Brasil serão acrescidas mais duas horas por fuso horário cruzado”.

Q. “Tem o comandante desses longos trajetos a possibilidade de prolongados cochilos reparadores? R. “Varia de acordo com as políticas das Empresas, obedecendo as normas da agência de aviação do país da matrícula da aeronave. Uma Empresa do Oriente permite, quando em voo de cruzeiro, cochilo máximo de 30 minutos de duração. Há normas diferenciadas das agências reguladoras de cada país. No Brasil temos a Anac”.

Q. “Às vezes, acidentes aéreos com sobreviventes acontecem em locais inóspitos, como florestas densas, montanhas geladas e mesmo na água. Será que a tripulação, comandante incluso, recebe treinamento para sobreviver em tais condições enquanto espera por resgate? Em caso afirmativo, esse treinamento é prático ou apenas teórico? R. “As aeronaves dispõem de equipamentos de sobrevivência e a tripulação tem treinamento para pouso na água. Possuem as aeronaves kits de sobrevivência no mar. Há botes e coletes para todos a bordo. É dado treinamento para evacuação de emergência e fogo a bordo, assim como para emergências médicas”.

Q. “Como é feita a avaliação psicológica de um piloto? Existe uma reavaliação periódica?”. R. Sim, para cada grau da licença de piloto, a saber, piloto privado, piloto comercial e piloto de linha aérea, são feitas avaliações psicológicas. Quando do ingresso em companhias aéreas esses exames também são realizados. Há uma preocupação quanto à saúde mental dos tripulantes e, para isso, cada empresa tem seus processos de avaliação.

O comandante César Sfoggia complementa que “as Cias. Aéreas do mundo todo são obrigadas a seguir as normas das autoridades aeronáuticas do país de registro/matrícula da aeronave. Exemplificando: Europa – Agência EASA, Brasil – ANAC, China-CAAC, Inglaterra – CAA, Qatar – QCAA. O Brasil segue as normas da Agência da ONU para a aviação, a ICAO, sede em Montreal”.

Sob outra égide, os diálogos com o comandante César fluíram constantemente intermediados pela aura de Saint-Exupéry e seus extraordinários relatos. Bastou ter mencionado o nome do piloto-escritor para, de imediato, César confessar o pleno conhecimento de seus livros, fato que me levou a entender que a escolha do amigo pela aviação foi motivada pela vocação. Não lhe bastaram os difíceis cursos necessários, havia em sua mente essa centelha voltada ao passado da aeronáutica, suas histórias, seus relatos, sua literatura. As menções no blog anterior aos pilotos que marcaram época apenas comprovaram a destinação precisa que levou César Sfoggia Júnior à brilhante carreira internacional durante as 30.500 horas de voo. Sua trajetória não é apenas a do piloto que se tornaria comandante, mas de alguém que vive nas alturas, cultuando o maravilhamento que a aviação proporciona.

Quando mencionei a obra maior de Saint-Exupéry, “Citadelle”, César e eu trocamos ideias confluentes. Mencionaria uma frase que sintetiza aquilo que o livro contém, redigida por sua irmã, Simone de Saint-Exupéry (1898-1978), que tive o imenso privilégio de conhecer nas tantas tertúlias literomusicais no apartamento do seu primo diplomata, Baron André de Fonscolombe, há mais de sessenta anos, como expressei no post anterior. Responsável pela edição de “Citadelle”, Simone de Saint-Exupéry escreve sobre a obra “densa e profunda que aborda todos os problemas da destinação humana e do condicionamento do homem”.  Toda a maturação do piloto escritor, seu pensar humanista estão concentrados na sua criação maior, apesar “de não ser uma obra acabada. No pensamento do autor ela deveria ser abreviada e remanejada seguindo um plano rigoroso que, no estado atual, dificilmente se reconstitui. Saint-Exupéry frequentemente retomava os mesmos temas, seja para expressá-los com mais precisão, seja para esclarecê-los com uma daquelas imagens de que só ele tinha o segredo”, escreveu sua irmã. Acredito que o conteúdo de “Citadelle,” através dos inúmeros escritos que iriam compô-lo, teria origem mormente após a experiência marcante que o piloto viveu em seus voos solitários ou acompanhado por um copiloto ou mecânico. Nas conversas com o comandante César, que realizou incontáveis voos com aviões pequenos e desprovidos da tecnologia atual, mas igualmente com o poderoso Boeing B747-400F, depreende-se que o pensar do piloto também atinge outras dimensões, se assim o quiser. Saint-Exupéry conseguiu alcançar um nível transcendente e a sua herança resultou perene.

Ao finalizar o post atual, repensei a frase do professor Gildo Magalhães, mencionada acima: “talvez haja mais de um ponto em comum entre atravessar o céu e atravessar um concerto”. Sim, se há alguma possível relação, ela se situa naquilo que o filósofo e musicólogo Vladimir Jankélévitch (1903-1985) conceitua, o inefável, que leva, máxime para o intérprete, às esferas não tangíveis.

In the previous post, the airplane commander César Sfoggia Jr. shared some interesting details of his career in commercial aviation in Brazil and abroad. His report has sparked many questions from readers, which he answers in the current post.