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Luzes a possibilitar novos aprofundamentos

Um homem que levou a sério a sua liberdade.
Pedro Picoito
(28 de Abril de 2009)

Tenho para mim que apenas a compreensão do todo possibilita a mais fidedigna interpretação dos fatos. Como tinha razões sobradas o saudoso amigo e ilustre professor de Direito Internacional da USP, Guido Soares, a entender as fases acadêmicas através da metáfora. O postulante no mestrado penetra numa floresta e conhece as diferentes espécies de árvores; quando no doutorado, concentra-se em apenas uma árvore, dissecando-a da raiz à copa; na livre docência, sobrevoa a floresta conhecendo todos os pormenores e a interpreta.

O notável historiador medievalista João Gouveia Monteiro assim o faz ao “sobrevoar” o todo do período em que viveu o personagem talvez mais emblemático da História de Portugal, Nuno Álvares Pereira. Sem a atuação do Condestável, teria hoje Portugal as suas fronteiras?  Sobre o Guerreiro Comandante, os bens recebidos do rei D. João I após as vitórias nas batalhas fundamentais para a integridade de Portugal, a fortuna que fez dele o homem mais rico de Portugal, exceção ao rei D. João I, a doação paulatina de seu patrimônio e os anos finais austeros no Convento do Carmo, por ele fundado com parte de seus bens, pesquisas profundas foram e continuam a ser realizadas, sendo crucial o livro do professor de História Medieval da Universidade de Coimbra.

João Gouveia Monteiro, ao final de “Nuno Álvares Pereira, Guerreiro – Senhor Feudal e Santo”, após desfilar o personagem em suas etapas distintas, mencionando e interpretando incontável fonte documental que remonta à Idade Média e prossegue através dos séculos, posiciona-se em tópicos capitais e sobrevoa a floresta. Não o teria feito se anteriormente uma consistente bibliografia não apontasse para obras relevantes de sua lavra a compreender o período medieval.

Transcrevo essencialidades de sua visão abrangente do grande herói português inseridas ao final de seu livro sobre o Condestável. O historiador enumera cinco significantes argumentos e outras mais considerações relativas a Nuno Álvares Pereira junto ao Convento do Carmo, onde viveria seus últimos anos, e sua afeição pelos eremitas e grupos eremíticos.

Em primeiro lugar Gouveia Monteiro menciona as palavras “pobres da serra” contidas num documento do período. Escreve: “Parece-me indubitável que estes ‘pobres da serra’ são os anacoretas da serra de Ossa” [Sul de Portugal]. Prossegue o autor: “… a expressão ‘mandou por um pobre’ é isso que sugere; tendo em conta o grau de familiaridade do Condestável com as comunidades eremíticas alentejanas, pode até ser que não se tratasse apenas de pedir informação sobre o modelo de vida, de requerer aconselhamento, mas também de tentar chamar esse modelo para junto de si, na fase final da sua vida”.

Num segundo argumento, o historiador ratifica seu posicionamento dessa ligação do Condestável com eremitas da serra de Ossa, através da doação a eles destinada, de uma casa e um terreno ladeando o Convento do Carmo, realizada por um seu cunhado, quando Nuno Álvares já estava a morar no cenóbio.

Como terceiro posicionamento, Gouveia Monteiro considera que nos tempos das batalhas, ao ajudar “quatrocentos castelhanos que, desesperados com a falta de alimentos que havia em Castela, chegaram à comarca de Entre Tejo e Guadiana em busca de comida, foi justamente aos eremitas da serra de Ossa que recorreu para os identificar, organizar e materializar o seu apoio’’ e não àqueles mais abastados, o que evidenciaria uma nítida ligação do Condestável àquela altura com os mais pobres, mas generosos, que viviam em eremitérios na austeridade e castidade.

Numa quarta consideração, o ilustre medievalista faz uma tradução literal, diferente daquela apresentada por estudiosos, de frase de oração que “o infante D. Pedro compôs em memória de Nun’Álvares e que o rei D. Duarte enviou ao abade florentino D. Gomes, em apêndice à carta que lhe remeteu em 21 de julho de 1437, …: Norma principium, exemplum dominorum, speculum anachoretarum es, beate Nune”. Propõe o historiador: “Modelo de príncipes, exemplo de senhores, espelho de anacoretas és tu, bem-aventurado Nuno”, frase que decididamente evidencia a afinidade do herói com os eremitas, pois pesquisadores anteriores substituíram “anachoretarum” pelas palavras “contemplativos e religiosos”.

Numa quinta afirmação, Gouveia Monteiro demonstra a “relação que a família dos Pereiras tinha com o fenômeno eremítico do Sul de Portugal”. Os pais de Nuno Álvares foram generosos doadores de terras para os movimentos eremíticos na região do Alentejo.

O autor remonta a uma doença estranha que se abateu sobre Nuno Álvares durante o período das beligerâncias com o reino de Castela. Foi ele levado a um eremitério relevante na região de Setúbal e houve um encontro com uma delegação do entorno, que o visitou protocolarmente, narrativa constante na “Crônica do Condestabre”. Gouveia Monteiro deduz: “Creio bem que esta passagem da ‘Crônica do Condestabre’ traduz metaforicamente o contraste entre os dois mundos, entre duas vocações e formas de assumir a vida, um dilema que dilacerava Nun’Álvares naquela hora: o mundo vão, precário e limitado do cotidiano, da manobra política, do jogo de influências pessoais…; e o mundo muito mais puro e celestial dos eremitérios, terras da água e do mel, onde a intriga dava lugar à contemplação e a acumulação de favores e de riqueza cedia em toda a linha perante o exemplo salvador do despojamento. Julgo, sinceramente, que a história da doença de Nuno Álvares Pereira passa também por este dilema existencial do nosso biografado”.

Nas considerações finais do livro, Gouveia Monteiro tece argumentos relativos à construção do Convento do Carmo por Nuno Álvares ensejada e à vinda dos frades carmelitas do Convento de Nossa Senhora do Carmo de Moura, da região alentejana, após convite formal (1392), ideia possivelmente gestada pelo Condestável após as vitórias em campo de batalha décadas antes. Gouveia Monteiro comenta: “Nun’Álvares terá querido assinalar o seu sucesso militar com um aparatoso monumento em Lisboa, no alto de uma colina virada para o Castelo de São Jorge; a escala da obra era proporcional ao desejo do segundo homem mais poderoso do reino de glorificar o seu feito na própria cidade a quem D. João I devia a Coroa e que era já a capital indisputada do reino. Além disso, era uma forma de o Condestável, homem muito rico e titulado (era também mordomo-mor e tinha já recebido uma quantidade impressionante de mercês régias, sendo igualmente conde de Ourém e de Barcelos), começar a ‘espiritualizar a sua riqueza’”. Paulatinamente o Condestável desprende-se de todas as amarras do “ter” bens materiais. A vida no Convento do Carmo o faz um doador cônscio dos atos. O historiador comenta a seguir: “Fora o início de um despojamento carismático que o velho Condestável queria agora tornar absoluto: prescindir do nome de família (e que família!), abdicar dos cargos e dos títulos, reduzir-se à humilde e insignificante condição identitária de ‘Nuno’, o donato carmelita”. Prossegue o medievalista: “… consumava a sua fuga mundi, com tudo o que de redentor isso representava, em especial para um homem que havia sido tão poderoso quanto ele”.

Bem debilitado, Nuno Álvares Pereira teve morte serena. Gouveia Monteiro menciona descrição de frei José Pereira de Sant’Anna: “De acordo com a reconstituição carmelita, Nun’Álvares pediu para morrer vestido com o seu Santo Hábito e requereu uma mortalha e uma cova para o seu corpo, suplicando que lhe dessem uma sepultura rasa e sem distinção, onde pudesse ‘esconder-se sem diferença do comum dos mais homens’”. O autor nos últimos subcapítulos discorre sobre “A sepultura do donato”, “O culto popular e o livro dos milagres”, “Construir a memória do ‘Santo Conde’” e “A estrada da canonização”.

Quanto ao último, Gouveia Monteiro assinala: “Temos, portanto, que em data próxima do falecimento de Nun’Álvares, já a Coroa se referia a ele, abertamente, como ‘santo’”.  Ao longo dos séculos reis e autoridades eclesiásticas ensejaram a canonização do Condestável, desde 1437 através de D. Duarte. Em 1641, D . João IV também requereu o reconhecimento da beatificação de Nuno Álvares, assim como D. Pedro II em 1674, sem contar as tratativas da Ordem Carmelita ao longo do tempo.

Após a notificação de 221 milagres associados a Nuno Álvares Pereira desde o século XV, a canonização do Condestável “apenas se viria a aproximar do seu termo em 2008, em resultado das diligências do cardeal-patriarca D. José Policarpo e das Ordem do Carmo; em 3 de julho deste ano, o papa Bento XVI (seguindo o parecer emitido pela Congregação Ordinária dos Cardeais em 7 de Junho) autorizou a publicação de dois decretos, um reconhecendo as virtudes heroicas do candidato e outro atestando a cura milagrosa da senhora Guilhermina de Jesus, de Vila Franca de Xira (que recuperara a visão). Finalmente, em 21 de fevereiro de 2009, Bento XVI anunciou a canonização, que veio a realizar-se no dia 26 de abril do mesmo ano, em Roma. Foi um final luminoso para o filho de Álvaro Gonçalves Pereira e Iria Gonçalves” (Gouveia Monteiro). Portanto, 577 anos após a morte de Nuno Álvares Pereira, desde 2009 o nome Santo Condestável se tornou oficial, embora assim fosse lembrado desde seu desenlace.

Que a religiosidade de Nuno Álvares Pereira, hoje São Nuno de Santa Maria, fora transmitida por seus ascendentes e documentada durante a atividade do jovem guerreiro parece ser consensual. As preces intensas antes das batalhas, a visualização dantesca de tantos combatentes por ele comandados e de inimigos mortos ou feridos em combate, o acolhimento de habitantes de Castela fugindo dos embates, mas tratados com humanidade pelo futuro Condestável, teriam levado o segundo homem mais rico de Portugal a tudo legar, não apenas aos seus comandados, como aos familiares, aos eremitas, e a erigir templos fundamentais para o culto religioso em Portugal. O Guerreiro, distanciando-se das batalhas, esteve, contudo, na conquista de Ceuta em 1415, trinta anos após Aljubarrota! Viver na austeridade voltada ao culto religioso e aos mais pobres – distribuição de alimentos e atendimentos vários – foi a plena redenção de uma figura entendida pelos seus coevos como já santificada.

O notável medievalista João Gouveia Monteiro, ao se debruçar sobre Nuno Álvares Pereira, o Santo Condestável, lega à literatura sobre o tema um livro impecável sob todos os planos. Ter dividido os períodos de atuação da figura histórica, quiçá a mais representativa de Portugal, dimensionando-a, propicia ao leitor a compreensão inequívoca do todo. Recomendo vivamente a leitura de “Nuno Álvares Pereira – Guerreiro, Senhor Feudal, Santo – Os três rostos do Condestável” (Lisboa, Manuscrito, 2019).

At the end of his book on Nuno Álvares Pereira, the Holy Constable, the noted medievalist João Gouveia Monteiro puts forward his personal positions, enriching the third phase of the biographee’s life, which is focused on his religious retreat in the Convent of Carmo and his links with the eremitic movement in Portugal.

 

 

João Gouveia Monteiro e o aprofundamento fulcral

Por estes vos darei hum Nuno fero,
Que fez ao Rei, e ao Reino tal serviço;

Mas mais de Dom Nuno Alvares se arrea.
Ditosa Pátria que tal filho teve!

Luís Vaz de Camões
(Os Lusíadas, Cantos 1º, 12ª estrofe; 8º, 32º estrofe, respectivamente)

As biografias humanizam a História,
conferem-lhe um sentido maior do concreto,
interpelam-nos talvez mais como cidadãos do tempo e do mundo.

Aljubarrota, a mãe de todas as batalhas portuguesas.
João Gouveia Monteiro
(“Nuno Álvares Pereira – Guerreiro-Senhor Feudal-Santo”)

Uma das figuras mais importantes da História de Portugal, se não a mais fascinante, encontramo-la em Nuno Álvares Pereira (1360-1431). Ao longo dos séculos tem sido vivamente cultuado em Portugal.

Curiosamente, meu “contato” com o gigantesco personagem se deu nos meus 15 anos, no longínquo 1953. Meu Pai, natural do Minho, cultuava intensamente os valores portugueses e me presentou em dois anos consecutivos com dois livros que li com vivo interesse àquela altura e que conservo carinhosamente nas estantes, “Os Filhos de D. João I” e “A vida de Nun’Álvares Pereira – história do estabelecimento da dinastia de Avis”, do historiador Oliveira Martins (1845-1894). Juntavam-se a muitos outros que ganhei de meu Pai na juventude, voltados às biografias de compositores, literatos ou desbravadores de tantas áreas. Os de Oliveira Martins deixaram-me forte impressão, mormente porque o autor, sem as fontes multidirecionadas que são primordiais às pesquisas historiográficas na atualidade, compensava essa lacuna com uma escrita sedutora, romantizada, que ficou indelével na mente do jovem que eu fui. Não poucas vezes, em minhas dezenas de peregrinações musicais a Portugal, que remontam a 1959, pensei em saber mais sobre o magistral arquiteto da Batalha de Aljubarrota, que se deu em 1385.

Foi-me prazeroso receber das mãos do notável professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, João Gouveia Monteiro, onde ensina História da Idade Média, História Militar Europeia, História da Antiguidade Clássica, História das Religiões e Cultura Medieval, seu precioso livro “Nuno Álvares Pereira, Guerreiro-Senhor Feudal-Santo – Os três rostos do Condestável” (Lisboa, Manuscrito, 2019). Duas obras de Gouveia Monteiro foram resenhadas neste espaço (vide: “Crônicas de História, Cultura e Cidadania”, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011, 23/12/2011 e, juntamente com três outros professores medievalistas, “Guerra e Poder na Europa Medieval”, Coimbra, IUC, 2015. 11/11/2017).

A imersão do autor sobre Nuno Álvares Pereira fê-lo compartimentar a vida do Condestável em três nítidas fases, a do Guerreiro, do Senhor Feudal e do Santo. Essas fases são nítidas, plenamente vividas, a revelar unidade de caráter. Na essência essencial, Nuno Álvares Pereira, o Condestável, é um só a viver etapas distintas na existência. Gouveia Monteiro apresenta o herói, dissecando-o, caminhando passo a passo com o Condestável e, à medida em que constrói a narrativa, faz desfilar incontáveis fontes fidedignas que remontam da Idade Média às últimas pesquisas sobre o período em que Nuno Álvares Pereira viveu. O livro poderia ter sido demasiadamente exegético não fosse a presença constante do autor para que dúvidas não pairassem. Nesse sentido, Gouveia Monteiro se faz guia, reportando-se às passagens lidas bem anteriormente. Essa atitude constante corrobora o entendimento, pois desfilam no livro em apreço centenas de personagens, mormente os que viveram entre os séculos XIV e XV. O leitor poderia perder-se, não fosse a ação didática do ilustre acadêmico. Fá-lo sempre com precisão, certo de que se assim não agisse impossibilitaria a retenção por parte do leitor. Essa presença do biógrafo possibilita àquele, inclusive, cotejar documentação e interpretar pesquisas de um período pleno de acontecimentos cruciais da História de Portugal.

Dividido em quatro capítulos distintos - “Como contar esta História?”, “O General Invencível e o seu Exército”, “O Senhor Feudal e o seu Patrimônio” e “Um Eremita da ‘Pobre Vida’ no Mosteiro” -, a obra de Gouveia Monteiro na realidade compreende “três” personagens em atuações harmoniosas, diferenciadas sim, mas prenhes de unicidade.

Em “Como contar essa História”, Gouveia Monteiro, após minuciosa pesquisa, perscruta cronistas dos tempos de Nuno Álvares Pereira e, através dessa documentação, possibilita ao leitor o descortino do período. Interessa-lhe não apenas o seu herói, mas igualmente o entorno, e esse caminho pluralizado revela determinados eventos que poderiam estar à margem, mas que têm importância fulcral. Ficamos sabendo essencialidades dos espaços geográficos e humanos em que o Santo Condestável atuou através dessa literatura de antanho. Gouveia Monteiro se posiciona logo de início e entende a dificuldade de escrever sobre um personagem histórico que viveu há 600 anos. Das remotas narrativas, três, entre outras, servem de “amparo” a todos os recentes trabalhos sobre o herói português: A “Crónica do Condestabre”, redigida pouco após a morte de Nuno Álvares Pereira (desconhece-se o autor), as importantíssimas biografias redigidas por Fernão Lopes (século XV) e a bem mais recente “Chronica dos Carmelitas” do Frei José Pereira de Sant’Anna (anterior ao terremoto de 1755). A partir dessas fontes primárias, o medievalista se debruçaria sobre mais de 5.000 páginas em torno do tema.

A respeito de Fernão Lopes, Gouveia Monteiro pormenoriza segmentos de suas crônicas, fornecendo embasamento às suas próprias deduções.

Em “O General Invencível e o seu Exército” tem-se o desvelamento de um dos mais importantes comandantes da história de todas as guerras do planeta. Impressiona a trajetória vitoriosa de Nuno Álvares Pereira frente aos seus exércitos. Tendo a guarida do rei D. João I, o Mestre de Avis (1357-1433), o Condestável elabora estratégias com tropas menos numerosas frente aos embates com o Reino de Castela. Impressiona o fato de que as três principais batalhas em que esteve a comandar foram travadas sendo Nuno Álvares ainda jovem. Em Atoleiros, com seus homens apeados, vence castelhanos montados (Abril de 1384). Em Agosto do mesmo ano, arquitetando tática bélica inusitada, vence a célebre batalha de Aljubarrota. No ano seguinte, em terras de Castela, sai vencedor da não menos famosa batalha de Valverde. Se essas três batalhas basilares ficaram no panteão das grandes contendas, em inúmeras outras “escaramuças” ou enfrentamentos menores, alguns desses reintegrando espaços provisoriamente ocupados pelos castelhanos, Nuno Álvares saiu-se vencedor. Bourbon e Menezes pergunta: “Que teria sido D. João, Mestre de Avis, sem o alento animador deste Galaaz?” (1933). O rei D. João I, reconhecendo todos os méritos de Nuno Álvares Pereira, nomeia-o Condestável.  Entre outras honrarias, vemo-lo fronteiro do Alentejo, mordomo-mor do rei D. João I e triplo conde. Paulatinamente D. João o presenteia com terras e propriedades que “assinalam a consagração de D. Nuno Álvares Pereira como o homem mais rico e poderoso do reino, a seguir ao rei” (Gouveia Monteiro).

No terceiro capítulo, “Senhor Feudal”, a preceder as doações realizadas pelo Condestável, o autor salienta as qualidades de seu pai, Álvaro Gonçalves Pereira, já expressas no capítulo anterior em citação constante da “Crônica do Condestabre”: nobre de condição e bom cavaleiro e mui entendido, assim como de ter privado com três reis portugueses: D. Afonso IV, D. Pedro e D. Fernando. Gouveia Monteiro escreve: “Álvaro Gonçalves Pereira é uma figura relevantíssima na vida de Nun’Álvares”. Ao pormenorizar o pai, que inclusive teve meritório desempenho como guerreiro na batalha do Salado e outras mais contendas, ficaria latente a influência de Álvaro Gonçalves Pereira nas escolhas do futuro Condestável desde a juventude.  Tendo fundamental importância junto à Ordem do Hospital, o progenitor de Nuno Álvares teve “…uma capacidade empreendedora e uma energia assombrosa” d’après Gouveia Monteiro, sendo o mandante da construção do Mosteiro de Flor da Rosa (Crato), local onde está sepultado. Tanto Álvaro Gonçalves Pereira como Iria Gonçalves, mãe de Nuno Álvares, esta posteriormente, foram doadores de terras.

Ainda em tempos de combate o Condestável já distribuía entre aqueles que o ajudaram nas batalhas algumas de suas propriedades, mais o fez ao longo de sua vida como Senhor Feudal e despojadamente quando entrou para a Ordem do Carmo. Seguiria, em escala bem mais ampla, as atitudes dos seus progenitores. É notável a presença do homem de fé intensa que desde os tempos como guerreiro, antes das batalhas, permanecia durante bom tempo a rezar. “Estará Fernão Lopes [cronista citado acima] mais próximo da verdade do que até aqui pensávamos, quando comenta o estranho episódio do Condestável, entre penedos, no momento mais apertado de Valverde, passagem em que explica que o Condestável se apartou do resto do seu exército e dos seus mortais inimigos, ‘não como guiador da sua hoste, mas como simples eremitão, fora de todo o negócio’”? (Gouveia Monteiro). Prossegue o autor quanto ao Convento do Carmo: “… legado material mais importante da existência do Santo Condestável: o Convento do Carmo, sem dúvida alguma a obra da sua vida e uma parte importante do seu patrimônio”. Gouveia Monteiro assinala ainda que, apesar das dúvidas concernentes à decisão de edificar o Convento, “a tradição relaciona a decisão com os votos que terá proferido por ocasião da batalha de Aljubarrota ou da batalha de Valverde”.  Entende o historiador que há um mínimo intervalo cronológico entre a construção e a desconstrução patrimonial de Nuno Álvares Pereira, pois ainda em tempos de batalhas e escaramuças o Condestável já tinha o hábito de doar.

Na abertura do quarto capítulo, “Um eremita da ‘pobre vida’ no Mosteiro”, Gouveia Monteiro escreve: “Depois de recordada a longa carreira militar de Nuno Álvares Pereira, resta-me considerar o seu ‘terceiro rosto’: o do homo religiosus, que, aos sessenta e dois anos, decide ir viver para o convento que tinha mandado construir em Lisboa, onde entrará em vida religiosa um ano mais tarde e onde virá a falecer, em 1431”. Será o tema do próximo post. Explico: ao final do livro, João Gouveia Monteiro se posiciona, enumerando cinco pontos relevantes em considerações pessoais de grande interesse. Para tanto, servir-me-ei do seu próprio texto, conciso e fundamental. Compreende-se melhor a intensa religiosidade de Nuno Álvares e, entre outros fatores devocionais, tem importãncia os eremitas e as comunidades eremíticas nos anos derradeiros do Condestável.

An essential contribution to the unveiling of Nuno Álvares Pereira, the Constable (1360-1431), has been made by the remarkable Professor of Medieval History at the University of Coimbra, João Gouveia Monteiro. Consisting of three parts – the Warrior, the Feudal Lord and the Saint -  the researcher’s book, based on reliable  sources basically  dating back to the 14th century, appears to be of absolute importance not only to the  Portuguese culture, as it transcends national borders.

“Bóris Pasternak e Alexandre Scriabine”

Nos últimos anos de vida, o elã em direção ao futuro,
o sonho desse devir atingiram uma força e uma acuidade particular.
Tornou-se impaciente e a espera começou a pesar.
A impossibilidade de traduzir, fora da música, o indizível o irritava.
Pôs-se a trabalhar com certa angústia,
como se algo o provocasse ou
como se estivesses a pressentir o tempo escoar:
‘Não mais as palavras, é tempo de se colocar à obra,
necessário se faz agir mais rapidamente, muito tempo foi perdido’.
Bóris de Schloezer (1881-1969)
(“Alexandre Scriabine”. 1975)

Neste terceiro post dedicado a Alexander Scriabine no ano de seu sesquicentenário insiro meu texto sobre o instigante depoimento do escritor Bóris Pasternak sobre Scriabine, publicado na “Nanico – homeopatia cultural” nº 13, Junho de 1996, mercê da anuência de meu dileto amigo, o sábio editor Cláudio Giordano.

Bóris Pasternak (1890-1960) lega-nos apreciações de relevante importância sobre o compositor russo, pois o conheceu ainda adolescente (1903). Seu pai, o pintor Leonid Pasternak, era amigo de Scriabine.

No texto que segue há várias considerações que fazem parte de minhas pesquisas posteriores a 1972 sobre Scriabine (centenário do compositor), publicadas no Brasil, em França e na Bélgica. Impossível algumas dessas reflexões se ausentarem nos vários posts sobre Scriabine publicados neste espaço desde 2007. Acúmulos…

“Entre os textos autobiográficos de Bóris Pasternak nos quais Scriabine está presente em sua lembrança, o ora publicado é testemunho ratificado da admiração, não desprovida de momentos frustrantes, do autor de ‘Doutor Jivago’ para com o criador de ‘Vers la Flamme’. A imensa importância dos escritos de Pasternak está em dimensionar posturas expressas pelos estudiosos do compositor, das primeiras décadas à atualidade.

Conhecem-se em 1903, Bóris nos seus 12 anos, Scriabine, músico já renomado, aos 31. O jovem evoca características de seu coetâneo ilustre encontráveis nos muitos estudos sobre o autor, entre os quais o de  Bóris de Schloezer, que conviveu com Scriabine, pois seu cunhado. Sob outro aspecto, a substancial iconografia scriabiniana evidencia um homem elegante, voltado ao dandismo, frágil, quase valetudinário.

Pasternak, no texto em questão, observa a pregação de Scriabine quanto ao ‘homem superior e amoral de Nietzsche’. Nas fronteiras do século, Scriabine lê com inusitado interesse, paixão mesmo, segundo sua filha Marina, ‘Assim Falava Zaratustra’, pensando inclusive numa ópera, jamais realizada, cujos fragmentos do libreto ficaram registrados em um carnet do compositor.

Sabe-se da influência exercida sobre Scriabine das teorias de Helena Blavatsky, cuja obra ‘A Doutrina Secreta’ marcaria o autor do ‘Poema do Êxtase’ em seu caminho em direção a uma teoria teosófica.

Pareceria correto admitir-se que a trajetória empreendida por Scriabine, resultando os vários estágios do escrever música, só poderia ser compreendida entendendo-se a amálgama compositor-pensador. Pasternak relata a partida de Scriabine rumo à Suíça, onde permaneceria alguns anos. É de 1904 um texto do compositor, escrito em um café perto de Genebra: ‘Tudo é minha criação. Eu não sou nada. Eu sou unicamente o que crio. Tudo que existe, existe apenas em minha consciência’.

Na medida em que, por processos inusitados, Scriabine caminha, o distanciamento se processa em relação às técnicas composicionais da juventude, sendo praticamente impossível entender-se como sendo do mesmo compositor Prelúdios e Mazurkas dos primeiros anos e os Poemas, Sonatas e Estudos escritos nas fronteiras da morte. Sob outra égide, o pensador em aceleração contínua e em plena vibratilidade delirante estabelece um elo com o Criador, em sendo ele, Scriabine, o Criador: ‘eu vos exalto à vida através do meu carinho e do charme misterioso de minhas promessas (…) eu sou o centro do universo e o universo está perto do centro’ (‘Cahiers inédits’ 1904-5). Curiosamente, os elos que fazem entender serem do mesmo compositor obras de períodos díspares são os do idiomático pianístico ou aqueles constituídos pelos motivos neurótico-obsessivos, separados entre si pelos silêncios (pausas), com o decorrer dos anos cada vez mais angustiantes.

Se as reminiscências de Bóris Pasternak afloram, deixando transparecer evocações precisas, objetiva e subjetivamente, a respeito de um de seus ídolos, alguns aspectos desse passado distante podem remeter ao levantamento de questões e à formulação de hipóteses: que razões, conscientes ou não, teriam levado Pasternak a abandonar a música? O conservadorismo que levou Pasternak a criticar – apesar da diferença etária, frise-se – os ‘novos meios de expressão’ de Scriabine e de outros autores não refletiria o pensamento sacralizado da maioria da sociedade a que pertencia e que consumia a cultura plena de conteúdos ocidentais ligados à tradição? O ressentimento quanto a Alexandre Scriabine não terá origem na inatingibilidade, por parte de Pasternak, ao talento pleno do autor das Sonatas ‘Missa Negra’ e ‘Missa Branca’?

Seria possível visualizar Bóris Pasternak ouvindo Scriabine a executar ao piano fragmentos reduzidos da Terceira Sinfonia ou ‘Divino Poema‘ op. 43 nas dachas perto de Moscou. Imediatamente antes, compusera os oito Estudos op. 42, plenos da mais ampla virtuosidade.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, os Estudos op 42 nº 1 e  nº 5 (Affanato) na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=Vz13JKEZKRI

https://www.youtube.com/watch?v=Z1UvhEy0N0w

Saliente-se ter sido Scriabine pianista de méritos a executar, preferencialmente na Rússia e na Europa, composições suas. Permaneceriam na mente de Bóris Pasternak a qualidade pianística singular e a criatividade fulgurante de Scriabine. O ‘eu tocava pessimamente e lia música como criança aprendendo a soletrar’ e a certeza de que o criar música – entenda-se compô-la mostrava-se em discrepância com o fazer música – entenda-se executá-la – poderia ter sido diferentemente absorvido por Pasternak se o modelo sonoro scriabiniano registrado na adolescência, bidimensionado criação-práxis, não tivesse sido tão mágico. O abandonar a música mereceria ser repensado como fruto da impossibilidade do nivelamento.

Pasternak ouvia a música russa e a ocidental que se tornaram familiares. O seu ouvido aceitaria essencialmente mensagens do código romântico pleno. Scriabine, na sua trajetória místico-criativa, que o leva a uma escrita ousada, distancia-se dessa escuta sacralizada por Pasternak. Se este entende a ‘fase intermediária’ das terceira e quinta Sonatas, paradoxalmente capta conteúdos de obras bem anteriores e plenas da mais intensa exacerbação emotiva – como os Estudos op. 8 e os Prelúdios op. 11 – como totalmente contemporâneos’, quando de fato já não o eram. A criatividade de Scriabine, fruto do amálgama ascensão em direção ao Cosmos-Música, fá-lo atingir níveis do mais preciso vanguardismo nos anos que antecederam a sua morte. O próprio Scriabine dos últimos Poemas e Sonatas disso tinha consciência e, ao tocar em público em sua consagrada carreira de pianista, dava à plateia a oportunidade de ouvir preferencialmente suas criações anteriores, romanticamente comprometidas, portanto. Bóris Pasternak seria assim o exemplo desse ouvinte, pronto a captar mensagens da mais intensa comunicação.

O ‘lado negativo da influência’ de Scriabine, que levaria talvez ao ressentimento, seria a somatória da inacessibilidade ao talento excelso musical e a certeza de que um carisma etéreo, do qual Scriabine era possuidor na sua vontade de expor ideias místico-filosóficas, impusera sentimentos de difícil resolução para o escritor. A respeito da ‘certeza’ conceitual característica de Scriabine  ‘apenas ele poderia permitir-se o luxo de seu próprio egocentrismo, que suas teorias serviam apenas para ele próprio’, ou ainda o lado ‘miraculoso e premeditado, nada planejado, deliberado, desejado’, conteúdos do ‘negativo’ que ficou como influência do compositor ; Pasternak evidenciaria de um lado o poder carismático de Scriabine, de outro o sentimento frustrante da distância do pensar entre os dois, mercê do ‘egocentrismo’ do autor do ‘Poema Satânico’.

Alexandre Scriabine permanece, talvez, como o mais criativo compositor russo do século XX, sem ligações definidas com ascendentes criadores da Rússia, tampouco deixando imitadores ou discípulos. Morre em 1915 e os pósteros da Revolução de 1917 negligenciam-no nos primeiros anos, pelo fato de ter sido Scriabine um compositor com olhar aristocrático. Contudo, no momento em que o Ocidente se fascina por Scriabine, através, sobremaneira, das ações pianísticas fulgurantes de Vladimir Horowitz e Vladimir Sofronitsky, este na Rússia, tornou-se útil ao regime soviético divulgá-lo e, diga-se, fizeram-no na excelência até os estertores do Sistema.

Bóris Pasternak morreu em 1960. No velório, uma última manifestação sonoro-fascinante sobre seu corpo imóvel. Sviatoslav Richter, um dos mais completos pianistas russos, tocou durante o dia e parte da noite obras de Scriabine num piano de armário colocado bem próximo ao esquife”.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, “Feuillet d’album”, op. 45 nº 1, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=ug7MD8jWo4M

In this third post I comment on the magnificent account given by Boris Pasternak about Scriabine published in the two previous posts, raising hypotheses about the effective influence of Scriabine in the future steps of the author of Dr. Zhivago.