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Após apresentação em Coimbra

O recital na Biblioteca Joanina transcorreu a contento. Creio que é um locais mais emblemáticos para uma récita. Mística e mistério envolvem o espaço da Joanina, uma das mais belas bibliotecas do planeta. Um novo piano Yamaha enriquece as sonoridades que dele emanam. Soube que não mais havia lugares para o meu nono recital na Joanina. O evento foi totalmente dedicado ao meu amigo- irmão, o ilustre professor da Universidade de Coimbra, José Maria Pedrosa Cardoso, falecido no dia 8 de Dezembro último.

O Professor João Gouveia Monteiro, Diretor das Bibliotecas da Universidade, proferiu relevante apresentação. Os Ilustres Professores da Universidade de Coimbra, André Pereira, Diretor da Imprensa da Universidade; Delfim Leão, Vice-Reitor da Cultura e Ciência Aberta e outros nomes relevantes da renomada Instituição fizeram-se presentes.

Iniciei o recital com a excelsa composição do notável Eurico Carrapatoso in memoriam do homenageado. Eurico compareceu, tributo a mais ao musicólogo que nos deixou. Obras de Carlos Seixas (1704-1742), Bach-Liszt (1685-1750 – 1811-1886), Gilberto Mendes (1922-2016) e, a finalizar, 10 Poemas de Alexandre Scriabine (1872-1915).

As dificuldades ferroviárias, mercê de paralisações e diversos feriados neste período têm dificultado o cotidiano em Portugal. António Sousa, destacado musicólogo e regente coral de Tomar foi nos buscar em Coimbra para a palestra no dia 10 e recital no dia 11. O grande compositor Fernando Lopes-Graça (1906-1994) é o tema da minha comunicação que será realizada na Casa Memória que leva seu nome e local em que o compositor nasceu. Haverá debates em torno do tema. No recital do dia 11 tocarei inicialmente a peça de Eurico Carrapatoso e, a seguir, Viagens na Minha Terra de Lopes-Graça, assim como obras de outros autores.

Devido a problemas técnicos e de tempo, o blog da semana fica restrito e sem imagens. Somente no blog do dia 25 as fotos que estão sendo tiradas pela minha neta Valentina ilustrarão o texto.

 

Recitais e palestras em Portugal

Com a verdade da minha vida
me posso condecorar ou me condenar;
sinal de que a vivo bem vivo.
Agostinho da Silva
(“Espólio”)

Os convites existiam desde Janeiro de 2021 para apresentações em Portugal e Bélgica. A pandemia, o constante fechamento de fronteiras e a insegurança frente ao malfadado vírus impossibilitaram viagens, ainda mais para cidadãos da terceira idade. Finalmente as apresentações em Portugal estão confirmadas. Nesta viagem terei a companhia de uma das minhas netas, Valentina, formada em gastronomia e a finalizar o curso de sommelier.

Em Coimbra, dos dez recitais que apresentei, oito foram na magnífica Biblioteca Joanina, datada do século XVIII e localizada no Pátio das Escolas da Universidade. Em estilo barroco, a Joanina é uma das mais belas Bibliotecas do planeta. Apresentei-me pela primeira vez em 2004, por ocasião dos festejos do tricentenário de nascimento do notável compositor conimbricense Carlos Seixas (1704-1742), em um recital monolítico inteiramente com Sonatas de Seixas. Ao longo dos anos duas outras apresentações se deram em teatros da cidade. O convite para o recital foi feito no início de 2021, pelo Diretor das Bibliotecas da Universidade de Coimbra, o ilustre medievalista, Professor Doutor João Gouveia Monteiro.

Empolga-me esta viagem em especial. Leva-me à reflexão sobre o tempo da existência. É ele determinante na preparação para o epílogo relativo à apresentação pública que se dará no próximo ano na Bélgica? É-o, na medida em que devemos nos familiarizar com a verdade absoluta. É-o, na revisão que podemos realizar da vida. É-o, na certeza de que a vida é uma dádiva. Nas palavras de Guerra Junqueiro: “Sim, o crítico dos críticos é só ele – o tempo. Infalível e insubornável”. Esta travessia estará sob a égide do tributo. Para os recitais e palestras, escrevi aos organizadores inserirem nos programas “Recital in memoriam ao amigo-irmão José Maria Pedrosa Cardoso”. Solicitei ao ilustre compositor português natural de Trás-os-Montes, Eurico Carrapatoso, grande amigo do homenageado e meu também, uma peça como introito aos recitais. Inspiradíssimo, escreveu uma peça que atinge o âmago da interioridade e dedicada in memoriam ao notável musicólogo. Emana da bela criação polifônica o espírito voltado à meditação. Transcorre em baixíssima sonoridade, para atingir a exaltação compassos antes de um instigante intervalo de quinta no grave (fá-dó naturais em pppp) com a frase em francês “Cet accord doit avoir la valeur d’une pierre taillée”, finalizando com arpejo em Ré Maior na mesma intensidade. Curiosamente o recital se dará no dia oito de Junho, exatos seis meses da morte de nosso pranteado José Maria Pedrosa Cardoso.

No recital em Coimbra haverá obras de Carrapatoso (1962- ), Carlos Seixas (1704-1742), Bach-Liszt (1685-1750 – 1811-1886) Henrique Oswald (1852-1931), Gilberto Mendes (1922-2016, centenário) e Alexandre Scriabine (1872-1915), pois dele tocarei 10 Poemas neste ano em que se comemora o sesquicentenário de nascimento.

No dia 11, em Tomar, abrirei o recital com a criação de Carrapatoso e a seguir interpretarei a extraordinária coletânea de Fernando Lopes-Graça 1906-1994), “Viagens na Minha Terra”, “dezanove peças para piano sobre melodias tradicionais portuguesas”, como o próprio compositor assinala no subtítulo. Um dia antes, darei palestra na Casa Memória Lopes-Graça, a ter como tema o meu envolvimento com a obra deste nome maior da composição em Portugal. O convite veio do Professor, Musicólogo e Diretor Artístico do coro Canto Firme de Tomar, António Sousa. Atentou para duas efemérides em especial, os 40 anos da minha primeira apresentação em Tomar e… o meu aniversário (84).  António Sousa é um dos mais respeitados estudiosos da vida e da obra de Fernando Lopes-Graça.

Clique para ouvir, de Fernando Lopes-Graça, “Viagens na Minha Terra”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=n0PwLys54GU

No dia 14, a palestra será no Centro Ward de Lisboa, dirigido pela notável gregorianista Professora Idalete Giga. Abordarei a temática referente à escolha do repertório português que gravei em Portugal e principalmente na Bélgica. Foram sete CDs.

Guimarães e Braga perfazem o tour pelas terras lusíadas.

Os próximos dois posts serão menores, motivado pelos deslocamentos. Possivelmente não haverá imagens que, no regresso, incluirei como conclusão do tour em Portugal. Valentina se encarregará das fotos e, possivelmente, de alguma gravação ao vivo.

I will do a short tour in Portugal in June, after two and a half years without crossing the Atlantic. My granddaughter Valentina will accompany me. In this post I give a brief description of the itinerary and of the repertoire to be presented.

Willy Corrêa de Oliveira e as “canções que formam o tempo da vida”

Bom tempo mesmo aquele que imagino ter sido.
Agostinho da Silva
(“Espólio”)

No vasto repertório para piano, sempre houve espaço para um compartimento sensível, pouco frequentado pelo intérprete que desenvolve carreira. Essas criações são intimistas e acentuadamente a civilização do espetáculo prefere ouvir obras de maior impacto, a revelar as qualidades virtuosísticas do intérprete. Se as Cenas infantis de Schumann ou Children’s Corner de Debussy e outras mais são apresentadas, são exceções. Ao longo de meus 25 CDs gravados no Exterior, ficaram registradas as Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste e Zara de Francisco de Lacerda, La Boîte à Joujoux de Debussy e Música de Piano para as crianças de Fernando Lopes-Graça. Todas elas demandam a abordagem através de envolvimento singular. Se os Quadros de uma Exposição de Moussorgsky pertencem ao “grande” repertório, nem por isso esse princípio basilar lúdico deixa de estar presente em cada quadro. Imbuir-se do espírito. Estou a me lembrar de que, para a gravação da extraordinária criação de Moussorgsy, já estabelecera minha interpretação. A gravação se daria em noite invernal na Capela Saint Hilarius, em Mullem (2003). Contudo, na manhã a anteceder o registro fui respirar em praça na bela cidade de Gent. Sentado, presenciei crianças brincando. Corriam, paravam, mudavam o roteiro, diminuíam as passadas ou saíam em desabalada carreira. Naquele instante, veio-me a ideia de mudar a interpretação de Tuilleries, que estabelece no subtítulo essa algazarra infantil. À noite, dei inflexões pertinentes, comportando rubatos que representam essa flexibilização do andamento, pois são crianças a brincar e não militares em marcha.

Recife, infância: espelhos… insere-se nesse vasto repertório lúdico. Willy Corrêa de Oliveira apreende o âmago da interioridade de um miúdo através da revisitação à sua infância em Recife: “Me decidi por repertoriar as músicas que aprendi na infância: as primeiras que a gente canta; cantarola sem saber por quê. Aquelas canções que formam o tempo da vida, de um realismo assustador: ninguém jamais pediu para apreendê-las. Elas, sim, se estabelecem em nós (e desafiam críticas e indagações futuras) e preparam-nos, de algum modo, para recebermos todas as músicas que virão depois. As que a gente buscou. As que escolhemos para reter”. Indelevelmente retidas, aquelas canções podem ser decisivas. Willy confessa que as melodias não têm forçosamente geografia precisa.

Antolha-se-me que a incursão musical nesse universo da infância pode ter várias vertentes. Willy escolheu a mais sincera. Auscultou sons que não se perderam tantas décadas passadas. Melodias populares, do folclore, partilhadas por tantas outras crianças, mas que ficaram hibernadas na mente de Willy. Todo o acervo advindo do aprofundamento concentrou-se na síntese da síntese da composição. Evita propositadamente vestígios de virtuosismo e extensão. Desculpa-se “pela brevidade de algumas peças. Não há mesmo quase tempo de ouvi-las, reconheço. Mas eu não queria, de maneira alguma, ‘trabalhá-las’ em demasia: eram momentos fundamentais suficientes”.

Reconhece Willy que vasculhar o longínquo passado não é realizado sem dificuldades. Luiz Guimarães Júnior ((1844-1898), em Visita à Casa Paterna, presencialmente poetisa: “Resistir quem há-de? / Uma ilusão gemia em cada canto, / Chorava em cada canto uma saudade”. A revisita mental aos sons ouvidos nos primeiros anos merece uma abordagem de resgate de sensações antagônicas, quiçá. Moussorgsky relata na maturidade que se lembrava das histórias russas contadas pela babá, que por vezes o impediam de dormir. Willy confessa “… que o trabalhar com estas canções foi difícil. Foi como enfrentar, sozinho, assombrações no sótão. Mas também o alívio de ter podido dizer a todas, uma por uma, que não me amedrontavam mais. Tudo se passou como se fosse um encontro do homem maduro com o menininho que era ele mesmo num espaço-tempo (em Recife). Um encontro intenso que o espelho de Tarkowski havia propiciado, uma reconciliação de tal modo bem-aventurada entre o homem maduro e o menininho (que era ele mesmo, em Recife) que não havia mais irritação, nem incômodo pelas suas criancices. As peças foram, sim, escritas com a tinta da melancolia, ‘a melancolia das coisas eternas’… mas não com a saudade (que é por ‘coisas findas’)”.

Debruçar-se sobre Recife… foi para mim um repensar a minha própria infância, essa cercada não pelas canções dos folguedos, mas por aquelas registradas em partituras “eruditas”. Carinhosamente estudei o caderno do Willy, buscando penetrar nesse mundo mágico, único, de uma outra infância. Sentir, a partir do toque dos dedos no teclado, a singeleza que transparece na magia que Willy imprime a essas canções de cariz popular, calou-me fundo. O leitor-ouvinte saberá reconhecer algumas melodias tão sensivelmente trabalhadas na essência essencial da simplicidade.

Apresentei Recife, Infância: Espelhos… em audição no Conservatório do Brooklin, dirigido pelo saudoso Sígrido Levental, em 1990, num recital inteiramente dedicado às composições para piano de Willy Corrêa de Oliveira. Emoção nunca olvidada.

Meu dileto amigo Elson Otake tem, há mais de uma década, introduzido minhas gravações no Youtube. A coletânea poderá ser seguida através da partitura. Sugeriu a colocação do texto introdutório integral de Willy para Recife… Minha querida amiga Jenny Aisenberg cuidou da versão para o inglês, a fim de facilitar outras leituras. Guardou as características intimistas propostas pelo compositor.

Clique para ouvir, de Willy Corrêa de Oliveira, Recife, Infância: Espelhos, na interpretação de José Eduardo Martins:

https://www.youtube.com/watch?v=5KlT7_VPp88

“Recife, Infância: Espelhos…” is a magical work. Willy Corrêa de Oliveira travels to the past and rescues popular songs retained in his memory. It is a simple, unassuming work, admirable in its conception. A collection that will remain in the musical literature intended for the ludic universe.