A niponização de ilustre figura literária portuguesa

O Dai-Nippon é a explicação interpretativa
do que há de mais específico e diferencial na vida japonesa,
feita com um critério japonês,
que o admirável escritor não teve de compor laboriosamente,
por via didática,
mas que brotou espontâneo da sua simpatia amorosa
e do seu desapego do ocidentalismo.
Fidelino de Figueiredo

Em edição brasileira, publicado durante as comemorações dos 450 anos da chegada dos portugueses ao Japão (1543-1993), Dai-Nippon, de Wenceslau de Moraes (Rio de Janeiro, Nórdica), teve justa homenagem da comunidade portuguesa, com o apoio cultural da Academia Lusíada de Ciência, Letras e Artes (da qual fui integrante) e da Aliança Cultural Brasil-Japão. Àquela altura, ofereci recital de piano na Casa de Portugal, privilegiando obras de compositores dos três países como um dos eventos da Exposição Wenceslau de Moraes, realizada entre Novembro e Dezembro de 1993 naquela tradicional Casa.

A leitura de “Dai-Nippon” fascinou-me àquela altura, inclusive pela apresentação, o ensaio magnífico de Fidelino de Figueiredo (1888-1967), notável homem público, professor, historiador e crítico literário português. Sob o título “O homem que vendeu a sua alma”, o ensaio foi publicado em 1925 no volume “Torre de Babel”.

Recentemente, uma amiga falou-me de Wenceslau de Moraes e mostrou interesse em conhecr “Dai-Nippon”. Essa chamada fez-me reler o livro, 480 anos após o desembarque português no Japão, e a impressão durante a revisitação apenas ficou ratificada e acrescida.

Considere-se que os portugueses foram os primeiros ocidentais a aportar no Japão aos 23 de Setembro de 1543. Fernão Mendes Pinto (1509-1583), aventureiro, mercador, explorador, missionário jesuíta, apesar de lá não estar nessa data, durante vinte e um anos desembarcou em terras do Oriente, e foi o autor da célebre Peregrinação, “primeira obra do japonismo literário”, segundo Fidelino de Figueiredo. Escrita tardiamente, de memória, tantas vezes sem quaisquer apontamentos, há que se perdoar equívocos, dadas as circunstâncias. Mencioná-lo se faz necessário, mormente pelo fato de que, séculos após, Wenceslau de Moraes cultuará de maneira plena o japonismo e se lembrará do autor de Peregrinação em Dai-Nippon.

Wenceslau de Moraes foi uma figura singular que, após a formação junto à Escola Naval, esteve a serviço da Marinha de Guerra Portuguesa, período em que foram várias as suas atuações de Moçambique ao Timor, Japão, Macau. Nesta cidade foi professor no Liceu e se casou com uma chinesa, Vong-lo-Chan, com quem teria dois filhos. É nomeado cônsul em Kobe em 1898, deixando esposa e filhos em Macau. As duas japonesas com viveria sucessivamente, Ó-Yoné Fukumoto e Ko-Haru, tia e sobrinha, morrem adoecidas, o que o levou à depressão. No Japão, a sua atividade literária se intensifica e, como correspondente no Exterior para diversos periódicos, delineia lentamente sua visão como arguto observador de aspectos essenciais do país, sendo que os seus relatos, mormente quando em Tokushima, seriam bem difundidos em Portugal. Com o passar dos anos, Wenceslau de Moraes sofre transformações e se japoniza. Pratica os costumes do Japão e traja-se à maneira dos habitantes locais. Faleceu em Tokushima aos 75 anos. Monumento em Tokushima e em Kobe homenageiam o escritor. Entre suas obras, salientemos: Traços do Extremo Oriente (1895), Cartas do Japão (1904), O culto do chá (1905), Fernão Mendes Pinto no Japão (1920), Ó-Yoné e Ko-Haru (1923), Os serões no Japão (1926).

Daí-Nippon é obra referencial. Após abordar sucintamente a história do Japão com o olhar de um europeu, Moraes penetra no âmago das culturas do país a descreve com admiração temas relevantes, entre estes as artes em suas modalidades, costumes, afetos, arquitetura religiosa, as moradias típicas e a economia do mobiliário, as tradições enraizadas desde tempos imemoriais, as armas e o sabre perene nas lutas marciais, a mulher japonesa — essa figura feminina delicada e gentil, inúmeras vezes exaltada em sensual poética —, o chá como elo nas relações, a morte entendida sem luto.

Após aportar inúmeras vezes em terras do Ocidente e Oriente, será no Japão que encontrará a sua tebaida. A escolha pelo país, voluntária, definitiva, acentua ainda mais a determinação de mudança em direção à japonização, e o olhar do observador ao longo dos anos saberia interpretar até pormenores que os habitantes locais, imersos em suas rotinas, porventura minimizavam. Há convicção plena em suas narrativas autobiográficas.

Clique para ouvir, de Tsuna Iwami (1923-2012), “O Mar”, a partir de poema de M. Miwa, na interpretação de J.E.M. (gravação em long play – 1979). :

https://www.youtube.com/watch?v=PK2qMzhu7IU

Creio necessário inserir alguns parágrafos basilares de Dai-Nippon, pois se houve, mormente após Hiroshima e Nagasaki, transformações em muitas áreas elencadas acima, outras tantas preservam tradições milenares. Há que se entender as observações de Wenceslau de Moraes sobre o Japão e seus costumes como escritas por um ocidental que, absorvendo o japonismo por inteiro, não deixou de tantas vezes, mesmo inconscientemente, inclinar-se à irresistível comparação entre duas culturas tão diferentes. É cônscio de que da estada dos portugueses pelo Japão, que se estende até meados do século XVII, “pouco ficou, mas ainda o bastante para assinalar até hoje a sua intensa influência momentânea. De monumentos, uma ou duas pontes de tosca alvenaria, galgando pela ribeira que serpeia por Nagasaki. De crenças, uma mística flor de cristianismo, que todas as matanças não lograram fazer murchar inteiramente e que, dois séculos depois, foi revelada numa tribo fiel de gente humilde, vivendo às ocultas na comunhão da mesma fé, ensinada pelos missionários aos trisavós. Na linguagem ficou uma multidão de palavras portuguesas, hoje inteiramente nacionalizadas; imagine-se a agradável surpresa de um português quando escuta esses vocábulos patrícios, proferidos tão longe da sua terra”. São muitos. A título exemplificativo, mencionemos os termos tabaco, bidro (vidro), copocatana (espada), conpeito (confeito), pan (pão), arigatô (obrigado), biôbu (biombo)…

Curiosamente, em Dai-Nippon o autor escreve que o japonês não cria, mas imita à perfeição, comentando que, da decadência da “maravilhosa originalidade artística deste povo, resulta por outro lado a noção profunda do seu intensíssimo dom imitativo, adaptador, dom que já hoje faz arrecear seriamente a egoísta Europa, diagnosticando-lhe não sei que futuro de lutas de competência, de arrojos pertinazes, de gente que muito quer e muito pode”. Após a Segunda Grande Guerra, o Japão derrotado, a criação do denominado Plano Colombo visou ratificar a influência dos Estados Unidos nos países que sofreram os efeitos da Guerra em países asiáticos, possibilitando investimentos na nação japonesa. Estou a me lembrar de que, na adolescência e juventude, nos primeiros lustros da segunda metade do século XX, era comum falar-se pejorativamente da imitação dos produtos ocidentais replicados no Japão. As décadas vindouras provaram a incrível recuperação do país e a inovação em tantas áreas. Hoje, o Japão integra o G7, grupo composto pelos países mais industrializados e com índices altos de desenvolvimento humano. É pois de interesse uma observação que Wenceslau de Moraes faz àquela altura: “No entretanto, o operário europeu envolve-se nas grandes lutas sociais, afrouxa no trabalho, estorce-se de miséria sobre a enxerga do lôbrego casebre, e em filhos inúteis prolifera… Não virá também um dia, longe sem dúvida, para a indústria nipônica bater-nos à porta, mais barata e mais perfeita do que a nossa? Ai, Inglaterra!”.

Reiteradas vezes Wenceslau de Moraes escreve sobre a mulher japonesa. Tem por ela admiração em quaisquer condições. Estende-se sobre a figura feminina. Busca desvendar seus mistérios. Mussumês, gueixas, anmas (massagistas cegas) são observadas em seus gestuais, seus passos delicados e em seus dramas (no caso, aquelas que vivem no bairro de prazeres mundanos em Yoshiwara).

No próximo post abordarei temas relacionados às artes em suas várias modalidades e ao culto às imagens de Budas gigantescos.

“Dai-Nippon (Great Japan) is a singular book and its author, Wenceslau de Moraes, a Portuguese writer and journalist, ended up adopting the country of the Rising Sun, becoming almost completely Japanese and dying there.