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Um compositor belga multidirecionado

O que é o verdadeiro artista criador
a não ser aquele que conjuga o controle do instinto,
a evidência do estilo, a recusa de soluções fáceis e,
sobretudo, a originalidade de emprego dos meios
– mais do que os meios em si – com uma afinidade profunda?
Mas sem a técnica, e se apenas subsiste a afetividade,
a obra não existe.
Serge Nigg (1924-2008)

Quando da elaboração do CD “New Belgian Etudes”, dez compositores acalentaram o projeto, sendo que três autores já têm seus Estudos no Youtube: Daniel Gistelink, Lucien Posman e Roland Coryn. Junta-se presentemente àqueles notáveis compositores Stefan Meylaers, que compôs “Face of Roads – Concert Study”. Assim como Elson Otake e eu fizemos antes, introduzimos no Youtube a música com a partitura, a fim de que os versados na escrita musical possam acompanhar o desenrolar da peça.

Stefan Meylaers nasceu em Neerpelt. Realizou seus estudos de piano no Instituto Lemmens, em Louvain, aprofundando-se posteriormente em música de câmara e composição, recebendo sempre a menção Magna cum laude. György Ligeti foi seu professor de composição. Trabalhou a seguir como pianista no estúdio de ópera do Théatre de la Monnaie, em Bruxelas. Agraciado com vários prêmios de composição, Meylaers desenvolve sua bela carreira em várias frentes como compositor, professor, pianista concertista e pianista acompanhador, assim como produtor. É fundador de um dos mais importantes conjuntos de câmara voltados para a música contemporânea, o New Art Trio.

Se a influência de Ligeti foi real, posteriormente Meylaers empreende seu caminho direcionado a uma escrita mais liberta da atonalidade. Suas obras nessa linha têm a característica de maior acessibilidade. Como bem escrevia Jean-Philippe Rameau (1683-1764), “a música é a linguagem do coração”. A escrita de Meylaers é estruturada e competente. Há uma forte dose de espontaneidade no conjunto de suas composições, sustentadas por um domínio técnico incontestável. Sob outra égide, a origem para a criação de Meylaers surge de fontes do cotidiano, como eventos, emoções e acontecimentos que o impactam. Meylaers se contrapõe às tendências que conduziram a música a guetos, longe da aceitação pública. Se anteriormente Ligeti e Steve Reich, este numa outra orientação, o influenciaram, mencionem-se outros compositores que Meylaers admira, como Mikhail Bronner, John Corigliano, Einojuhani Rautavaara, Peter Sculpthorpe, Arvo Pärt e Henry Gorécki. Na França, François Servenière, tantas vezes presente em meus blogs e igualmente com minhas gravações postadas no Youtube, não se distanciaria dessas tendências restritas a guetos? Como intérprete, e tendo tocado obras pertencentes a tantas tendências coetâneas diferenciadas, interessa-me sempre a coerência do compositor e não a adesão pela adesão a determinada corrente. Só não interpreto obras que tenham a associação da música eletrônica com o piano acústico, ou obras não bafejadas pelas musas. E elas existem.

Tão logo tive em mãos a partitura de “Face of Roads”, a mim dedicada, estive a estudá-la. Alguns aspectos me entusiasmaram. Mencionaria o domínio escritural, igualmente constatado nas criações dos outros nove compositores que compõem o CD “New Belgian Etudes”. É admirável observar que todos eles, diferenciados, têm essa competência escritural. Stefan Meylaers e Stefan van Puymbroeck, ambos nascidos em 1970, foram os mais jovens entre os selecionados em 2002. A formatação de “Face of Roads” obedece a uma ordenação consciente e, da básica “ondulação” das linhas, um longo segmento, que se estende dos compassos 93 (pág. 10) ao início do compasso 116 (pág. 14), exibe uma condução polifônica admirável. Também a se destacar a preparação para o segmento de arpejos virtuosísticos, que se estendem dos compassos 133 (pág. 16) ao comp. 146 (pág.117), levando ao estágio final do magnífico Estudo de Concerto. Sob outra égide, como há passagens que têm o caráter de “improvisação”, Meylaers concordou com certas “liberdades” do intérprete. Certamente “Face of Roads” enriquece o extenso repertório de Estudos Contemporâneos, segmento generoso que abriga as mais variadas tendências existentes no planeta.

Tendo frequentado inúmeros Estudos de Chopin, Liszt, Rachmaninov, e gravado as integrais de Estudos de Scriabine e Debussy, assim como interpretado todos os de Henrique Oswald e de Francisco Mignone, o privilégio de ter executado cerca de 80 Estudos compostos para meu projeto, iniciado em 1985 e finalizado em 2015, trinta anos de criação na passagem dos séculos, é motivo de grande alegria para este intérprete nos seus 83 anos.

Clique para ouvir, de Stefan Meylaers, “Face of Roads”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=2bQyBD9Oy2A

“Face of Roads”, by the Belgian composer Stefan Meylaers, is part of the CD New Belgian Etudes, released by De Rode Pomp label, featuring 10 composers and performed by J.E.M. It is a study with extensive technical-pianistic possibilities and beautifully constructed.

 

Recepção à altura da temática

É a razão desde o parto.
É correr pela vida,
Carregando sempre a morte.
Joan Reventós i Carner
(“Os Anjos não sabem velar os mortos”)

Apesar das dificuldades existentes quando se aborda o tema Morte, a recepção ao último post evidencia o interesse dos leitores por algo inexorável. Todas as mensagens recebidas são relevantes; mas, devido ao espaço a que me proponho, selecionei umas poucas, que correspondem ao conteúdo majoritário dos posicionamentos enviados.

A História está plena de registros da Morte nas artes visuais, música, literatura, nas crenças que eclodiram, feneceram ou sedimentaram-se. Persiste sempre o grande mistério relacionado ao infalível término da existência.

Em consonância com a atitude resignada e em paz, testemunhada pelos que cercam meu amigo-irmão nesse fim insubornável, as mensagens recebidas abordam vários aspectos que transmito aos leitores. A resignação de meu amigo-irmão, imbuído de profunda fé cristã, faz-me pensar na atitude diante da morte apreendida nas várias religiões. Estive com meu saudoso amigo, Álvaro Guimarães (1956-2009), poucos meses antes de sua “partida para a outra margem”, como me escreveu sua esposa, a regente coral Katrijn Friant, pois o amigo músico morou parte da existência em Gand, na Bélgica, lá a constituir família. Álvaro, já nos estertores da vida, dizia-me que estava preparado após ler um livro de Sogyal Rinpoche (vide blog: “O Livro Tibetano do Viver e do Morrer”, 10/10/2009). O autor escreve: “A contemplação profunda da mensagem secreta da impermanência – aquilo que de fato está além da impermanência e da morte – leva diretamente ao coração dos antigos e poderosos ensinamentos dos tibetanos: a introdução à essencial ‘natureza da mente’. A realização da natureza da mente, que pode ser chamada de nossa essência mais profunda, aquela que todos nós buscamos, é a chave para a compreensão da vida e da morte”.

Heitor Rosa, médico gastroenterologista e professor emérito da Universidade Federal de Goiás, escreveu-me, anexando um texto de Rubem Alves, psicanalista, educador, teólogo e escritor, a ele endereçado e do qual separei alguns segmentos relevantes:

“Li seu artigo sobre a morte e imagino sua angústia pelo inexorável desfecho com seu amigo-irmão. Com minha solidariedade, te envio um artigo que o Rubem Alves me enviou antes de morrer”.

Escreve Rubem Alves (1933-2014):

“Mas, o que é a vida? Um materialismo científico grosseiro define a vida em função de batidas cardíacas e ondas cerebrais. Mas será isso que é vida? Ouço os bem-te-vis cantando: eles estão louvando a beleza da vida. Vejo as crianças brincando: elas estão gozando as alegrias da vida. Vejo os namorados se beijando: eles estão experimentando os prazeres da vida. Que tudo se faça para que a vida se exprima na exuberância da sua felicidade! Para isso todos os esforços devem ser feitos. Mas eu pergunto: a vida não será como a música? Uma música sem fim seria insuportável. Toda música quer morrer. A morte é parte da beleza da música. A manga pendente num galho: tão linda, tão vermelha. Mas o tempo chega quando ela quer morrer. A criança brinca o dia inteiro. Chegada a noite ela está cansada. Ela quer dormir. Que crueldade seria impedir que a criança dormisse quando o seu corpo quer dormir. A vida não pode ser medida por batidas e coração ou ondas elétricas. Como um instrumento musical, a vida só vale a pena ser vivida enquanto o corpo for capaz de produzir música, ainda que seja a de um simples sorriso”.

Eliane Mendes, viúva do notável compositor Gilberto Mendes, escreve:

“De fato, o ser humano se impressiona tanto com a morte, mas não se impressiona com a vida, esse milagre tão maravilhoso, em que cada célula de nosso corpo adquire a inteligência de saber o papel a ser assumido segundo o órgão do qual ela fará parte. Fazendo um paralelo, como você citou tão bem, o mundo inteiro lamentando a morte de pessoas da mídia, e praticamente desconhecendo aqueles que se dedicam a preservar a vida das pessoas, passando quase como anônimos, como os que se empenham na medicina, na descoberta da cura das doenças, ou aqueles que se empenham em divulgar o que há de melhor e mais sábio, como o Nelson Freire, que você citou como exemplo. Há alguns anos li uma pesquisa feita na França com a intenção de saber quem as pessoas consideravam como intelectuais, com grande bagagem cultural, isso na época em que ainda viviam intelectuais de alto nível, como Claude Lévi-Strauss (1908-2009), por exemplo. E, para surpresa de todos, o ‘grande intelectual’, eleito com quase 100% de votos, foi o homem âncora do Jornal da Noite, o que aparecia todas as noites na TV dando as notícias. Daí a mensagem do Sábio, no Tao Te King, dizendo: “O Sábio é aquele que permanece anônimo, sorrindo, observando o ser humano fazer uso de seu conhecimento, pegando para si a propriedade desse conhecimento, apregoando como se ele fosse o dono desse conhecimento”. O que seria de nós sem a Sabedoria da Grandeza da Humildade para fazer frente ao grande vazio da humanidade, não é mesmo, José Eduardo? Que a Sabedoria Divina acolha o seu amigo-irmão neste instante derradeiro, com a percepção da verdade que nos escapa durante nossa vida, dando-nos apenas uma visão muito pequena da razão plena de nossa existência”.

Gildo Magalhães, professor titular da FFLECH-USP, comenta:

“Eu já ficara sensibilizado pela notícia por você adiantada e achei tocante sua mensagem com reflexões sobre a morte, em geral a ‘indesejada das gentes’. Quando se reflete que o objetivo da vida é gerar vida, isto pode soar muito mecanicista, mas não deixa de ser verdade. Só que importa muito o que fazemos com o dom da vida que nos foi dado. E você, em particular, maravilhou-nos todos com a beleza da sua música ao piano, também registada para gerações futuras. E, mais ainda, terá um legado de escritos que espalham um firme humanismo, além de conhecimento e um puro sabor de viver intensamente, mesmo nas minúcias, e penso que seu amigo-irmão também deixará esta marca de sua passagem, transformando o efêmero em duradouro”.

Humberto Lopes, que durante décadas teve função destacada em empresa nos Estados Unidos, em sua mensagem teceu comentários paralelos ao post anterior, em que mencionei a morte trágica da cantora sertaneja Marília Mendonça e a massacrante cobertura da mídia durante praticamente dois dias inteiros, a motivar multidão incalculável, assim como a morte do notável pianista Nelson Freire, que teve uma cobertura, diria, protocolar. Humberto menciona dois exemplos ocorridos nos Estados  Unidos, demonstrando que essa “prática” existe não apenas em nossas plagas.

É possível que estejamos a viver um período de insensibilidade coletiva frente à morte. A pandemia, tendo ceifado incontável número de contaminados, persistindo em ondas sucessivas a dizimar humanos, colocou-nos diante da morte como probabilidade real e “imediata”. As vacinas, mesmo que “incompletas” em suas eficácias, são as únicas vias no momento. Quanto ao meu amigo-irmão, seu mal, após determinada etapa, é inexorável. O homem envia drones a Marte, perscruta ínfima parte do universo, aperfeiçoa tecnologias de maneira vertiginosa e não descobre vacinas contra o câncer. Os séculos passam e o interior do corpo humano continua a ter lá os seus mistérios. Estranho, muito estranho.

I appreciate the numerous messages on a difficult subject. I have separated some of them which highlight positions of interest.

 

 

 

Tema natural, mas sob incontáveis apreensões

A morte dos outros me afeta:
e seu morrer, a sua morte,
são parte da minha vida,
são marcos ao limite último.

Joan Reventós i Carner (1927-2004)
(“Os anjos não sabem velar os mortos”)

Às voltas com momentos críticos que está a passar um de meus mais intensos amigos, amigo-irmão, estive a pensar sobre a morte e a percepção que dela se tem a partir de tantas circunstâncias. Apreendida com naturalidade e resignação, mercê de fatores voltados às religiões; recepcionada na solidão de quem perde um ente querido; exacerbada por multidões quando atinge figuras mediáticas, a morte, sem se importar com essas reações, segue inexorável. Mors certa hora incerta, como reza o latim.

O notável filósofo e musicólogo Vladimir Jankélévitch (1903-1985), em seu livro “La Mort” (France, Flammarion, 1977), a tratar do mistério e do fenômeno da morte, no capítulo inicial, escreve sobre o cotidiano do destino final: “Podemos considerar que o problema da morte seja propriamente um problema filosófico. Se ponderarmos objetivamente e de um ponto de vista geral, não podemos basicamente saber o que seria uma ‘metafísica da morte’; contrariamente, ‘entendemos’ muito bem uma ‘física’ da morte, seja ela referente à biologia ou medicina, sociologia ou demografia: a morte é um fenômeno biológico, como o nascimento, a puberdade e a velhice; a mortalidade é um fenômeno social como a natalidade, o casamento ou a criminalidade. Para o médico, o fenômeno letal é determinável e previsível, segundo especialidades, em função da duração média da vida e das considerações gerais dos meios. Sob o aspecto jurídico e legal, a morte é um fenômeno também natural: nas prefeituras, a seção voltada às mortes é como as outras existentes e, ao lado dela, há uma subdivisão do estado civil, outras para nascimentos e casamentos; o serviço funerário é um órgão municipal, nem mais nem menos do que o das vias públicas, dos jardins públicos ou da iluminação das ruas; a coletividade mantém indistintamente suas maternidades, suas escolas e suas casas de saúde. A população aumenta com os nascimentos, decresce com as mortes: nenhum mistério, simplesmente uma lei natural e um fenômeno empírico normal, ao qual a impessoalidade das estatísticas e dos meios retira todo o caráter de tragédia”. Essa percepção, que condiz com a realidade cotidiana, mesmo que dela muitas vezes não tenhamos consciência, minimiza até certo ponto a extensão da tragédia, a depender de convicções, crenças e idolatrias.

Jankélévitch desenvolve considerações sobre um quadro de Domenico Fetti (1589-1623), “Melancolia” ou “Meditação”, alegoria a representar a Sabedoria meditando sobre um crânio.  Ao ver do filósofo, “não há nada a se pensar sobre a morte e a Sabedoria está tão vazia quanto o crânio sobre o qual ela medita. Diante da morte, o homem está como se estivesse diante da profundeza superficial do céu noturno: ele não sabe o que fazer”.

Deparamo-nos com a morte nesses tempos pandêmicos. Parentes e amigos partiram e legião de infortunados, que não resistiram,  fizeram-me refletir sobre o tema. A apreensão da morte num meio familiar tem uma  dimensão, mas quando atinge figuras amplamente mediáticas recebe por parte da multidão recepção desconcertante.

Estou a me lembrar de três fatos determinantes. Quando do assassinato da atriz de novelas Daniela Perez, aos 28 de Dezembro de 1992, uma turba compareceu à Delegacia e em número maior ao cemitério. O fato serviu para que escrevesse ao jornal “O Telégrafo” da Horta, sede da ilha Faial, pertencente ao Arquipélago dos Açores, pois era correspondente do Suplemento Literário “Antilha” do diário faiense, artigo a responder texto precedente do ótimo poeta da ilha, Heitor Aghá Silva, sobre o malefício que as novelas traziam à língua mãe praticada no arquipélago (vide blogs: “A Voz e o Eco Captados Além-Mar” e “Um trágico amalgamar”, 20 e 27/03/2010, respectivamente). Em “Um trágico amalgamar”, publicado no “Antilha” aos 12 de Março de 1993, fazia referência a essa multidão: “No cemitério ou junto à Delegacia de Polícia, durante dias, um público absurdo buscava vaticinar o veredicto para os réus e, na histeria, idolatrar os mitos vivos que compareciam aos lugares citados”.

A colocação se faz necessária após dias recentes, quando mídias nacionais voltaram-se sem tréguas para noticiário semelhante, ou seja, a trágica morte da jovem Marília Mendonça, quiçá tão ventilada e abrangente como o foram as mortes de Tancredo Neves e Airton Senna! Tantos pronunciamentos de figuras conhecidas profetizando a “eternidade” da jovem cantora. Tancredo Neves faz parte essencial de nossa história e Airton Senna está perpetuado como herói nacional.

Dias antes morria um dos maiores pianistas da atualidade em termos mundiais, Nelson Freire (1944-2021). Sem exagero e sem ter o mínimo conhecimento de “leis” estatísticas, ousaria dizer que a divulgação de sua morte nesses recentes dias talvez tenha correspondido a bem menos de 0,1%, se comparada for à dispensada à morte e ao sepultamento da cantora. Nelson Freire se apresentou durante cerca de 60 anos nas mais importantes salas de concerto do planeta e foi glória absoluta de nossa arte. A perenidade certa já lhe foi garantida, pois Nelson Freire está no panteão onde só os iluminados repousam.

Resignado, cercado de amigos e familiares que o amam, meu amigo-irmão aguarda o momento de partir.

A imagem inicial, “L’arbre des morts”, da artista Jeanne Esmein, inspira-se num poema de Louis Gillaume (1907-1971) que rememora lenda nórdica, segundo a qual, à chegada do recém-nascido, plantava-se uma árvore, futuro esquife a deslizar rio baixo após a existência. A primeira estrofe…

“L’arbre funèbre atteint la pleine mer
il se croit seul quand mille autres l’entourent
offrant leur flambée obscure à la lune”

The critical condition of a friend who is like a brother to me made me think about death. I quote remarks by the noted philosopher Vladimir Jankelévitch on the subject and also comment on the public’s reception of death.