Quando mensagem leva às origens – Em torno de uma Fantasia

Scriabine é o único músico romântico,
no senso pleno da palavra,
que a Rússia produziu até agora.
Nada o liga aos compositores russos que o precederam,
nem àqueles de sua geração;
se teve imitadores, não teve discípulos,
ninguém o seguiu no caminho aberto por ele.
Boris de Schloezer
(escritor e musicólogo nascido em Vitebsky. Irmão da segunda esposa de Scriabine, Tatiana)
(“Musique Russe”, 1953)

Pelas manhãs tenho o hábito de abrir mensagens. Chamou-me a atenção e-mail vindo do Exterior, Reino Unido mais precisamente. Questiona-me um leitor-ouvinte a respeito de minhas gravações para o selo De Rode Pomp (Bélgica), disponibilizadas no YouTube, com obras do notável compositor russo Alexandre Scriabine (1872-1915). Após considerações, escreve que gostaria de saber a origem dessa admiração, mormente tratando-se de um pianista latino americano, assim expresso na mensagem.

Creio que há tipos de envolvimento e, entre estes, destacaria: atávico, desde a infância; progressivo conhecimento das criações de determinado compositor; temporário, quando programação determina o debruçamento sobre certas obras de um ou mais autores; impacto motivado por gravações excelsas, de composições rigorosamente desconhecidas até uma primeira escuta; escolha voluntária a partir de estudo musicológico; admiração por determinados períodos históricos.

A atração pela obra para cravo de Jean-Philippe Rameau, executada ao piano pela notável Marcelle Meyer (1897-1958), surgiu quando meu pai, na década de 1950, ofereceu-me a integral do compositor em álbum de LPs. Era bem jovem e fiquei subjugado pela criação de Rameau e a sublime interpretação de Meyer. Apresentei a integral em 1971 em São Paulo e cidades do país e apenas em 1997 gravaria em Sófia, Bulgária, registro este lançado 1999 em dois CDs pelo selo belga De Rode Pomp e posteriormente no Brasil pela CONCERTO (2005).

Na juventude estudei algumas poucas obras de Alexandre Scriabine (1872-1915), mas foi um LP presenteado por um jovem fagotista russo, em 1962, em Moscou, quando do II Concurso Tchaikowsky, que me chamaria a total atenção a partir da primeira escuta e Scriabine tornar-se-ia um de meus eleitos, graças fundamentalmente à magistral interpretação de Vladimir Sofronitsky (1901-1961). Morrera um ano antes e suas gravações ratificavam louvações à sua leitura das obras de Scriabine, pois dois dos mais importantes pianistas russos mundialmente conhecidos, Sviatoslav Richter (1915-1997) e Emil Guilels (1916-1985), consideravam-no um dos grandes mestres do piano de todos os tempos. Vladimir Horowitz (1903-1989), tendo saído da Rússia em 1925 e mais tarde fixando-se nos Estados Unidos da América obtendo a cidadania norte-americana em 1945, foi um dos maiores intérpretes da obra de Scriabine.

Vários fatores foram responsáveis pela dedicação de Sofronitsky à obra de Scriabine. De 1916 a 1921, Sofronitsky foi colega da filha do compositor, Elena Scriabina, no Conservatório de São Petersburgo, desposando-a em 1920. Essa ligação poderia ser uma das causas do envolvimento do pianista com a obra de Scriabine, da qual se tornou intérprete emblemático. De 1942 até a sua morte foi professor do Conservatório de Moscou. Sofronitsky apenas duas vezes viajou ao Exterior, daí possivelmente ser pouco ventilado no Ocidente àquela altura. Em Moscou, no longínquo 1962, pela primeira tomei conhecimento do seu nome!!!

Ao regressar a São Paulo, imediatamente quis ouvir o LP. O fascínio foi total, mormente pela Fantasia em si menor op. 28. Como curiosidade, conto ao leitor que busquei imediatamente a partitura, após ouvi-la. Não a encontrando na cidade, um dileto amigo conseguiu comprá-la na edição original em um bouquiniste às margens do Sena, em Paris. Nestas últimas décadas edições surgiram a partir dessa primeira e a obra faz parte do repertório de muitíssimos pianistas, sendo que o Youtube exibe quantidade de interpretações do op. 28, inclusive a minha, que está inserida no CD dedicado a Schumann e Scriabine lançado pelo selo belga De Rode Pomp (2007).

Clique para ouvir a magistral gravação de Vladimir Sofronitsky da Fantasia em si menor op. 28 de Scriabine:

https://www.youtube.com/watch?v=Mvc2K_5JWho

Dez anos após o episódio relacionado ao LP, comemorou-se o centenário de nascimento de Alexandre Scriabine, tendo eu apresentado no Auditório Itália recital inteiramente dedicado ao compositor. No programa apresentei a Sonata-Fantasia nº 2, alguns Prelúdios, Estudos e Poemas, assim como a Fantasia op. 28, essa em primeira audição no Brasil, pois, a auscultar músicos pátrios, também desconheciam a composição.

Em 1977 apresentava no Museu de Arte, MASP, em São Paulo, a integral dos Estudos de Scriabine e em 1986, no mesmo auditório, novamente a integral acrescida da versão alternativa do Estudo op. 8 nº 12 (Patético), assim como sete Poemas, que acabaria apresentando na totalidade de maneira esparsa ao longo dos anos. Somente no ano 2000 gravaria os 26 Estudos para o selo belga De Rode Pomp, na mágica Capela de Mullem, recebendo crítica que me emocionou, pois vinda do Dr. Ilia Fridman, pianista e Presidente da Sociedade Scriabine na Rússia. A versão alternativa do Estudo Patético seria gravada para o CD Schumann-Scriabine. Original e versão encontram-se no Youtube.

Longe de me considerar especialista em um autor, o que, acredito firmemente, pode “obstaculizar” a compreensão de tantos outros compositores, entendo correto o verbo eleger. Elegemos nossas preferências e elas alargam a mente. Essas “especialidades” representam uma corrente com vários elos que a fortificam.

Clique para ouvir a inefável interpretação de Vladimir Sofronitsky dos dois Poemas op. 32 de Scriabine:

https://www.youtube.com/watch?v=4cv_wV7H-JU

Sempre admirei o gênero Estudo para piano. Já disso tratei em blog bem anterior. Parece-me a síntese absoluta de procedimentos de um autor, sob a égide da técnica pianística. Se apenas essa vertente for estabelecida, teremos Estudos estéreis, pois para que um Estudo tenha a ampla abrangência ele deve ultrapassar a barreira do puramente técnico e ter elementos necessários para que a música emerja. Chopin, Liszt, Debussy, Scriabine, Rachmaninov estão entre os poucos que souberam escrever Estudos maiúsculos. Se a contemporaneidade nos legou Estudos significativos de György Ligeti (1923-2006) ou Maurice Ohana (1913-1992), entre outros mais criadores, tem-se na vasta literatura exemplos de compositores que souberam explorar caminhos diferenciados para o gênero, ou até empregando recursos da técnica tradicional, encontrando “achados” relevantes. Os 26 Estudos de Scriabine, conjunto maiúsculo que se estende em vários opus, teve início quando o compositor tinha apenas 15 anos, prolongando-se até o peristilo da morte precoce, advinda aos 43 anos.

Periodicamente visito com renovado prazer a obra para piano de Scriabine. Estudos, Poemas, Sonatas e peças avulsas, como a sensível Valsa op. 38. Piano – J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=97MoXq2KWig

Extraordinária a trajetória composicional de Scriabine, caminhando de um romantismo ainda bem vivo, mas com características personalíssimas, à abstração do Poema Vers la Flamme op. 62 ou dos três Estudos op. 65, compostos em 1912, quando música e metafísica amalgamaram-se em seu pensar numa imaginária fusão com o Cosmos, almejo maior do compositor russo.

Clique para ouvir de Scriabine o Estudo op. 65 nº1. Piano – J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=5fc96yVOXgQ

A musicóloga Marina Scriabine, filha do compositor, escreve: “É preciso compreender que nós não estamos diante, em se tratando de Scriabine, de duas atividades distintas e paralelas: de uma parte, a criação musical; sob outro ângulo, a especulação filosófica. Existe uma experiência única, o nascimento, no seio de uma tensão espiritual contínua, de um pujante debordamento criador, que se manifestava nas formas musicais, poéticas ou filosóficas, sendo que nenhuma era a tradução ou a adaptação da outra, mas que se apresentavam como signos polimorfos de uma realidade interior”.

Clique para ouvir o Poema Vers la Flamme op. 62 de Scriabine. Gravação ao vivo. Convento Nossa Senhora dos Remédios, Évora, Portugal, Maio 2017. Piano – J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=wdgfEnv51MI

Saber que toda a admiração pela obra de Scriabine nasceu de um LP, na interpretação rigorosamente única de Vladimir Sofronitsky, é motivo para relembrar – mercê de mensagem recebida – um longo debruçar nessa criação singular scriabiniana. O fato trouxe-me satisfação interior. E a reminiscência já não basta por si só? Sob outra égide, Sofronitsky a cada geração se apresenta como lenda acrescida. Razões tinham os notáveis pianistas Emil Guilels e Sviatoslav Richter de o reverenciar sem limites.

On the origin of my admiration for Alexander Scriabine, which stems from a vinyl record in which Vladimir Sofronitsky, undoubtedly one of the greatest Russian pianists in the 20th century, played Scriabin’s works. That was back in the 60s, at a time when Scriabin’s music was relatively unknown to me. I was fascinated by Sofronitsky’s virtuosity, in special when playing the Fantaisie op 28, a brilliant work. Since then Scriabin has been one of my favorite composers and his music a constant in my repertoire, both in recorded and live performances.

 

 

 


 

 

 

Música popular brasileira relevante: criação e interpretação

A finalidade da música é despertar em nós paixões variadas.
René Descartes (1596-1650)

Prefiro aquilo que me emociona àquilo que me deslumbra.
François Couperin (1668-1733)

A música é a linguagem do coração.
Jean-Philippe Rameau (1683-1764)

O SESC estará a lançar em breve um CD memorável, “Espelho”. O conteúdo integral foi apresentado em três récitas em São Paulo. Regina e eu estivemos em uma delas. Noite de puro deslumbramento.

A enxurrada, que está a destruir todos os valores existentes, como moral, costumes, honestidade, artes, faz com que progressivamente não mais tenhamos esperanças. Que a Cultura Erudita está a se desmilinguir é fato. No caso específico da música popular, que hoje se apresenta sob tantas roupagens, a maior parte delas descartável, mas que, por interesses vários, como patrocínios visando a público enorme e lucro advindo, mídia a acobertar, por vezes sem o menor compromisso com a qualidade, faz com que vivamos numa Torre de Babel, na qual as “linguagens” são dicotômicas e desprezíveis. Os valores de mérito foram negligenciados sem rubor pelos cultores do Cifrão que estão a esmagar o passado, pois sua existência implica a lembrança, e esta tem que desaparecer na “mente” dos responsáveis por essa derrocada dos costumes, graças à massa basicamente inculta que acorre a megaeventos, agendados tantas vezes com muitos meses de antecedência.

O Concerto, assim o nomeio, pois não se tratou de um Show, palavra que pode ser entendida como pejorativa quando empregada para minimizar o termo Concerto, apresentou composições de Cristóvão Bastos e Maury Buchala, este, tema de um blog quando do lançamento do CD de música contemporânea “Portraits”, gravado em França por conjunto instrumental respeitado e igualmente lançado pelo selo SESC.

Durante toda a apresentação, se sob a égide essencial alumbrava-me a cada uma das 16 músicas interpretadas, mais a executada extraprograma, sob outro contexto meu sentimento era de nostalgia e inquietude. Voltava meu pensar, por vezes, ao que se propaga em escala ascendente nos provedores e nas redes sociais a respeito de determinados “famosos”, insistentemente incensados, sem o menor talento musical, despudoradamente se produzindo, alguns quase desnudos, amparados por parafernália de luzes a ocultar a mediocridade, sons estratosféricos a impedir avaliações, mas levando multidões desprovidas de senso crítico e rigorosamente incultas ao delírio. Esses “famosos”, quando se pronunciam em “entrevistas”, são logorreicos e, espremendo-se conteúdos, nada sobra. E a música? Existiriam resquícios, se ao menos houver algum?

Voltemos à apresentação de “Espelho”. Conheço Maury Buchala desde os bancos universitários, pois foi meu aluno de piano durante o curso de quatro anos e já revelava talento invulgar. Quando me solicitou conselho para estudar no Exterior, recomendei Paris, dando-lhe algumas indicações. Radicado há mais de três décadas na capital francesa, Maury é expressão como compositor de música de vanguarda e regente com atuações no leste europeu e no Brasil. Sempre duvidei do compositor de música contemporânea que desconhece a escrita convencional, partindo já de processos que se multiplicaram nestas últimas décadas. Maury escreveu canções lindamente harmonizadas e soube escolher textos. O resultado foi surpreendente, pois suas canções, tão bem escritas, atingem o âmago do ouvinte. A cada canção mais surpreso ficava. Em duas delas, seu conhecimento das entranhas de nosso país no quesito da música de raiz mostra-se sólido, pois Choreando e Baião são exemplos. Carrosséis, Moças de Louça, Imagens e Morto Mar dão a exata medida da versatilidade de Maury Buchala, que se reinventa a cada canção. Luciana é uma canção homônima a de António Carlos Jobim, compositor que Maury admira nessa área específica. A apresentação dessa música foi feita pela ótima Mônica Salmaso, apesar de no CD ter sido gravada por Leila Pinheiro.

https://www.youtube.com/watch?v=RlgP8n6t4Xg

Confesso meu pouco convívio com a música popular e meu conhecimento menor da criação de Cristóvão Bastos (1946- ), respeitado compositor nascido no Rio de Janeiro, premiadíssimo e com carreira das mais expressivas. Emocionaram-nos suas canções: Acalanto pros Avós, Poranduba, Todo o Sentimento, Flor Negra, Virou Ciranda e Rede Branca.

Neste espaço insiro uma das mais sensíveis canções de Cristóvão Bastos, Santo Forte, apresentada no Concerto numa esplêndida interpretação do notável Renato Braz. Entendo-a como uma das mais intensas músicas de nosso cancioneiro, a causar-me uma fortíssima impressão.

https://www.youtube.com/watch?v=DWgDrV4tRlI

Maury Buchala e Cristóvão Bastos souberam com rara sensibilidade escolher os letristas-poetas, o que acentua a qualidade do todo.

Os quatro cantores que se apresentaram no Concerto mereceram justíssimos aplausos. A quase octogenária Áurea Martins expressava em cada verso cantado toda uma vivência dedicada à música popular. Plena de aura, mereceu de seus três outros colegas uma bela atitude reverencial. Mariana Baltar encantou com sua voz nuançada, assim como a exibir gestual de extrema elegância, mercê também de ter sido bailarina. Mônica Salmaso cantou com expressão e acurada percepção em peças de Cristóvão Bastos e de Maury Buchala, estas de muita dificuldade, pois de harmonias rebuscadas. Renato Braz é verdadeiramente um artista na acepção. Suas interpretações excedem pelo esmero com que expõe as frases musicais, acabamento cuidadoso e dicção transparente.

Maury Buchala e Cristóvão Bastos, graças às qualidades como músicos, souberam escolher os excelentes intérpretes que integraram o conjunto. Todos se apresentaram com empenho, qualidade e entusiasmo. Mencionaria pela ordem alfabética: Andreia Carizzi (violino 2), Bruno Aguilar (baixo acústico), Dirceu Leite (flauta e clarinete), Hugo Pilger (violoncelo), João Lyra (violão), Jurim Moreira (bateria), Marcos Catto (viol), Ricardo Amado (violino).

Louve-se toda a equipe do SESC por esse magnífico CD, que em breve estará à disposição dos aficionados. Presentemente já se encontra nas plataformas Spotify, Deezer e Aple, assim como no Youtube.

My impressions after attending the release concert of the CD “Espelhos” (SESC Record Label) with songs of unquestioned quality composed by Maury Buchala and Cristóvão Bastos. As I listened, bewitched, to the entire album repertoire presented by stunning singers and musicians, I saw that excellence still exists. What is lacking is interest of media and financial backers in promoting some superlative talents that have not gained traction in the mainstream music world, opting instead for a handful of celebrated and often mediocre performers that capture more public and bring in more money. Congratulations to SESC on this initiative that helps promote major talents of the Brazilian music scene.

Figuras que povoam a mente desde a Antiguidade

Nós sabemos tudo o que acontece sobre a terra fecunda…
Homero, Odisseia: Canto XII, 191

A leitura do post “Un été avec Homère” rendeu tantos e-mails louvando Homero e sobretudo, no caso específico, o escritor aventureiro Sylvain Tesson pelo olhar diferenciado que lançou sobre a Illíada e a Odisseia, duas das obras maiores da literatura em todos os tempos. Leitores gostariam que, no blog anterior, tivesse eu me estendido, a comentar Sereias e Ciclopes presentes na Odisseia. Sylvain Tesson menciona-os, mas entendi necessário coloca-los neste post sob outra égide, a voltada às artes, mormente à música, em dois exemplos emblemáticos entre tantos outros.

Se as Sereias, presentes no Canto XII da Odisseia de Homero, têm conotação plena da sedução que leva à morte, a presença dessas divindades do mar que, através de maviosos cantos, hipnotizavam navegantes, levando-os às profundezas, foi igualmente motivo de inspiração para inúmeros compositores, poetas e pintores ao longo do tempo, que não ficaram alheios ao alumbramento que se perpetuou.

Ulisses, esse personagem mitológico maior, avisado por Circe, a feiticeira, previne-se contra o chamamento das Sereias durante seu périplo pelo Mar Egeu. No canto XII da Odisséia tem-se: “Ulisses, todas essas coisas se passaram dessa maneira. Agora, escuta-me, e mais tarde um deus te lembrará minhas palavras. – Primeiramente tu encontrarás as Sereias, sedutoras de todos os homens que delas se aproximam: aquele que, levado pela imprudência, escutar a voz das Sereias, não verá mais sua esposa, tampouco seus filhos queridos, que estariam felizes pelo regresso; as Sereias deitadas na pradaria cativarão o guerreiro com suas vozes harmoniosas. Em torno delas estão ossos e carnes ressecadas das vítimas que elas fizeram sucumbir. Foge dessas margens e tampa os ouvidos de teus companheiros com cera mole, de maneira que nenhum deles ouça. Tu mesmo, se desejares, poderás ouvir as Sereias, mas deixa-te primeiramente ter pés e mãos amarrados ao mastro de teu navio veloz; deixa-te ficar bem atado, a fim de que possas te deliciar ao ouvir a voz das Sereias encantadoras. Se implorares aos teus guerreiros, se tu ordenares que eles te desatem, que eles te amarrem ainda mais ao mastro” (versão de JEM da tradução francesa de Philippe Jaccottet). Seguindo esse estratagema, Ulisses passa com seu barco ao largo da Ilha das Sereias.

Sereia e Ondine foram fontes de inspiração para um número expressivo de compositores. Da primeira, André Michel enumera cerca de cinquenta composições, da segunda há também quantidade significativa. Se as Sereias perpassam a história anteriormente à Odisseia, datada de mais de 25 séculos, Ondine é a versão nórdica e Yara, a indígena brasileira. Ninfas transfiguradas, mas igualmente sedutoras e fatais. Figuras aquáticas enfeitiçando marujos hipnotizados que se atiram nas águas para não mais voltar e inspirando legião de sonhadores de todas as áreas.

Apenas para mencionar alguns exemplos na composição musical, Maurice Ravel escreve Ondine, primeira peça do tríptico para piano Gaspard de la Nuit, (1908), Claude Debussy compõe Ondine, oitavo Prélude do segundo livro (1910-1912) para piano, e Sirènes, para orquestra e coro feminino (oito sopranos e oito mezzo sopranos), sendo o terceiro dos três Nocturnes (1897-1899). Debussy redige o texto quando da primeira audição: “É o mar e seu numeroso ritmo e, pelas ondas prateadas pela lua, ri e passa o canto misterioso das Sereias”. André Michel (La Sirène dans “l’Élement Musical”, 1970) considera: “Significativo observar que, para Debussy, importava o canto das Sereias e não o aspecto. Nada faz pensar que as Sereias fossem para ele aquilo que representavam para os Antigos, metade mulheres, metade pássaros ou, pela tradição mais recente, mulheres peixes”. Em carta ao seu editor, Debussy escreveria ao ver a feiura de banhistas nas praias: “Verdadeiramente todos esses braços, essas pernas que se agitam em ritmos ridículos fariam chorar os peixes. No mar deveriam existir apenas Sereias”. Debussy, amante inconteste do mar, suas ondulações e reflexos, ao escrever Sirènes encontra numa observação do compositor e um de seus biógrafos, Charles Koechlin, preciso conceito, “volúpia mortal”. Essa presença das vozes femininas em cantos sem palavras, plenos de cromatismo, o que realça ainda mais essa “volúpia mortal”, imprime a essa magistral criação de Debussy todo um poder mágico, a dar ao ouvinte – sem necessidade da cera que oblitera os ouvidos – a possibilidade de ouvir as melodias envolventes das Sereias amparadas por um orquestração a dimensionar sensualidades.

Clique para ouvir Sirènes, o terceiro Nocturne de Claude Debussy:

Orquestra de Cleveland, regente Pierre Boulez

https://www.youtube.com/watch?v=gh_u-S7vAOI

 


Sobre os Ciclopes presentes na Odisseia, eram eles seres fortíssimos, enormes e com apenas um olho no meio da testa. Conta a mitologia que originalmente eram três Ciclopes. Ferreiros, forjaram em gratidão a Zeus o célebre raio, assim como o tridente de Poseidon e o elmo do Terror, de Hades. Polifemo, o Ciclope que ganharia maior notoriedade, foi cego por Ulisses. Assim como as Sereias, os Ciclopes também serviram e servem de temas constantes nas artes e na literatura.

Em França, em pleno esplendor do século XVIII, compositores, escultores e pintores renderam homenagens aos personagens e às histórias da mitologia grega. Jean-Philippe Rameau (1683-1764) compôs óperas baseadas em histórias da mitologia. Em suas peças para cravo – Suite em Ré – escreveu duas peças sob essa égide: L’Entretien des Muses e Les Cyclopes. Ao gravar a integral de Rameau para cravo interpretada ao piano (selo belga De Rode Pomp), na peça Les Cyclopes realço o atributo desses ferreiros nessa feérica atividade junto às forjas, salientando as notas mais graves, as célebres fundamentais, tão decantadas pelo compositor em seus escritos teóricos:

Clique para ouvir Les Cyclopes de Jean-Philippe Rameau:

Piano: José Eduardo Martins

https://www.youtube.com/watch?v=c7lyY0pBRkU

Incontestável a atração que as obras-primas Ilíada e Odisseia provocaram na Humanidade. Se as artes e a literatura tanto se voltaram ao conteúdo desses livros, os nomes de deuses, demiurgos, heróis, vilões que percorrem os poemas foram dados, através dos séculos, a muitos milhões de cidadãos, homens e mulheres. Alguma outra obra literária, essencialmente nesse mister, teria sido tão relevante? Poder-se-ia considerar que o alcance da mitologia, talvez por não ter cunho monoteísta, tenha alcançado concordância em religiões e crenças as mais diversas. Talvez…

In response to suggestions from readers and in connection with the post about Tesson’s book “Un été avec Homère”, this post addresses the myth of cyclopes and mermaids, their presence in arts and culture, with focus on the fascination they have always had for classical music composers over time.